sexta-feira, 15 de maio de 2020

AO AGIR COMO SE A REPÚBLICA FOSSE DELE, PRESIDENTE SE TORNA O ALIENISTA DA NAÇÃO


José de Souza Martins* 
   — Foto: Carvall
 Foto Carvall

Ao agir como se a República fosse dele, o presidente se torna o alienista desta nação. Ele mesmo faz as regras do jogo. Quem não concorda, não joga mais

Com a difusão da notícia trágica de que o número de mortos, em decorrência da pandemia da covid-19, ultrapassara o marco de dez mil pessoas, a nação começou a reconhecer-se oficialmente de luto. O STF decretou luto. O Senado e a Câmara dos Deputados decretaram luto.

Nas tradições brasileiras, o luto quer dizer muita coisa. Quer dizer o silêncio e a compostura da dor e do sofrimento, o respeito. Quer dizer solidariedade. O luto coletivo significa que nos reconhecemos como um todo, um povo, em que cada um sofre com o sofrimento alheio. Estamos juntos e não separados.

Mito do Brasil fragmentário e conflitivo, o presidente da República não entendeu. Passeava de jet ski no lago Paranoá e confraternizava com violadores da norma sanitária da quarentena, de seu próprio governo. Ao desdenhar o sofrimento e a dor dos brasileiros, desdenha-se, desbrasileiriza-se. E delira: já anunciou que o término de seu mandato será em 31 de dezembro de 2027.

Não foi ele quem inventou a maldade da pátria entre parênteses. Mas é ele quem a personifica nos reiterados gestos, ações, palavras de menosprezo com os quais demonstra seu alheamento em relação ao povo.

O grande problema brasileiro, desde que o Brasil é Brasil, tem sido o de decifrar quem fica dentro e quem fica fora desses parênteses do processo político. De quem é povo e de quem não o é. Sempre houve gente dentro e gente fora deles.
Tudo muito diferente do que acontece e aconteceu na história dos países civilizados, os que tem sido capazes de construir pactos políticos que garantem a unidade nacional e a governabilidade dos que recebem a incumbência de governar. Aqui, não é bem assim. As próprias constituições trataram de assegurar a legitimidade dos parênteses.

A Independência não nos libertou do espírito de republiqueta, dos chamados homens bons. A meia dúzia municipal que elegia e era eleita e governava em nome próprio. O Brasil monárquico e independente instituiu o voto dominante das minorias, qualificados por cabedais. Nas eleições gerais, votavam e podiam ser votados os mais ricos. Nas provinciais, os medianamente ricos. Nas provinciais, os medianamente ricos. Nas locais, os de cabedais menores. Quem não tinha cabedal ou não tinha liberdade, não votava

Com a abolição da escravatura e a subsequente proclamação da República, foi preciso inventar um truque que a ela desse a aparência de republicana, com o direito de voto limitado aos alfabetizados. Sabia-se que era um modo de excluir da democracia o imenso número dos filhos da escravidão. Com a significativa exceção da naturalização geral dos imigrantes estrangeiros trazidos para o Brasil, pelo próprio governo, para substituir no edito os escravos recém-libertados. Mas a restrição do analfabetismo continuou e permitiu que fingíssemos democracia onde ela não havia. O direito de voto do analfabeto, em 1985, não resolveu o problema dos parênteses.

As performances de Jair Messias revelam que a história de pôr entre parênteses uma grande parte do povo brasileiro chegou a nova etapa. Agora, a despeito da universalização do voto, sataniza-se, para excluir, os discordantes e os diferentes. Para assegurar a cumplicidade dos bajuladores, que não sabem nem querem saber o que é democracia.

Ao agir como se a República fosse dele e ao confinar-nos todos em seus parênteses fantasiosos, ele se torna o alienista desta nação. Ele mesmo faz as regras do jogo. Quem não concorda, não joga mais.

A cultura dos parênteses nos obriga a fingir que somos o que não somos nem sabemos ser. Quando o atual presidente defende, com unhas e dentes, seu direito de ir e vir e, por isso, o de fazer o que bem entende, invoca a Constituição que nos rege. Mas em nome de uma concepção antidemocrática desse direito. Já chegou a dizer que ele próprio é a Constituição. Reinventa a lei e a interpretação da lei.

O direito de ir e vir não é a mesma coisa de que a pessoa, governante ou não, possa fazer o que bem entende. O direito de ir e vir é expressão de uma restrição ao abuso, contida no direito de cada um ser cidadão, personificação do povo brasileiro. O direito de ir e vir é um direito vicário, baseado no pressuposto da alteridade e não no pressuposto do individualismo e da prepotência.

Os atos e manifestações do governante, praticados em nome da equivocada concepção do que são os seus direitos, como direitos contrários aos direitos de todos, podem ser sociologicamente analisados como experimento revelador em suas consequências sociais. Os grupos que o assediam e bajulam e os que ele, com seu modo de pensar e agir, induz ao comportamento antissocial e antidemocrático mostram que um número barulhento de brasileiros foi capturado pela mesma socialização anômala que o move.
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*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, organizador e co-autor de "A Morte e os Mortos na Sociedade Brasileira" (Hucitec).
Fonte:  https://valor.globo.com/eu-e/coluna/jose-de-souza-martins-ao-agir-como-se-a-republica-fosse-dele-presidente-se-torna-o-alienista-da-nacao.ghtml


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