O escritor italiano Umberto Eco Foto: Andrea Barbiroli/Estadão
Pensador italiano previu a onda de migração em massa em direção à Europa
Elias Thomé Saliba*, O Estado de S.Paulo
Todos conhecem a divertida passagem de O Ingênuo,
de Voltaire, na qual o índio Hurão, que havia deixado a América para
visitar a Inglaterra, é quase forçado a passar pelo rito da confisssão
com um frade, após este impingir-lhe a epístola de S.Jacques:
“Confessai-vos uns aos outros”. Terminada a confissão, o hurão obriga o
frade a trocar de lugar com ele, e colocando-o de joelhos anuncia que o
religioso também não sairia dali até que confessasse todos os seus
pecados. Esta passagem é um chamariz para Experiências de Antropologia Recíproca, um dos quatro ensaios, sendo dois deles inéditos, de Umberto Eco, reunidos em Migração e Tolerância.
Como
são ensaios derivados de intervenções e conferências, realizadas entre
1997 e e 2012, vemos um Eco muito mais à vontade, sem perder a verve,
fluência e a erudição que caracterizam sua obra. Suas referências
históricas surpreendem: para exemplificar como diferentes civilizações
criam seus próprios calendários e respectivas teogonias - e que a cristã
é apenas uma entre muitas - retira lá do século 17, o obscuro herege
Isaac de la Peyrère, que revelou que cronologias chinesas eram muito
mais antigas que as hebraicas, aventando a hipótese de que o pecado
original envolvesse apenas a posteridade de Adão, mas não de outros
povos, surgidos muito tempo antes.
Num dos ensaios mais incisivos, Eco procura mostrar que a intolerância
quase sempre vem antes de qualquer doutrina, ou seja, a intolerância já
existe difusamente na vida cotidiana e alcança até alguma popularidade,
antes de se constituir em seitas fundamentalistas, como o integrismo ou o
racismo pseudocientífico. A intolerância – argumenta – chega mesmo a
ter raízes biológicas, manifesta-se entre os animais como
territorialidade, baseia-se em relações emocionais, muitas delas
completamente superficiais, mas renitentes: não suportamos os que são
diferentes de nós porque têm a pele de cor diferente, falam uma língua
que não compreendemos, ou porque comem rãs, cães, macacos, porcos, alho,
ou são tatuados. Assim, não são as doutrinas da diferença que produzem a
intolerância selvagem, ao contrário, estas desfrutam de um fundo
preexistente de difusa intolerância. Foi assim que o antissemitismo
pseudocientífico surgiu no decorrer do século 19 e acabou
transformando-se em antropologia totalitária e na mais perversa prática
industrial do genocídio no século 20. Porém, não poderia ter nascido se
já não existisse um antissemitismo popular, já fortemente disseminado – e
dissimulado - nos séculos anteriores. Com exemplos curiosos colhidos do
universo medieval e mesmo do mundo renascentista, Eco demonstra que
todas as teorias e doutrinas da intolerância apenas nasceram e
exploraram um ódio pelo diferente que já existia. Escrevendo em 2012,
Eco observa, de forma presciente, que o novo fenômeno do antissemitismo
não é uma doença marginal que afeta apenas uma minoria lunática, mas o
fantasma de uma obsessão milenar.
Eco não menciona diretamente o
conto de Voltaire, mas o episódio serve como inspiração para definir o
que ele chama de antropologia recíproca: não mais uns (ativos)
observando outros (passivos), mas uns e outros como representantes de
culturas diversas analisando-se face a face e mostrando como podemos
reagir de maneiras diferentes, aprendendo com a diversidade. Hoje, como
ontem, é tarefa difícil lutar contra a intolerância selvagem, porque
diante da animalidade pura o pensamento esmaece. Pior ainda quando a
intolerância se faz doutrina: aí já é muito tarde para vencê-la, e
aqueles que deveriam fazê-lo tornam-se suas primeiras vítimas. Muito
desta onda de intolerância acaba se deslocando para as migrações em
massa, as quais, sobretudo em relação à Europa, tornam-se fenômenos
incontroláveis que Eco, escrevendo em 1997, conclui com um notável
prognóstico: “no próximo milênio( e como não sou profeta não posso
especificar a data), a Europa será um continente multirracial ou, se
preferirem, ‘colorido’. Se lhes agrada, assim será; se não, assim será
da mesma forma.”
Afinal, o migrante, seja ele quem for e de onde
vier, sofre na pele o trauma do dezenraizamento, mas também ensina
lições novas e aquela singular diversidade que cresce e se fertiliza, ao
eliminar fronteiras entre o estranho e o conhecido. O que faz lembrar
da frase de Hugues de Saint Victor, a qual noutra obra, Eco traduziu
direto do latim: “Quem acha sua pátria doce é ainda um tenro aprendiz;
quem acha que todo solo é como o nativo, já é forte; mas, perfeito é
aquele para quem o mundo inteiro é um lugar estranho”.
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* Elias Thomé Saliba é historiador, professor titular da USP e coordenador do site: humorhistoria.wordpress.com
FONTE: https://alias.estadao.com.br/noticias/geral,ensaios-ineditos-de-umberto-eco-tratam-da-intolerancia,70003310551
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