sexta-feira, 8 de setembro de 2023

A grande alegria de fazer mais de 60 anos é o cinismo, além de usar vaga de idoso

Por Marcelo Rubens Paiva*

 Desenho de 60 anos pintado e colorido por Usuário não registrado o dia 10  de Julho do 2017

Não reprimimos nosso sarcasmo, não ligamos para o que o outro pensa, bebemos menos, aumentamos a carga de exercícios e não temos paciência para filmes de mais de três horas

O primeiro sintoma de que entramos no núcleo de pessoas chamadas de idosas é a compra de um compartimento de remédios com duas fileiras, dia e noite, de segunda a domingo. E se você se acha com idade avançada, tem à venda no mercado o kit porta-comprimido organizador que divide o dia em manhã, almoço, tarde e noite.

No meu, de duas fileiras, não cabem todos os complexos vitamínicos manipulados. Ficam os medicamentos de colesterol, pressão, vitamina D, complexo B12 e aqueles que não revelamos em público.

E se alguma jovem atendente me pergunta “o senhor deseja mais alguma coisa?”, minha resposta vem de bate-pronto: “Obrigado, minha senhora, estou satisfeito”.

A grande alegria de fazer mais de 60 anos é o cinismo. Além de parar em vaga de idoso e andar de graça de ônibus e metrô. Aliás, o cadastro no bilhete único é automático. O de deficiente é tão burocrático, com tantas certidões e atestados, que achei o idoso mais simplificado e aderi à causa.

Um idoso não se conforma com o fim do trema. Vai a mais velórios do que casamentos, e absorve frases de efeito que querem dizer “meus sentimentos” ou “pêsames”, mas não dizemos. Tornou-se iluminado, virou uma estrela. Enfeitiçou-se.

Encontra amigos em empresas de medicina diagnóstica ou farmácias. Troca dicas de planos de saúde. Negocia desconto de remédios. E a dose dele, que era 10mg, vira 20. Quando você lamenta com a geriatra (sim, é a especialista da nossa saúde, no lugar de nossas mães), ela diz que receitou um de 30mg ao paciente anterior.

O mais revoltante: colunistas desinformadas que escrevem que há vida sexual depois dos 40 ou 50 ou menopausa ou angiopausa, e que há casos raros de vida sexual depois dos 60, especialmente entre aquelas e aqueles praticantes de uma dieta mediterrânea.

Escrevem com tanta ênfase, como se tivessem revelado os verdadeiros assassinos de John Kennedy. Sim, temos vida sexual. Ohhhh! As posições que são menos acrobáticas, mas sabemos exatamente o que fazer e como.

Com mais de 60, não reprimimos nosso sarcasmo, não ligamos para o que o outro pensa, bebemos menos, aumentamos a carga de exercícios e não temos paciência para filmes de mais de três horas, como Oppenheimer, peças de teatro sem intervalo, e perguntamos se o som daquele show não deveria ser mais baixo.

O sessentão é mais sábio. Já descobriu o paradoxo da fila de prioridades: anda mais devagar. Companheiros gastam muito tempo procurado documentos, bilhetes e não escutam as orientações da equipe de terra. Porém, viajou tanto que acha até gostosinho uma turbulência. Se sente uma criança num tobogã.

 *É escritor, dramaturgo e autor de 'Feliz Ano Velho', entre outros

Fonte:  https://www.estadao.com.br/cultura/marcelo-rubens-paiva/idoso/

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