Lya Luft*
(Aqui respondo ao pedido especial de alguém que
ainda não conseguiu meu livro As Coisas Humanas, que aguarda livrarias abertas,
portanto sendo comprado online.)
Não vou falar de cidade, Estado, continente, nem
mesmo planeta.
Pois esses, eu sei, são terra de seus habitantes,
por sorte e azar deles. Falo desta terra interior, e da vida, que pouco se
controla. Que nos surpreende tão lindamente às vezes, e em outras com uma
patada mortal, o trator existencial passando por cima da gente - e fim de uma
alegria, uma felicidade, uma luz, uma pessoa amada. (Ou uma trágica pandemia
destruindo boa parte do mundo que conhecíamos.)
Mas gosto de pensar neles, de curtir esses presentes
positivos que o destino nos traz. Como quando abro a janela e diante de mim, um
luxo que não me pertence e que só curto do meu apartamento: um parque bem
cuidado com vários jacarandás. Em outras épocas, paineiras em flor parecem um
sorvete de morango se derramando sobre as outras árvores mais baixas (sim,
gulosa desde criança).Ou alguém me diz, inesperadamente, encantadoramente:
"Tu és uma vó muito divertida!", e isso me ilumina um dia inteiro. Ou
cai da agenda um poema que alguém me escreveu há décadas, e ainda vale. Valeu
mesmo que essa pessoa tenha sumido, morrido, ou esteja logo ali e tenha
esquecido o poema.
Ou num aeroporto estrangeiro, uma brasileira toque
meu ombro para perguntar se eu sou eu, sorrir, abraçar e dizer uma porção de
coisas boas sobre meus livros. Espantando assim meu desconforto com aviões e
aeroportos. Fazendo eu me sentir em casa, mesmo quase do outro lado do mundo.
Mas não somos terra de ninguém na medida em que
coisas boas nos habitam: projetos ou sonhos, realizações ou desejos, pessoas,
memórias, experiências inesquecíveis, livros, filmes, não faz mal. Somos terra
povoada por muita coisa: que seja boa, que seja bela, que nos ajude.
Pois viver pode ser interessante, instigante, mas
em algumas fases cansa, e como. Cansa abrir os olhos interiores antes de
descerrar as pálpebras e dar-se conta: mais um dia. Ter um artigo para
escrever, contas a pagar (até isso é a vida!) e livros para ler, muitos e bons.
E a casinha da serra nos esperando, com flores, bugios, singulares borboletas
de um azul muito pálido e vizinhas e amigas -, e quando quero, quietude
maravilhosa olhando as árvores, que digo minhas porque a vida me presenteou com
elas e acho que me protegem.
Enfim, o jeito é bancar o guerreiro e não entregar
os pontos, pensando que não há só desgraça e discórdia, e quem sabe vamos todos
nos abraçar, e rir, e relevar todos os mal-entendidos e brigas que, acreditem,
não valem a pena. (Grande ilusão da minha infância.)
Pois o bom é poder ser território de amores,
amizades, desejos, trabalhos, conquistas e mesmo fracassos, mas estando aqui,
estando vivos - ah, e, apesar de tudo, curtindo as esperanças.
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* Escritora.
Fonte: https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=8b430fa12793a41499cd660bfbeb48b8Imagem da Internet
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