quinta-feira, 28 de setembro de 2023

O peso dos nossos dias

 Bruno Nogueira*

 Juan Cavia

Os nossos dias não são o que nós queremos que eles sejam, mas são nossos. Com culpa, com luto, com alegria, com tudo e com nada. Fugir deles é a pior coisa que podemos tentar fazer, porque eles têm pernas longas e hão-de correr até nos conseguirem apanhar e levar de volta.

É curiosa esta ideia de os dias da semana terem pesos e medidas diferentes. Vistos ao longe até parecem ser feitos da mesma matéria, mas aquilo que provocam em cada um de nós varia consoante a nossa história e a nossa disposição. Acrescentamos quilos aos que nos cansam, e tiramos peso aos que nos fazem falta, num ajuste de contas diário que nos serve sobretudo a nós. Os dias da semana têm bagagens diferentes e personalidades fortes, e a chegada de cada um deles pode provocar uma espécie de baque, como se nos apanhassem de surpresa todas as semanas. Tratamos os dias consoante o que eles nos dão, num desafiante leilão diário. Gostamos das terças porque temos uma combinação que adoramos, das quartas porque sim, das quintas porque praticamos o desporto que gostamos, e por aí fora. Mas essas âncoras não são garantia de um dia bom, porque o que ele tem lá dentro pode até ter coisas previsíveis, mas pelo meio há outras que desequilibram a ordem que dávamos como certa. A sexta-feira é o dia que tem melhor reputação, porque é o dia que devolve o descanso a quem o perdeu nos outros dias. Anuncia um fim-de-semana onde podemos reivindicar os horários que bem entendermos. Mas mesmo assim há quem baralhe o jogo e trabalhe ao fim de semana, e veja afinal na semana o descanso que a maior parte das pessoas não consegue lá encontrar. São os mesmos dias, mas só para quem os trata pelo nome, e não por aquilo de que são feitos.

Num canto nublado e triste está o domingo, e que leva com o peso de todos os outros que se acham melhores e mais leves. O domingo tem 24 horas, mas há quem lhe dê menos. É o dia que dizem não servir para nada, que está só a fazer-se de sonso até vir a segunda-feira, o dia em que começa tudo outra vez. A má fama do domingo não é culpa dele, é nossa. Ele oferece-se para que o aproveitemos com a mesma fome que tivemos pelo sábado, mas nós não vamos em cantigas. Gastamos os domingos com a dor antecipada daquilo que vamos penar durante a semana, e quando damos por isso já é segunda. E o domingo, coitado, lá tem de nos dar colo e fazer-se de mau da fita para que tenhamos um saco de pancada onde descarregar as culpas. Às vezes, dentro de um dia, pode estar uma semana inteira. Há dias que duram até hoje em mim, e outros que foram tão vazios que ia jurar que tinham sido só metade. Dias que são feitos para ficarmos presos ao que eles nos puseram à frente, a tentarmos deslindar que fios são aqueles que se embaraçam todos uns nos outros até serem só um novelo onde não se encontra o princípio nem o fim. Tentar passar por ele sem lhe dar a atenção merecida é só uma provocação até que comece a crescer e fique de um tamanho que nos faz frente. No meio desse novelo, às vezes aparece um outro pequenino e complexo, e que foi quem fez o maior às escondidas. Esse novelo pequeno e complexo chama-se culpa. A culpa aparece disfarçada ao domingo, porque se quer infiltrar onde há fendas. Começa a espalhar-se silenciosamente para que possa fazer o seu trabalho sem ser notada, até se esticar para lá do tamanho que nós suportamos. A culpa é a nossa fraqueza vista de frente. É o resultado do que fizemos - ou deixámos por fazer -, e que não nos dá descanso. Imagino que seja isso, enlouquecer. A cabeça sempre à procura de uma janela para poder respirar um bocadinho, e as portadas a fecharem-se de par em par, até que se tenha mais tempo e foco para olhar para os problemas que lá estão dentro. A culpa pode matar quem a tem, e quem está à frente de quem a tem. É uma arma de arremesso que dispara para nós e faz ricochete nos outros. Um dia inteiro que nos rouba a felicidade dos dias que lutaram tanto para o ser. Enlouquecer também deve ser isso, não termos por onde fugir de nós. Os dias estão cheios de muitas coisas que falam línguas diferentes. Quando alguém nasce, esse dia fica feliz para sempre, numa festa anual que nos relembra da nossa pequenez, por ser indiferente para quem não sabe o que está ali a acontecer. Mas quando morre uma pessoa de quem gostamos, morre também o dia em que ela morreu. O dia veste-se de luto todos os anos; e assim vão sobrando cada vez menos que estejam livres de memória. Os nossos dias nem sempre são o que nós queremos que eles sejam, mas são nossos. Com culpa, com luto, com alegria, com tudo e com nada. Fugir deles é a pior coisa que podemos tentar fazer, porque eles têm pernas longas e hão-de correr até nos conseguirem apanhar e levar de volta.

O peso dos nossos dias pode assustar muito, mas a falta deles é bem pior. Se eu tivesse um diário, todos os dias partilhava com ele a sorte que tinha. Começava assim:

“Querido diário,
hoje, por sorte, o dia voltou a acontecer.”

Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfico

*Humorista português

Fonte:  https://www.sabado.pt/opiniao/cronistas/bruno-nogueira/detalhe/o-peso-dos-nossos-dias?&utm_source=Newsletter&utm_campaign=Editorial_S%c3%a1bado_EdicaoManha+-+Alive&utm_medium=email&sfmc_segment=Alive&sfmc_term=Alive##utm##

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