Por Slavoj Žižek.
Confira abaixo artigo inédito, traduzido por Rogério Bettoni, enviado com exclusividade pelo autor para a Boitempo publicar em seu Blog.
Adverte-se aos leitores que o texto contém detalhes da trama de Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge.
For the english version, click here.
Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge confirma
mais uma vez como os blockbusters de Hollywood são indicadores precisos
da situação ideológica da nossa sociedade. A narrativa (resumida) se dá
da seguinte maneira. Oito anos depois dos eventos de Batman – O Cavaleiro das Trevas, capítulo anterior da saga Batman,
a lei e a ordem prevalecem em Gotham City: sob os extraordinários
poderes do Ato Dent, o comissário Gordon praticamente erradicou o crime
violento e organizado. No entanto, ele se sente culpado pela cobertura
dos crimes de Harvey Dent (Dent morreu ao tentar matar o filho de
Gordon, salvo por Batman, que assumiu a culpa em nome da manutenção do
mito de Dent, levando a uma demonização de Batman como vilão de Gotham) e
planeja admitir a conspiração em um evento público de celebração a
Dent, mas acaba concluindo que a cidade não está preparada para a
verdade. Bruce Wayne, que não atua mais como Batman, vive isolado na
própria Mansão enquanto sua empresa desmorona depois de ter investido em
um projeto de energia limpa criado para aproveitar a energia nuclear,
mas encerrado quando ele descobriu que o núcleo poderia ser transformado
em uma bomba. A lindíssima Miranda Tate, membra do conselho
administrativo da Wayne Enterprises, convence Wayne a refazer a
sociedade e continuar com seus trabalhos filantrópicos.
Aqui entra o
(primeiro) vilão do filme: Bane, líder terrorista e antigo membro da
Liga das Sombras, consegue a cópia do discurso de Gordon. Depois que as
tramas financeiras de Bane quase levam a empresa de Wayne à falência,
Wayne confia a Miranda a tarefa de controlar seus negócios, além de ter
com ela um breve caso amoroso. (Nesse aspecto ela compete com a
gata-ladra Selina Kyle, que rouba dos ricos para redistribuir a riqueza,
mas acaba se juntando a Wayne e às forças da lei e da ordem.) Ao
descobrir a movimentação de Bane, Wayne retorna como Batman e confronta
Bane, que afirma ter assumido a Liga das Sombras após a morte de Ra’s Al
Ghul. Depois de deixar Batman gravemente ferido em um combate corpo a
corpo, Bane o coloca numa prisão de onde é praticamente impossível
fugir. Seus companheiros de prisão contam para Wayne a história da única
pessoa que conseguiu escapar: uma criança motivada pela necessidade e
pela mera força de vontade. Enquanto o prisioneiro Wayne se recupera dos
ferimentos e se prepara para ser Batman de novo, Bane consegue
transformar Gotham City em uma cidade-Estado isolada. Primeiro ele atrai
para o subsolo a maior parte dos policiais de Gotham e os prende lá;
depois provoca explosões que destroem a maioria das pontes que
conectavam Gotham City ao continente, anunciando que qualquer tentativa
de deixar a cidade resultaria na detonação do núcleo de Wayne, do qual
se apoderou e transformou em uma bomba.
"O filme apela
para o centro da tradição norte-americana – o ideal do nobre sacrifício
pelo povo comum. Batman deve se humilhar para ser exaltado e renunciar à
própria vida para encontrar uma nova. [...] Como máxima figura de
Cristo, Batman sacrifica a si para salvar os outros”
Chegamos
então ao momento crucial do filme: a tomada de poder por parte de Bane
acontece junto com uma vasta ofensiva político-ideológica. Bane revela
publicamente o acobertamento da morte de Dent e liberta os prisioneiros
detidos pelo Ato Dent. Condenando os ricos e poderosos, ele promete
devolver o poder ao povo, convocando as pessoas comuns a “tomarem a
cidade de volta” – Bane revela-se como “o manifestante definitivo do
Occupy Wall Street, convocando os 99% a se juntarem para derrubar as
elites sociais”[1].
Segue-se então a ideia do filme de poder do povo: uma sequência mostra
uma série de julgamentos e execuções dos ricos, as ruas tomadas pelo
crime e pela vilania… alguns meses depois, enquanto Gotham City continua
sofrendo o terror popular, Wayne consegue fugir da prisão, retorna a
Gotham como Batman e convoca os amigos para ajudá-lo a libertar a cidade
e desarmar a bomba nuclear antes que ela exploda. Batman confronta e
domina Bane, mas Miranda intervém e apunhala Batman – a benfeitora
social revela-se como Talia al Ghul, filha de Ra’s: foi ela que escapou
da prisão quando criança e foi Bane que a ajudou a fugir. Depois de
comunicar seu plano de terminar a tarefa do pai de destruir Gotham,
Talia foge. Na confusão que se segue, Gordon destrói o dispositivo que
permitia a detonação remota da bomba enquanto Selina mata Bane,
permitindo que Batman vá atrás de Talia. Ele tenta forçá-la a levar a
bomba para a câmara de fusão onde pode ser estabilizada, mas Talia
inunda a câmara. Talia morre quando seu caminhão bate, confiante de que a
bomba não pode ser detida. Usando um helicóptero especial, Batman
transporta a bomba para além dos limites da cidade, onde ela explode
sobre o oceano e supostamente o mata.
Agora Batman
é celebrado como um herói cujo sacrifício salvou Gotham City, enquanto
Wayne é tido como morto nos motins. Após seus bens serem divididos,
Alfred vê Bruce e Selina juntos em um café em Florença, enquanto Blake,
jovem policial honesto que conhecia a identidade de Batman, herda a
Batcaverna. Em suma, “Batman salva a situação, aparece incólume e
continua com uma vida normal, enquanto outro o substitui no papel de
defender o sistema”[2].
A primeira pista dos fundamentos ideológicos desse final é dada por
Gordon, que, no (suposto) enterro de Wayne, lê as últimas linhas de Um conto de duas cidades,
de Dickens: “Esta é, sem dúvida, a melhor coisa que faço e que jamais
fiz; este é, sem dúvida, o melhor descanso que terei e que jamais tive”.
Alguns críticos do filme interpretaram essa citação como um indício de
que o filme “atinge o nível mais nobre da arte ocidental. O filme apela
para o centro da tradição norte-americana – o ideal do nobre sacrifício
pelo povo comum. Batman deve se humilhar para ser exaltado e renunciar à
própria vida para encontrar uma nova. [...] Como máxima figura de
Cristo, Batman sacrifica a si para salvar os outros”[3].
"O
sacrifício de Batman como repetição da morte de Cristo? Essa ideia não
seria comprometida pela última cena do filme (Wayne com Selina em um
café em Florença)? O equivalente religioso desse final não seria a
conhecida ideia blasfema de que Cristo realmente sobreviveu à
crucificação e teve uma vida longa e pacífica (na Índia, ou talvez no
Tibete, de acordo com algumas fontes)?"
Dessa
perspectiva, com efeito, Dickens está apenas a um passo de distância de
Cristo no Calvário: “Pois aquele que quiser salvar a sua vida, vai
perdê-la, mas o que perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la.
De fato, que aproveitará ao homem se ganhar o mundo inteiro mas
arruinar a sua vida?” (Mt 16:25-26 da Bíblia de Jerusalém). O
sacrifício de Batman como repetição da morte de Cristo? Essa ideia não
seria comprometida pela última cena do filme (Wayne com Selina em um
café em Florença)? O equivalente religioso desse final não seria a
conhecida ideia blasfema de que Cristo realmente sobreviveu à
crucificação e teve uma vida longa e pacífica (na Índia, ou talvez no
Tibete, de acordo com algumas fontes)? A única maneira de remir essa
cena final seria interpretá-la como um devaneio (alucinação) de Alfred,
que se senta sozinho em um café em Florença. Outra característica
dickensiana do filme é a queixa despolitizada sobre a lacuna entre ricos
e pobres – no início do filme, Selina sussurra para Wayne enquanto eles
dançam em um baile exclusivo da elite: “Está vindo uma tempestade, sr.
Wayne. É melhor que estejam preparados. Pois quando ela chegar, todos se
perguntarão como acharam que poderiam viver com tanto e deixar tão
pouco para o resto”. Nolan, como todo bom liberal, está “preocupado” com
essa disparidade e reconhece que essa preocupação impregnou o filme:
O que
vejo do filme relacionado ao mundo real é a ideia de desonestidade. O
filme inteiro trata da chegada do seu ponto crítico. [...] A ideia de
justiça econômica perpassa o filme, e por duas razões. Primeiro, Bruce
Wayne é um bilionário. Isso tem de ser levado em conta. [...] E segundo,
há muitas coisas na vida, e a economia é uma delas, em que precisamos
confiar em grande parte do que nos dizem, pois a maioria de nós se sente
desprovida das ferramentas analíticas para saber o que está
acontecendo. [...] Não acho que existe uma perspectiva de direita ou de
esquerda no filme. Ele faz apenas uma avaliação honesta, ou uma
exploração honesta, do mundo em que vivemos – de coisas que nos
preocupam.[4]
Por mais que
os espectadores saibam que Wayne é extremamente rico, eles tendem a se
esquecer de onde vem a riqueza dele: fabricação de armas e especulação
financeira, e é por isso que as jogadas de Bane na Bolsa de Valores
podem destruir seu império – traficante de armas e especulador, esse é
o verdadeiro segredo por trás da máscara do Batman. De que modo o filme
lida com isso? Ressuscitando o tema arquetípico dickensiano do bom
capitalista que se envolve no financiamento de orfanatos (Wayne) versus o
mau e ganancioso capitalista (Stryver, como em Dickens). Nessa
moralização dickensiana excessiva, a disparidade econômica é traduzida
na “desonestidade” que deveria ser “honestamente” analisada, embora não
tenhamos nenhum mapeamento cognitivo confiável, e uma abordagem
“honesta” como essa nos leva a mais um paralelo com Dickens – é como
afirmou Jonathan (corroteirista), irmão de Christopher Nolan, sem
rodeios: “Para mim, Um conto de duas cidades foi
o retrato mais angustiante de uma civilização reconhecível e
descritível que se desintegrou completamente em pedaços. Com os terrores
em Paris, na França daquela época, não é difícil imaginar que as coisas
dariam tão errado assim”[5].
As cenas do vingativo levante populista no filme (uma multidão sedenta
pelo sangue dos ricos que os ignoraram e exploraram) evocam a descrição
de Dickens do Reino do Terror, tanto que, embora não tenha nada a ver
com política, o filme segue o romance de Dickens ao retratar
“honestamente” os revolucionários como fanáticos possuídos, e assim
fornece
a
caricatura do que, na vida real, seriam revolucionários comprometidos
ideologicamente no combate da injustiça estrutural. Hollywood conta o
que o establishment quer
que saibamos – que os revolucionários são criaturas brutais, sem nenhum
respeito pela vida humana. Apesar da retórica emancipatória sobre a
libertação, eles têm projetos sinistros por trás. Portanto, quaisquer
que sejam as razões, elas precisam ser eliminadas.[6]
Tom Charity destacou corretamente “a defesa que o filme faz do establishment
na forma de bilionários filantrópicos e uma polícia corrupta” – na sua
desconfiança das pessoas que resolvem as coisas com as próprias mãos, o
filme “demonstra tanto o desejo por justiça social quanto o medo do que
realmente pode parecer nas mãos de uma multidão”[7].
Aqui, Karthick levanta uma questão bem clara sobre a imensa
popularidade da figura do Coringa no filme anterior: qual o motivo de
uma atitude tão hostil para com Bane quando o Coringa foi tratado com
tanta mansidão no filme anterior? A resposta é simples e convincente:
O
Coringa, que clama por anarquia na sua mais pura manifestação, enfatiza a
hipocrisia da civilização burguesa como ela existe, mas é impossível
traduzir suas visões em uma ação de massa. Bane, por outro lado,
representa uma ameaça existencial ao sistema de opressão. [...] Sua
força não é apenas a psique, mas também sua capacidade de comandar as
pessoas e mobilizá-las rumo a um objetivo político. Ele representa a
vanguarda, o representante organizado dos oprimidos que promove a luta
política em nome deles para gerar mudanças sociais. Tamanha força, com o
maior dos potenciais subversivos, não tem lugar dentro do sistema. Ela
precisa ser eliminada.[8]
No entanto,
ainda que Bane não tenha o fascínio do Coringa de Heath Ledger, há uma
característica que o distingue desse último: o amor incondicional, a
mesma fonte da sua dureza. Em uma cena curta mas comovente, vemos como,
em um ato de amor no meio do sofrimento terrível, Bane salvou a garota
Talia sem se importar com as consequências e pagando um preço terrível
por isso (foi espancado quase até a morte por defendê-la). Karthick tem
toda razão ao situar esse acontecimento dentro da longa tradição, de
Cristo a Che Guevara, que exalta a violência como uma “obra do amor”,
como nas famosas palavras do diário de Che Guevara: “Devo dizer,
correndo o risco de parecer ridículo, que o verdadeiro revolucionário é
guiado pelo forte sentimento do amor. É impossível pensar em um
revolucionário autêntico sem essa qualidade”[9].
O que encontramos aqui nem é tanto a “cristificação de Che”, mas sim
uma “cheização do próprio Cristo” – o Cristo cujas palavras
“escandalosas” de Lucas (“se alguém vem a mim e não odeia seu próprio
pai e mãe, mulher, filhos, irmãos, irmãs e até a própria vida, não pode
ser meu discípulo” [Lc 14:26]) apontam exatamente na mesma direção que a
famosa citação de Che: “É preciso ser duro, mas sem perder a ternura”. A
afirmação de que “o verdadeiro revolucionário é guiado pelo forte
sentimento do amor” deveria ser interpretada juntamente com a declaração
muito mais “problemática” de Guevara sobre os revolucionários como
“máquinas de matar”:
O ódio é
um elemento da luta; o ódio impiedoso do inimigo que nos ergue acima e
além das limitações naturais do homem e nos transforma em eficazes,
violentas, seletivas e frias máquinas de matar. Assim devem ser nossos
soldados; um povo sem ódio não derrota um inimigo brutal.
Ou,
parafraseando Kant e Robespierre mais uma vez: o amor sem crueldade é
impotente; a crueldade sem amor é cega, paixão efêmera que perde todo
seu vigor. Guevara está parafraseando as declarações de Cristo sobre a
unidade do amor e da espada – em ambos os casos, o paradoxo subjacente
consiste nisto: o que torna o amor angelical, o que o eleva acima da
mera sentimentalidade instável e patética, é essa mesma crueldade, o seu
elo com a violência – é esse elo que eleva o amor acima e além das
limitações naturais do homem e o transforma em pulsão incondicional. É
por isso que, voltando a O Cavaleiro das Trevas Ressurge, o único amor autêntico no filme é o de Bane, o “amor do terrorista”, em nítido contraste a Batman.
Nesse mesmo
viés, a figura de Ra’s, pai de Talia, merece um exame mais cuidadoso.
Ra’s é uma mistura de características árabes e orientais, um agente do
virtuoso terror lutando para contrabalancear a corrompida civilização
ocidental. O personagem é interpretado por Liam Neeson, ator cuja
persona na tela geralmente irradia uma nobre bondade e sabedoria (ele
faz o papel de Zeus em Fúria de Titãs), e que também representa Qui-Gon Jinn em A Ameaça Fantasma, primeiro episódio da série Star Wars.
Qui-Gon é um cavaleiro Jedi, mentor de Obi-Wan Kenobi, bem como o
descobridor de Anakin Skywalker, acreditando que Anakin é O Escolhido
que restituirá o equilíbrio do universo, ignorando os alertas de Yoda
sobre a natureza instável de Anakin; no final de A Ameaça Fantasma, Qui-Gon é morto por Darth Maul[10].
Na trilogia Batman, Ra’s também é professor do jovem Wayne: em Batman Begins,
ele encontra Wayne em uma prisão chinesa; apresentando-se como Henri
Ducard, ele oferece um “caminho” para o garoto. Depois que Wayne é
libertado, ele segue até a fortaleza da Liga das Sombras, onde Ra’s está
esperando, embora se apresente como servo de outro homem chamado Ra’s
Al Ghul. Depois de um longo e doloroso treinamento, Ra’s explica que
Bruce deve fazer o que for preciso para combater o mal, embora revele
que eles treinaram Bruce para liderar a Liga com o intuito de destruir
Gotham City, que eles acreditam ter se tornado irremediavelmente
corrupta. Portanto, Ra’s não é a simples encarnação do Mal: ele
representa a combinação de virtude e terror, a disciplina igualitária
que combate um império corrupto, e assim pertence ao fio condutor (na
ficção recente) que vai de Paul Atreides em Duna até Leônidas em 300 de Esparta. E é crucial que Wayne seja seu discípulo: Wayne foi formado como Batman por ele.
"O que encontramos aqui nem é tanto a “cristificação de Che”, mas sim
uma “cheização do próprio Cristo” – o Cristo cujas palavras
“escandalosas” de Lucas (“se alguém vem a mim e não odeia seu próprio
pai e mãe, mulher, filhos, irmãos, irmãs e até a própria vida, não pode
ser meu discípulo” [Lc 14:26]) apontam exatamente na mesma direção que a
famosa citação de Che: “É preciso ser duro, mas sem perder a ternura”.
Duas críticas do senso-comum se apresentam aqui. A primeira é de que houve
violência e matanças monstruosas nas revoluções reais, desde o
estalinismo ao Khmer Vermelho, por isso está claro que o filme não está
apenas engajado na imaginação revolucionária. A segunda, oposta, é esta:
o atual movimento Occupy Wall Street não foi violento, seu objetivo
definitivamente não era um novo reino do terror; na medida em que se
espera que a revolta de Bane extrapole a tendência imanente do movimento
OWS, o filme, portanto, deturpa de maneira absurda seus objetivos e
estratégias. Os atuais protestos antiglobalistas são o exato oposto do
terror brutal de Bane: este representa a imagem espelhada do terror
estatal, uma seita fundamentalista e homicida dominada e controlada pelo
terror, e não a sua superação por meio da auto-organização popular… As
duas críticas compartilham a rejeição da figura de Bane. A resposta a
essas duas críticas é múltipla.
Primeiro,
devemos esclarecer o atual escopo da violência – a melhor resposta para a
afirmação de que a reação violenta da multidão à opressão é pior que a
opressão original foi dada por Mark Twain no seu Um ianque na corte do rei Artur:
“Houve dois ‘Reinos do Terror’, se bem nos lembramos; um forjado na
incandescente paixão, outro no desumano sangue frio. [...] Mas todos os
nossos temores, que os tenhamos pelo menor terror, o momentâneo, por
assim dizer; pois o que é o terror da morte súbita pelo machado se
comparado à morte em toda uma vida de fome, frio, insulto, crueldade e
desilusão? O cemitério de qualquer cidade pode bem conter os caixões
cheios desse breve terror, que todos aprendemos com afinco a temer e
lamentar; mas a França inteira mal conteria os caixões cheios daquele
outro terror, mais antigo e verdadeiro, o terror de amargura e
atrocidade indizíveis, que nenhum de nós aprendeu a encarar em toda sua
amplitude ou desprezo que merece”.
Depois,
deveríamos desmistificar o problema da violência, rejeitando afirmações
simplistas de que o comunismo do século XX agiu com uma violência
homicida excessiva demais, e de que deveríamos tomar cuidado para não
cair mais uma vez nessa armadilha. Com efeito, trata-se de uma terrível
verdade – mas esse foco voltado diretamente para a violência obscurece
uma questão basilar: o que houve de errado no projeto comunista do
século XX como tal, qual foi o ponto fraco imanente desse projeto que
impulsionou o comunismo a recorrer (não só) aos comunistas no poder para
a violência irrestrita? Em outras palavras, não basta dizer que os
comunistas “negligenciaram o problema da violência”: foi um aspecto
sócio-político mais profundo que os impulsionou à violência. (O mesmo se
aplica à ideia de que os comunistas “negligenciaram a democracia”: seu
projeto geral de transformação social impôs sobre eles esse
“negligenciar”.) Portanto, não é apenas o filme de Nolan que foi incapaz
de imaginar o poder autêntico do povo – os próprios movimentos “reais”
de emancipação radical também não o fizeram e continuam presos nas
coordenadas da antiga sociedade, e, por essa razão, muitas vezes o
efetivo “poder do povo” foi esse horror violento.
E, por último, mas não menos importante, é muito simples dizer que não há potencial violento no movimento OWS e similares – há sim uma
violência em jogo em todo processo emancipatório autêntico: o problema
com o filme é que ele traduziu essa violência de uma maneira errada em
terror homicida. Qual é, então, a sublime violência em relação à qual
até mesmo o mais brutal assassinato é um ato de fraqueza? Façamos uma
digressão em Ensaio sobre a lucidez, de José Saramago, que
conta a história dos estranhos eventos na capital sem nome de um país
democrático não identificado. Quando a manhã do dia das eleições é
arruinada por chuvas torrenciais, a quantidade de eleitores presentes é
extremamente baixa, mas o tempo melhora no meio da tarde e a população
segue em massa para as seções eleitorais. No entanto, o alívio do
governo logo acaba quando a contagem de votos revela que 70% das cédulas
na capital foram deixados em branco. Frustrado por esse aparente lapso
civil, o governo dá aos cidadãos a chance de refazer o fato uma semana
depois, em mais um dia de eleição. O resultado é pior: agora 83% dos
votos foram brancos. Os dois principais partidos políticos – o
governante partido da direita (p.d.d.) e seu principal adversário, o
partido do meio (p.d.m.) – entram em pânico, enquanto o infeliz e
marginalizado partido da esquerda (p.d.e.) apresenta uma análise
afirmando que os votos brancos são, essencialmente, um voto por sua
agenda progressiva. Sem saber como responder a um protesto benigno, mas
certo de que existe uma conspiração antidemocrática, o governo
rapidamente rotula o movimento de “terrorismo puro e duro” e declara
estado de emergência, permitindo a suspensão de todas as garantias
constitucionais e adotando uma série de medidas cada vez mais drásticas:
os cidadãos são apanhados aleatoriamente e desaparecem em
interrogatórios secretos, a polícia e a sede do governo saem da capital,
proibindo a entrada e a saída da cidade e, por fim, fabricando seu
próprio líder terrorista. A cidade toda continua funcionando quase
normalmente, as pessoas se esquivam de todas as ofensivas do governo com
uma harmonia inexplicável e com um verdadeiro nível gandhiano de
resistência não violenta… isso, a abstenção dos eleitores, é um
exemplo de “violência divina” verdadeiramente radical que desperta
reações de pânico brutal nos detentores do poder.
"...o verdadeiro rival de Batman não é o Coringa, seu
oponente, mas Harvey Dent, o “cavaleiro branco”, o novo e agressivo
promotor público, um tipo de vigilante oficial cuja batalha fanática
contra o crime o conduz ao assassinato de pessoas inocentes e o destrói."
Voltando a Nolan, a trilogia dos filmes do Batman, portanto, segue uma lógica imanente. Em Batman Begins, o herói continua dentro dos limites de uma ordem liberal: o sistema pode ser defendido com métodos moralmente aceitáveis. O Cavaleiro das Trevas é de fato uma nova versão de dois clássicos de faroeste de John Ford (Sangue de Heróis e O Homem Que Matou o Facínora)
que retratam como, para civilizar o ocidente selvagem, é preciso
“publicar a lenda” e ignorar a verdade – em suma, como nossa civilização
tem de se fundamentar em uma Mentira: é preciso quebrar as regras para
defender o sistema. Ou, dito de outra forma, em Batman Begins, o
herói é simplesmente uma figura clássica do vigilante urbano que pune
os criminosos naquilo que a polícia não pode; o problema é que a
polícia, órgão responsável pela imposição das leis, relaciona-se de
maneira ambígua à ajuda de Batman: enquanto admite sua eficácia, ela
também considera Batman uma ameaça ao seu monopólio do poder e uma
testemunha da sua ineficácia. No entanto, a transgressão de Batman aqui é
puramente formal, consiste em agir em nome da lei sem a legitimação
para fazê-lo: nos seus atos, ele nunca viola a lei. O Cavaleiro das Trevas muda
essas coordenadas: o verdadeiro rival de Batman não é o Coringa, seu
oponente, mas Harvey Dent, o “cavaleiro branco”, o novo e agressivo
promotor público, um tipo de vigilante oficial cuja batalha fanática
contra o crime o conduz ao assassinato de pessoas inocentes e o destrói.
É como se Dent fosse a resposta à ordem legal da ameaça de Batman:
contra a vigilante luta de Batman, o sistema gera seu próprio excesso
ilegal, seu próprio vigilante, muito mais violento que Batman, violando
diretamente a lei. Desse modo, há uma justiça poética no fato de que,
quando Bruce planeja revelar ao público sua identidade como Batman, Dent
o interrompe e se apresenta como Batman – ele é “mais Batman
que o próprio Batman”, efetivando a tentação à qual Batman ainda era
capaz de resistir. Então quando, no final do filme, Batman assume os
crimes cometidos por Dent para salvar a reputação do herói popular que
incorpora a esperança para o povo comum, seu ato modesto tem uma ponta
de verdade: Batman, de certa forma, devolve o favor a Dent. Seu ato é um
gesto de troca simbólica: primeiro Dent toma para si a identidade de
Batman, e depois Wayne – o Batman verdadeiro – toma para si os crimes de
Dent.
Por fim, O Cavaleiro das Trevas Ressurge ultrapassa
ainda mais os limites: Bane não seria Dent levado ao extremo, à sua
autonegação? Dent que chega à conclusão de que o sistema é injusto, de
modo que, para combater a injustiça com eficácia, é preciso atacar
diretamente o sistema e destruí-lo? E, como parte da mesma atitude, Dent
que perde as últimas inibições e está pronto para usar toda sua
brutalidade assassina para atingir esse objetivo? O advento dessa figura
muda a constelação inteira: para todos os participantes, inclusive
Batman, a moralidade é relativizada, torna-se uma questão de
conveniência, algo determinado pelas circunstâncias: é uma guerra de
classes aberta, tudo é permitido para defender o sistema quando estamos
lidando não só com gângsteres malucos, mas com uma revolta popular.
Será, então,
que isso é tudo? O filme deveria ser categoricamente rejeitado por quem
se envolve em lutas emancipatórias radicais? As coisas são mais
ambíguas, e é preciso interpretar o filme da maneira que se interpreta
um poema político chinês: as ausências e as presenças surpreendentes
também contam. Recordemos a antiga história francesa sobre uma esposa
que reclama do melhor amigo do marido, dizendo que o amigo tem se
insinuado sexualmente para ela: leva algum tempo para que o amigo
surpreso entenda a mensagem – de uma maneira invertida, ela o está
incitando a seduzi-la… É como o inconsciente freudiano que não conhece a
negação: o que importa não é um juízo negativo sobre algo, mas o
simples fato de que esse algo seja mencionado – em O Cavaleiro das Trevas Ressurge,
o poder do povo ESTÁ AQUI, encenado como um Evento, em um passo
fundamental dado a partir dos oponentes habituais de Batman (criminosos
megacapitalistas, gângsteres e terroristas).
Temos aqui a
primeira pista – a perspectiva de que o movimento OWS tome o poder e
estabeleça a democracia do povo em Manhattan é nítida e completamente
tão absurda e irreal que não podemos deixar de fazer a seguinte
pergunta: POR QUE UM IMPORTANTE BLOCKBUSTER DE HOLLYWOOD SONHA COM ISSO,
POR QUE EVOCA ESSE ESPECTRO? Por que sequer sonhar com o OWS culminando
em uma violenta tomada de poder? A resposta óbvia (manchar o OWS com
acusações de que ele guarda um potencial terrorista totalitário) não é o
bastante para explicar a estranha atração exercida pela perspectiva do
“poder do povo”. Não admira que o funcionamento apropriado desse poder
continue branco, ausente: nenhum detalhe é dado sobre como funciona esse
poder do povo, sobre o que as pessoas mobilizadas estão fazendo (é
preciso lembrar que Bane diz que as pessoas podem fazer o que quiserem –
ele não impõe sobre elas a sua própria ordem).
É por isso
que a crítica externa do filme (“sua retratação do reino do OWS é uma
caricatura ridícula”) não basta – a crítica tem de ser imanente, tem de
situar dentro do próprio filme uma multiplicidade de sinais que aponte
para o Evento autêntico. (Recordemos, por exemplo, que Bane não é apenas
um terrorista brutal, mas sim uma pessoa de profundo amor e
sacrifício.) Em suma, a ideologia pura não é possível, a autenticidade
de Bane TEM de deixar rastros na tecitura do filme. É por isso que
o filme merece uma leitura mais íntima: o Evento – a “república do povo
de Gotham City”, a ditadura do proletariado sobre Manhattan – é imanente ao filme, é o seu centro ausente.
[1] Tyler O’Neil, “Dark Knight and Occupy Wall Street: The Humble Rise”, Hillsdale Natural Law Review, 21 de julho de 2012.
[2] Karthick RM, “The Dark Knight Rises a ‘Fascist’?”, Society and Culture, 21 de julho de 2012.
[3] Tyler O’Neil, cit.
[4] Christopher Nolan, entrevista na Entertainment 1216 (julho de 2012), p. 34.
[5] Entrevista de Christopher e Jonathan Nolan ao Buzzine Film.
[6] Karthick, cit.
[7] Forrest Whitman, “The Dickensian Aspects of The Dark Knight Rises”, 21 de julho de 2012.
[8] Karthick, cit.
[8] Karthick, cit.
[9] Citado em Jon Lee Anderton, Che Guevara: A Revolutionary Life, New York: Grove 1997, p. 636-637.
[10]
Notemos a ironia do fato de que o filho de Neeson é um xiita devoto, e
que o próprio Neeson às vezes fala sobre a sua futura conversão ao
islamismo.
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Fonte: http://boitempoeditorial.wordpress.com/2012/08/08/
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