Manuel Castells*
Nunca imaginamos isso. Ninguém imaginou. E ainda parece um pesadelo
do qual vamos acordar ao amanhecer. É claro que, algum dia, vai acabar.
Quanto mais nos ajudarmos entre todos, mais cedo vai acabar. E isso
inclui todos aqueles que tiram proveito da tragédia em prol de seus
interesses. Deixemos de lado nossas diferenças, já já acertaremos as
contas.
Nunca tínhamos enfrentado uma ameaça do tipo, nem sequer com a gripe
de 1918, porque, hoje em dia, a globalização e a trama de economias,
culturas e pessoas têm uma repercussão em tempo real para qualquer
barbaridade cometida em qualquer canto do planeta, como aconteceu com os
mercados de espécies selvagens. Humanos predadores, se protejam de
vocês mesmos. Nem nossos extraordinários avanços científicos e
tecnológicos conseguem nos salvar da nossa imensa estupidez. Por isso,
se sobrevivermos, não voltaremos ao mesmo. E, se voltarmos, a pandemia
vai retornar, a mesma ou outras, até que ocorra um reset daquilo que éramos.
Só existe futuro se pensarmos numa reencarnação coletiva da nossa
espécie. Isso não tem nada a ver com o mofado debate ideológico entre
capitalismo e socialismo, porque até o socialismo real e palpável também
já teve sua vez. Falamos em mudança de paradigmas. E algo do tipo está
acontecendo. Por exemplo, essa pandemia deve deixar claro que a saúde,
incluindo a higiene pública e a saúde preventiva, é nossa infraestrutura
de vida. E que não vamos poder viver apoiados de forma permanente no
heroísmo de profissionais da saúde, que adoecem dia após dia por falta
de equipamentos de proteção.
Teremos de investir, com prioridade, na saúde pública, porque a
particular serve para aquele que serve — e, em situações de emergência,
deve ser absorvida pela pública. Esse investimento é quantitativo e
qualitativo, em termos de materiais, aparelhos hospitalares, atenção
primária, educação à população, pesquisa, remuneração dos sanitaristas e
formação de médicos, enfermeiros e profissionais da saúde, de modo
geral, com faculdades e escolas melhor preparadas para acolher um grande
leque de vocações para o serviço
Fica evidente, agora, para além do sistema de saúde, a necessária
prioridade do setor público na organização da economia e da sociedade. E
não se trata de estatizar, porque cada fórmula de defesa do interesse
público deve se adaptar às características de cada sociedade. Da mesma
forma que a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial exigiram romper
com o fundamentalismo do mercado para proteger os direitos sociais e a
vida, de modo geral, mas conservando o dinamismo do mercado para tudo o
que é útil. Da mesma forma, torna-se necessário revitalizar o setor
público e reformá-lo, livrando-o da burocracia e da politicagem.
Por exemplo, pudemos constatar a hipocrisia social e institucional no
âmbito do respeito aos idosos, que são abandonados em situações
extremamente precárias quando as famílias não conseguem mais tomar conta
deles. Em parte, pela privatização das casas de repouso, o que
demonstra que a lógica de ambição não combina com cuidados que são caros
em funcionários e equipamentos. Mas, também, nas casas de repouso
públicas, pois os cortes orçamentários e a negligência de muitas
instituições acabaram abandonando nossos idosos à sua própria sorte,
como vimos no altíssimo número de mortes registradas nesses autênticos
campos de extermínio, durante a pandemia. Somente uma grande intervenção
— não somente em gastos, mas em gestão — pode evitar que isso ocorra
novamente.
A pergunta imediata é: como pagar. É evidente que com novos impostos e
com um aumento da produtividade. Não temos outra opção. Mas isso não
quer dizer mais impostos para as pessoas, e sim, obter recursos
lá onde se concentra o 75% da riqueza mundial, isto é, dos mercados
financeiros globais e as grandes multinacionais que evadem impostos
legalmente, precisamente, graças à sua mobilidade fiscal e administração
da papelada jurídica. Aplicando, também, o aumento da produtividade,
que envolve recursos humanos, isto é, setor público; ciência (de novo,
setor público); infraestrutura tecnológica (parcerias público-privadas);
e a transformação empresarial por meio da aplicação de novos
conhecimentos e tecnologia na gestão das empresas. Além disso, deve-se
adentrar o complexo território da produtividade e eficiência do setor
produtivo, desde a administração, até a educação.
Porém, o maior reset, é aquele que está acontecendo em
nossas cabeças e vidas. É termos percebido a fragilidade de tudo o que
acreditávamos garantido, da importância dos afetos, do recurso da
solidariedade, da importância do abraço — e que ninguém vai nos tirar,
porque mais vale morrer abraçados do que viver atemorizados. É sentir
que o desperdício consumista no qual gastamos erroneamente nossos
recursos não é necessário, pois não precisamos mais do que uns comes e
bebes com os amigos na varanda. Sabiam que as escandalosas
transferências multimilionárias do mundo do futebol acabaram? E não por
isso os Messi do mundo vão parar de jogar, porque o futebol corre pelas
veias deles.
O reset necessário é um portal para uma nova forma de vida,
outra cultura, outra economia. É bom que o valorizemos, pois a
alternativa a ele é a nostalgia masoquista de um mundo que se foi para
não voltar. A vida segue, mas outra vida. Depende de nós torná-la
maravilhosa.
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*Sociólogo espanhol. Entre 1967 e 1979 lecionou na Universidade de
Paris, primeiro no campus de Nanterre e, em 1970, na "École des Hautes
Études en Sciences Sociales". No livro "A sociedade em rede", o autor
defende o conceito de "capitalismo informacional"
Tradução: Simone Paz | Imagem:
Alessandro Gottardo
Fonte: https://outraspalavras.net/pos-capitalismo/castells-a-hora-do-grande-reset/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=o_melhor_da_semana_castells_a_hora_do_grande_reset_convite_ao_mundo_pos_pandemia_1_pandemia_reproducao_e_comuns_para_superar_a_pandemia_uma_economia_do_cuidado&utm_term=2020-05-0
Alessandro Gottardo
Fonte: https://outraspalavras.net/pos-capitalismo/castells-a-hora-do-grande-reset/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=o_melhor_da_semana_castells_a_hora_do_grande_reset_convite_ao_mundo_pos_pandemia_1_pandemia_reproducao_e_comuns_para_superar_a_pandemia_uma_economia_do_cuidado&utm_term=2020-05-0
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