segunda-feira, 5 de maio de 2008

GILBERTO DUPAS - Acabaram as utopias?


- Assim como a esperança, a utopia não morrerá nunca. Mas seu destino parece sempre fazer morada em outro lugar -

O MUNDO parece abandonar definitivamente as utopias e atirar-se de joelhos diante do mercado. A China virou uma das sócias maiores do capitalismo global; a Itália entrega-se mais uma vez ao megaempresário Berlusconi; e Cuba abre brechas à propriedade privada e à sociedade de consumo. O capitalismo transformou-se em regime único. O mercado implacável define ganhadores e perdedores, o Estado de bem-estar social definha e parecemos nos satisfazer com iPods, telefones celulares, telas de plasma e carros de US$ 3.000.
Isso significa que qualquer proposta de transformação do mundo capitalista passou a ser uma ilusão irrealizável? Não é mais possível projetar para o futuro fundamentos de uma nova ordem? Os versos de Eduardo Galeano esclarecem: "Para que serve a Utopia?/ Ela está diante do horizonte./ Me aproximo dois passos/ e ela se afasta dois passos./ Caminho dez passos/ e o horizonte corre/ dez passos mais à frente./ Por muito que eu caminhe/ nunca a alcançarei. Para que serve a Utopia?/ Serve para isso: para caminhar". Francisco Fernández Buey nos recorda que Thomas More escreveu "Utopia", sua ilha imaginária, inspirado nas notícias sobre o novo mundo vindas pelas cartas de Américo Vespúcio no início do século 16. More era um realista e falava em caminho oblíquo: o que não pode tornar-se bom, que se torne o menos mal possível. Embora vários utópicos contestassem a propriedade privada como raiz de todos os males, More era cuidadoso; não achava viável que todas as coisas fossem comuns.
Curioso ter sido o México, mais uma vez o novo mundo, o destino da primeira experiência utópica renascentista que Vasco de Quiroga, juiz e bispo de Nova Espanha, propôs levar à prática. Em 1530, com o apoio do imperador Carlos 1º, proibiu a escravidão dos índios. Fundou um colégio conservando as línguas autóctones e fazendo uma insólita experiência sociocultural. Durou pouco.
No final daquele século, Campanella imaginou que poderia operar uma transformação completa da sociedade e inventou uma república universal na sua Calábria. Foi submetido à Inquisição por suas práticas utópicas. Na prisão, idealizou "A Cidade do Sol", governada por um magistrado supremo e por três adjuntos, representando sabedoria, poder e amor. Nela, o direito era uma virtude coletiva, e a política, um ramo da ética.
Já Robert Burton propôs sua Atlântis, mas achava ser impossível sacerdotes imitadores de Cristo, advogados caridosos, médicos modestos, filósofos que conheciam a si mesmos, nobres honestos, mercadores que não mentissem e magistrados que nunca se corrompessem. Queria tentar o possível, com penas severas aos infratores: mãos cortadas a sacrílegos, morte a adúlteros e trabalho escravo para ladrões. Era realista como Maquiavel, para quem é máxima do demagogo que homens bons produzem boas leis. Para o legislador, as boas ordens é que fazem homens bons. O pensamento utópico supõe sociedade de abundância: passar do reino das necessidades para o da liberdade; substituir a desordem -o mercado- por organização consciente e planejada da produção social; deixar florescer as capacidades humanas, fazendo triunfar a ajuda mútua e a solidariedade sobre o egoísmo da sociedade mercantil.
Em suma, socialismo com democracia participativa. Esse modelo naufragou com o socialismo real. Mas teria sido a Revolução Russa uma utopia? A experiência bolchevista virou uma tentativa fracassada de realização de um ideal em condições históricas dadas. Já do final do século 20 para nossos dias, o pessimismo se acentuou com a direção selvagem do progresso e o descobrimento do lado perverso das novas tecnologias. Buey resgata em Ernst Bloch a utopia como princípio regulador do real, parte substancial do pensar humano. A razão não pode florescer sem esperança, nem a esperança pode falar sem a razão. Já para Bernard Shaw, há quem observe a realidade tal qual ela é e se pergunte por quê? E há quem a observe como ela jamais foi e se pergunte por que não? Mas pode uma boa utopia, que não seja mera ilusão, enunciar mais do que máximas morais ou tendências essenciais? Um outro mundo talvez seja possível. E é o exercício da utopia, negando o narcisismo, que nos obriga a olhar em direção a uma sociedade menos injusta. Assim como a esperança, a utopia não morrerá nunca. Mas seu destino parece sempre fazer morada em outro lugar. Por isso utopia quer dizer nenhum lugar.
GILBERTO DUPAS , 65, é coordenador geral do Grupo de Conjuntura Internacional da USP, presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI) e autor, entre outros livros, de "O Mito do Progresso".
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0505200809.htm

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