Emily Berl/The New York Times/Fotoarena
O autor de 'Sapiens' diz que existem dois caminhos no pós-pandemia: um fortalecimento ainda maior do nacionalismo ou a cooperação global
Nesses dias de excepcionalidade do coronavírus, o
israelense Yuval Noah Harari comemora um feito notável: ele acaba de
ultrapassar os 25 milhões de livros vendidos. Com uma rara combinação de
rigor factual e linguagem inspiradora, seu mérito é provar que é
possível atingir as massas com pensamento elevado, objetivo alcançado
pelos seus best-sellers Sapiens (L&PM) e Homo Deus
(Companhia das Letras). Em meio à pandemia, o historiador poderia
deitar sobre os louros enquanto curte o isolamento em uma casa nas
cercanias de Tel-Aviv junto do marido. Mas o intelectual de 44 anos não
se aquieta: usa o tempo recluso para escrever e difundir seus
pensamentos. “Estou trabalhando duro, na tentativa de ajudar as pessoas a
vencer esse período sofrido”, disse a VEJA. Na entrevista a seguir,
Harari analisa como a crise atual afetará o futuro, faz uma defesa da
cooperação global e expõe os prós e os contras dos sistemas de
monitoramento que hoje ajudam a identificar os infectados.
Como será o mundo após a pandemia? Será um mundo
diferente. Se melhor ou pior, isso dependerá de nossas decisões agora. O
mais importante é perceber que não há apenas um único resultado
determinístico para esta crise. Temos escolhas a fazer. E, se fizermos
as escolhas certas, podemos não apenas superar o vírus, mas emergir da
pandemia tendo construído um mundo melhor.
Quais escolhas seriam certas ou erradas? Podemos
escolher o caminho de mergulhar ainda mais no populismo nacionalista de
muitos líderes que estão no poder hoje, com os países lutando só pelos
próprios interesses e contra os demais — todos sairiam perdendo. Ou
podemos reagir com solidariedade global, num cenário em que os países
ajudam uns aos outros na economia, no desenvolvimento de vacinas e na
produção de equipamentos médicos. Nosso futuro depende de decisões
políticas urgentes. O que acontecerá com a crise do mercado de trabalho?
Se, ao final do processo, ela vai enfraquecer ou fortalecer o trabalho
organizado, depende de nossas escolhas e de decisões políticas que não
são determinadas pelo vírus.
O quadro atual sinaliza que o mundo está no rumo correto?
Até agora, a reação está longe do ideal. Não há nenhuma liderança
global capaz de coordenar os esforços para deter a epidemia em si, nem
atuar na arena econômica. Os Estados Unidos foram o líder tradicional do
mundo nas últimas décadas, e assumiram a dianteira na crise financeira
de 2008 e no drama do ebola na África, em 2014. Agora, o país está
fazendo o oposto: minando todo esforço de cooperação. O presidente
Donald Trump briga com a Organização Mundial da Saúde (OMS) na hora em
que mais precisamos dessa organização. E não existe um plano econômico
global para lidarmos com a crise. Isso é extremamente preocupante.
Alguns países têm recursos para enfrentar a devastação da pandemia, mas a
maioria não se levantará sem cooperação dos ricos.
O embate entre Trump e a OMS é um sinal do esgotamento das organizações multilaterais do pós-guerra?
A situação atual enfatiza quão importante é ter esse tipo de
cooperação. A OMS comete erros, como todas as organizações. Mas, sem
ela, como seria possível compartilhar informações sanitárias
além-fronteiras? Como saber se o vírus pode estar sofrendo mutações ou
se haverá uma segunda onda? Se alguns países não gostam do trabalho da
OMS ou de suas decisões políticas, tudo bem, vamos tentar construir
outra organização. Mas precisamos de uma instância para centralizar o
combate a uma pandemia. Sem informação compartilhada, nenhum esforço
local pode ter sucesso.
“Estamos em situação mais privilegiada que nunca na história para enfrentar uma pandemia. Não vivemos na Idade Média, e todos devem saber que o coronavírus não é a peste negra”
A baixa cooperação global nesta crise o deixa pessimista?
Ela deixa um vazio alarmante, mas, por contraponto, traz uma lição:
vamos perceber, por bem ou por mal, quanto é importante a cooperação
global. Ainda não é tarde para mudar de rumo e reagir. Desse modo, será
mais fácil superar a crise atual e construiremos um mundo em condições
de lidar melhor com emergências futuras.
Contra as recomendações sanitárias, Trump e o brasileiro Jair
Bolsonaro atacam ferozmente o isolamento social. Como esses líderes
serão julgados pela história? É difícil saber como as pessoas
verão a crise atual à distância do tempo. Agora mesmo, no calor da hora,
é complicado opinar sobre as diferentes abordagens contra a pandemia.
Mas Trump e Bolsonaro estão fazendo um jogo duplo. Seus países passarão
por um período econômico duro, com as pessoas perdendo empregos e
negócios. Ao se portarem como profetas do caos na economia, eles querem
transferir a responsabilidade pelas dificuldades para outras pessoas,
como prefeitos e governadores. E também não assumem suas
responsabilidades na luta contra o vírus.
Em que medida os avanços tecnológicos do presente marcarão a luta contra a pandemia?
Em matéria de tecnologia médica, estamos em uma situação mais
privilegiada que nunca na história para enfrentar uma pandemia.
Felizmente, não vivemos na Idade Média, e todos devem saber que o
coronavírus não é a peste negra. Na Idade Média, ninguém entendia o que
estava acontecendo quando vinha uma epidemia. Aliás, até coisa de um
século atrás, durante a gripe espanhola, os médicos não entendiam o que
causava a doença, muito menos como ela podia ser vencida. Hoje temos
conhecimento científico e a tecnologia para colocá-lo em prática. Foram
necessárias apenas duas semanas para identificar o vírus causador da
Covid-19 e sequenciar seu genoma. Não há dúvida da nossa capacidade de
entender e controlar uma pandemia.
Governos de vários países estão recorrendo a ferramentas de vigilância no combate à doença. Qual a importância delas?
As tecnologias de vigilância desenvolvidas nos últimos anos serão
extremamente úteis para permitir que as pessoas possam retornar ao
trabalho ou à escola com segurança. Se você é capaz de monitorar pessoas
e avisá-las da proximidade de infectados, a volta a uma situação normal
pode ser acelerada. Mas tudo tem de ser feito com absoluta ponderação.
Por quê? Precisamos ser muito cuidadosos com a
vigilância. Se instituirmos o sistema e as leis erradas, a tecnologia
nos ajudará a combater a epidemia, mas também poderá destruir a
democracia e nossas liberdades. Já estamos vendo em vários países a
tentativa de usar a situação para estabelecer regimes autoritários.
Como se pode utilizar a tecnologia de maneira responsável?
Antes de tudo, a vigilância deve ser a mais limitada possível. Seu
controle não deve ficar nas mãos da polícia, dos serviços de segurança
ou do Exército. Precisamos monitorar as pessoas para descobrir quem está
se arriscando ou pondo os outros em risco, mas isso deve ser trabalho
de uma agência de saúde independente, que seja obrigada a não
compartilhar os dados.
Mesmo assim, as pessoas não estarão sujeitas a abusos por parte do governo?
É impossível afastar totalmente o risco de abusos, mas há uma boa
solução para que a vigilância ajude a saúde sem comprometer a
democracia. Se dermos ao Estado o poder de monitorar as pessoas por meio
da tecnologia, devemos nos valer dela para aumentar a vigilância sobre o
governo. Na crise atual, nenhum governante expõe claramente como está
administrando o dinheiro dos pacotes de auxílio. É possível usar a
tecnologia para vigiar se esses recursos não serão destinados para o
resgate de corporações corruptas ou para os amigos do poder, em vez das
pequenas empresas e indivíduos em dificuldade.
Não há o perigo de que o caos da pandemia leve o mundo a uma
nova era de regimes totalitários, como aconteceu na Europa após a
I Guerra e a gripe espanhola? Esse é um risco que devemos sem
dúvida levar a sério. Crises como a do coronavírus podem despertar os
demônios interiores da humanidade. Se conduzida com egoísmo e falta de
visão do futuro, esta crise só levará a mais ódio, ganância e
ignorância, e estimulará o surgimento de todos os tipos de ditadores.
Há quem defenda a ideia de que ditaduras como a China têm maior facilidade em combater o vírus. Faz sentido?
Esse é um erro completo. Não é verdade que as ditaduras sejam melhores
do que as democracias em lidar com crises assim. Geralmente é o
contrário. É verdade que as ditaduras têm a vantagem de tomar decisões
mais rapidamente, porque o ditador não precisa consultar ninguém. O
problema é que ele quase nunca admite o erro. Todos os que questionam
são traidores e o ditador de plantão exige mais poder a fim de vencer o
inimigo. A democracia dispõe de freios e contrapesos que permitem
corrigir os rumos em caso de uma decisão errada. Países livres como
Coreia do Sul, Taiwan, Nova Zelândia e Alemanha vêm combatendo a crise
de modo mais transparente e eficaz que a China.
“A crise atual pode despertar os demônios da humanidade. Se conduzida com egoísmo, só levará a ódio, ganância e ignorância, e estimulará o surgimento de ditadores”
Qual a contribuição de cada indivíduo para atravessar tempos de pandemia?
Depende de quem você é, de qual é a sua condição. Muitas pessoas
desempenham papéis importantíssimos que um dia terão seu devido
reconhecimento nesta crise. Não falo apenas de enfermeiras e médicos,
mas das pessoas que vendem comida no supermercado, que limpam a rua ou
tiram o lixo. Elas são essenciais. Mesmo alguém que não vá trabalhar na
rua tem a função indispensável de manter a si mesmo e zelar pelo
equilíbrio de sua família.
Cidadãos ao redor do mundo enfrentam problemas psicológicos e
ansiedade diante das notícias ruins e da quarentena. Como manter a fé
na humanidade nesta hora? Renovar a confiança na ciência pode
nos ajudar a manter o equilíbrio. O vírus é uma grave ameaça, mas
podemos derrotá-lo. Será difícil, muitas pessoas morrerão, mas temer
que a doença saia do nosso controle é irracional. E, de novo, não
podemos permitir que a irracionalidade desperte os demônios da
humanidade. Se começarmos a culpar estrangeiros ou minorias pela doença
ou abraçarmos teorias da conspiração, será mais difícil superar o
problema. Se, por outro lado, dominarmos nossos demônios, o mundo sairá
desta crise muito mais dinâmico. Talvez ela seja o empurrão que faltava
para nos levar a um futuro plenamente digital, por exemplo.
Como está lidando pessoalmente com a situação de isolamento?
Eu e meu marido estamos em quarentena em nossa casa. Não perdemos
nossas fontes de sustento, por isso nossa situação é relativamente boa.
Temos amigos e familiares que perderam o emprego por causa da
paralisação geral, e estão contando com ajuda de parentes e conhecidos.
Sabemos quanto somos sortudos.
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Publicado em VEJA de 27 de maio de 2020, edição nº 2688
Fonte: https://veja.abril.com.br/paginas-amarelas/harari-trump-e-bolsonaro-nao-querem-assumir-responsabilidade-na-crise/ 22/05/2020
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