José de Souza Martins*
-Foto: Carvall
Os reiterados apelos de
autoridades médicas para que a população permaneça em quarentena, durante a
epidemia da covid-19, tem tido consequências aquém do esperado e,
principalmente, do necessário. Há diversos fatores sociais e culturais por trás
da imprudência coletiva. A começar de que milhões de brasileiros não têm
habitação ou a habitação adequada ao isolamento.
Além do que, esses apelos se
baseiam no pressuposto equivocado de que toda a população regula seu
comportamento costumeiro, em questões de saúde, pelas mesmas concepções dos
médicos e dos cientistas.
Equivocado porque,
historicamente, o brasileiro é culturalmente duplo, nas concepções e na língua,
uma das consequências das duas escravidões que fizeram o Brasil que conhecemos,
a indígena e a negra, além da influência do branco retrógrado. Somos um país
atrasado. O que faz do conhecimento científico um conhecimento paralelo ao
popular, e com ele em disputa.
No geral, médicos intuem isso.
Problema que se abrandaria se nos currículos das faculdades de medicina fosse
incluída a antropologia. Uma ponte sobre o abismo que separa e contrapõe as
duas culturas.
Tenho observado, em minhas
pesquisas, muitos casos, embora fragmentários, no Brasil inteiro, que
evidenciam o quanto amplos setores da população estão muito longe das
recomendações da cultura médica. E do que seria próprio de uma sociedade cujas
normas de saúde fossem reguladas pela racionalidade própria da ciência.
Os muitos casos esparsos que
observei deixam claro que o saber popular sobre doença e saúde, mesmo nas
grandes cidades, está numa relação de conflito e de antagonismo com o saber
médico. O próprio presidente da República, por ignorância e oportunismo
explícitos, expressa diariamente esse conflito, ao agir para contestar a medicina.
Num cenário desses, é difícil
definir normas de saúde pública, especialmente em momentos de emergência e de
urgência. É de limitada eficácia, numa disputa desse tipo, a recomendação de
normas da noite para o dia.
Esta é uma interpretação
impressionista desse desencontro. Mas do peculiar impressionismo de que se vale
todo pesquisador e cientista para definir o primeiro e provisório quadro de sua
observação científica sobre determinado problema ou questão.
Seu senso comum é diverso do
senso comum popular. É, antes, uma sistematização de conhecimento científico,
que lhe permite ver, na urgência de situações inesperadas, o que o conhecimento
popular não permite ver senão impropriamente no plano mágico e, eventualmente,
religioso.
O problema começa com o fato de
que há no Brasil, historicamente, uma ampla ignorância induzida, que se tornou
o fundamento de uma cultura paralela de permanente disputa entre juízos de
valor e juízos de realidade. A ignorância é, desde a origem do Brasil, um
instrumento de poder.
É esse o cenário que define os
problemas da saúde pública, em situação de emergência, como agora. Os serviços
de saúde chegam à massa da população, seja dos pobres, seja da classe média,
precariamente. É mais fácil fazer uma consulta médica do que fazer os exames
recomendados pelo médico, que podem demorar meses. As coisas se complicam se
for necessária uma internação, uma cirurgia.
Com isso, o médico se torna
coadjuvante das improvisações e soluções da medicina popular, do curandeirismo,
dos benzimentos. As pessoas ficam sabendo que suas dores e incômodos têm nome,
nome de doenças. Mas a solução acaba sendo procurada fora do âmbito médico. Não
é casual que aqui a medicina científica seja de fato apenas a segunda instância
da medicina popular, da automedicação, das campanhas de liquidação de remédios
das farmácias.
Um dos aspectos mais
problemáticos desse desencontro é a descrença no saber médico. Sou usuário de
hospital público e gosto de acompanhar as conversas de sala de espera. As
pessoas trocam informações sobre as queixas que estão levando ao médico. Os
outros pacientes opinam, fazem diagnósticos, até dizem que exames o queixoso
recomende ao médico para que apenas faça a requisição.
Quando falha o convencimento
alternativo do leigo, também paciente, entra o diagnóstico religioso. A
conversa, então, se torna proselitismo em favor do grande médico de todas as
enfermidades. Já presenciei na espera do ambulatório do Hospital Universitário
da USP um desentendimento entre três evangélicos, vinculados a três diferentes
igrejas fundamentalistas, por eles mesmos identificadas, porque um impugnava a
visão religiosa do outro em nome da sua.
Por trás da resistência à
quarentena há um conjunto extenso de insuficiências históricas, sem solução
numa situação de emergência, como esta, que é também a de insuficiência de
governo.
José de Souza Martins é
sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Pesquisador
Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é
autor de "O Cativeiro da Terra" (Contexto).
-------------------------
Nenhum comentário:
Postar um comentário