José de Souza Martins*
Foto Carvall
Ao agir como se a República fosse
dele, o presidente se torna o alienista desta nação. Ele mesmo faz as regras do
jogo. Quem não concorda, não joga mais
Com a difusão da notícia trágica
de que o número de mortos, em decorrência da pandemia da covid-19, ultrapassara
o marco de dez mil pessoas, a nação começou a reconhecer-se oficialmente de
luto. O STF decretou luto. O Senado e a Câmara dos Deputados decretaram luto.
Nas tradições brasileiras, o luto
quer dizer muita coisa. Quer dizer o silêncio e a compostura da dor e do
sofrimento, o respeito. Quer dizer solidariedade. O luto coletivo significa que
nos reconhecemos como um todo, um povo, em que cada um sofre com o sofrimento
alheio. Estamos juntos e não separados.
Mito do Brasil fragmentário e
conflitivo, o presidente da República não entendeu. Passeava de jet ski no lago
Paranoá e confraternizava com violadores da norma sanitária da quarentena, de
seu próprio governo. Ao desdenhar o sofrimento e a dor dos brasileiros,
desdenha-se, desbrasileiriza-se. E delira: já anunciou que o término de seu
mandato será em 31 de dezembro de 2027.
Não foi ele quem inventou a maldade
da pátria entre parênteses. Mas é ele quem a personifica nos reiterados gestos,
ações, palavras de menosprezo com os quais demonstra seu alheamento em relação
ao povo.
O grande problema brasileiro,
desde que o Brasil é Brasil, tem sido o de decifrar quem fica dentro e quem
fica fora desses parênteses do processo político. De quem é povo e de quem não
o é. Sempre houve gente dentro e gente fora deles.
Tudo muito diferente do que
acontece e aconteceu na história dos países civilizados, os que tem sido
capazes de construir pactos políticos que garantem a unidade nacional e a
governabilidade dos que recebem a incumbência de governar. Aqui, não é bem
assim. As próprias constituições trataram de assegurar a legitimidade dos
parênteses.
A Independência não nos libertou
do espírito de republiqueta, dos chamados homens bons. A meia dúzia municipal
que elegia e era eleita e governava em nome próprio. O Brasil monárquico e
independente instituiu o voto dominante das minorias, qualificados por
cabedais. Nas eleições gerais, votavam e podiam ser votados os mais ricos. Nas
provinciais, os medianamente ricos. Nas provinciais, os medianamente ricos. Nas
locais, os de cabedais menores. Quem não tinha cabedal ou não tinha liberdade,
não votava
Com a abolição da escravatura e a
subsequente proclamação da República, foi preciso inventar um truque que a ela
desse a aparência de republicana, com o direito de voto limitado aos
alfabetizados. Sabia-se que era um modo de excluir da democracia o imenso
número dos filhos da escravidão. Com a significativa exceção da naturalização
geral dos imigrantes estrangeiros trazidos para o Brasil, pelo próprio governo,
para substituir no edito os escravos recém-libertados. Mas a restrição do
analfabetismo continuou e permitiu que fingíssemos democracia onde ela não havia.
O direito de voto do analfabeto, em 1985, não resolveu o problema dos
parênteses.
As performances de Jair Messias
revelam que a história de pôr entre parênteses uma grande parte do povo
brasileiro chegou a nova etapa. Agora, a despeito da universalização do voto,
sataniza-se, para excluir, os discordantes e os diferentes. Para assegurar a cumplicidade
dos bajuladores, que não sabem nem querem saber o que é democracia.
Ao agir como se a República fosse
dele e ao confinar-nos todos em seus parênteses fantasiosos, ele se torna o
alienista desta nação. Ele mesmo faz as regras do jogo. Quem não concorda, não
joga mais.
A cultura dos parênteses nos
obriga a fingir que somos o que não somos nem sabemos ser. Quando o atual
presidente defende, com unhas e dentes, seu direito de ir e vir e, por isso, o
de fazer o que bem entende, invoca a Constituição que nos rege. Mas em nome de
uma concepção antidemocrática desse direito. Já chegou a dizer que ele próprio
é a Constituição. Reinventa a lei e a interpretação da lei.
O direito de ir e vir não é a
mesma coisa de que a pessoa, governante ou não, possa fazer o que bem entende.
O direito de ir e vir é expressão de uma restrição ao abuso, contida no direito
de cada um ser cidadão, personificação do povo brasileiro. O direito de ir e
vir é um direito vicário, baseado no pressuposto da alteridade e não no
pressuposto do individualismo e da prepotência.
Os atos e manifestações do
governante, praticados em nome da equivocada concepção do que são os seus
direitos, como direitos contrários aos direitos de todos, podem ser
sociologicamente analisados como experimento revelador em suas consequências
sociais. Os grupos que o assediam e bajulam e os que ele, com seu modo de
pensar e agir, induz ao comportamento antissocial e antidemocrático mostram que
um número barulhento de brasileiros foi capturado pela mesma socialização
anômala que o move.
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*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da
Faculdade de Filosofia da USP. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia
Paulista de Letras. Entre outros livros, organizador e co-autor de "A
Morte e os Mortos na Sociedade Brasileira" (Hucitec).
Fonte: https://valor.globo.com/eu-e/coluna/jose-de-souza-martins-ao-agir-como-se-a-republica-fosse-dele-presidente-se-torna-o-alienista-da-nacao.ghtml
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