sábado, 4 de agosto de 2012

Julgamentos de "Dom Casmurro"

 Hélio Guimarães*
 
A história da leitura de "Dom Casmurro" sofreu uma reviravolta na década de 1960, quando a crítica americana Helen Caldwell publicou "The Brazilian Othello of Machado de Assis". Nesse livro hoje famoso, que por incrível que pareça permaneceu inédito em português até 2002, Helen defendia pela primeira vez a inocência de Capitu, com ênfase e muitos argumentos (uns mais convincentes que outros, vale dizer).
A professora, tradutora e crítica transferia Bento Santiago, o Dom Casmurro, do lugar de vítima para o banco dos réus. O grande romance brasileiro, lido até então como romance de adultério, no qual a culpa "naturalmente" recaía sobre a personagem feminina, começava nova carreira: a de romance do ciúme de um homem, com todas as implicações psicológicas e sociais desse ciúme.
A partir dali, começou a se cristalizar uma ideia: a de que a "descoberta" de Helen Caldwell teria a ver com o fato de ela ler o romance de Machado de Assis fora do ambiente brasileiro. Professora de literatura grega e latina na Califórnia, um dos centros irradiadores do feminismo na década de 1960, Helen teria sido capaz de enxergar no romance detalhes que até então tinham passado despercebidos aos seus leitores habituais. Para homens e mulheres imersos numa sociedade patriarcal e machista, onde a violência contra a mulher é quase naturalizada, tinha sido impossível até mesmo supor a inocência da figura feminina.
A essa hipótese tentadora e interessante acrescentaram-se recentemente novos elementos, que por décadas estiveram fora do campo de visão dos leitores de Machado de Assis. De fato não foi uma mulher americana quem pela primeira vez cogitou, pelo menos em público, a inocência de Capitu, mas sim dois homens, um brasileiro e o outro americano.
Em 1939, F. de Paula Azzi, crítico sobre o qual pouco sabemos (aparentemente foi um dentista do Exército com interesse diletante pela literatura), problematizou a versão que o narrador constrói sobre a traição de Capitu, até então tomada como favas contadas. Já no início do único artigo que escreveu sobre Machado de Assis, publicado no "Correio da Manhã" do Rio, Azzi fazia uma pergunta atrevida a respeito de Capitu: "Foi ela adúltera ou inocente?"
Em poucos parágrafos, o crítico bissexto chegava a uma constatação inédita: "Veremos que falta no livro prova incontestável de adultério. Não se deve esquecer que as suspeitas de Casmurro começaram após a morte do amigo [Escobar], já então muito tarde para permitir segura comprovação. O certo é que o autor soube dispor tudo calculadamente, com o fito de implantar a dúvida no espírito dos leitores, evitando deixar vestígios positivos de culpabilidade".
O artigo de Azzi, publicado em 30 de julho de 1939, com o título "Capitu, o enigma de 'Dom Casmurro'", saiu novamente em 15 de dezembro do mesmo ano, com o título "O eterno enigma de Capitu", no jornal "Mensagem", de Belo Horizonte. Apesar da razoabilidade de suas hipóteses e argumentos, o artigo foi por muitos anos solenemente ignorado, pelo menos pela crítica mais influente. Esta continuaria a endossar ainda por muitos anos a versão do narrador Dom Casmurro, que chega ao fim do livro concluindo pela traição da mulher e do melhor amigo: "Uma cousa fica, e é a suma das sumas, o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me... A terra lhes seja leve!"
Alguns críticos mencionaram o artigo de Azzi, mas foi o pesquisador Ubiratan Machado quem trouxe o artigo do "Correio da Manhã" novamente à tona no seu "Dicionário de Machado de Assis", de 2008, reproduzindo-o na íntegra. Na coleção de Plínio Doyle, que está na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio, localizei o recorte do mesmo artigo publicado no jornal mineiro.
Recentemente, num curso sobre a recepção internacional de Machado de Assis, na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, eu e meus alunos nos demos conta de que, antes de Helen Caldwell, outro americano já havia chamado a atenção para o caráter enganoso do narrador e a possível inocência de Capitu.
O escritor, historiador e crítico literário Waldo Frank (1889-1967), num ensaio datado de 1952, que serviu de introdução à tradução de Helen, publicada em 1953, havia colocado com todas as letras a possibilidade da inocência de Capitu: "Desejava poder ter a certeza de que esta Introdução não será lida (destino usual, me dizem, das introduções), ou de que só será lida depois da leitura do livro. Assim eu ficaria à vontade para discutir a ambiguidade central de 'Dom Casmurro': a inocência ou culpa de Capitu, sem prejudicar a inocência do leitor no seu percurso de capítulo a capítulo".
A introdução de fato parece ter tido aquele destino usual das introduções, já que há pouquíssimas referências a ela na crítica machadiana posterior. Nem mesmo a tradutora Helen Caldwell, que sete anos mais tarde publicaria "O Otelo Brasileiro de Machado de Assis", fez menção ao ensaio de Frank, escritor muito conhecido em meados do século passado, estudioso da literatura produzida nas Américas. Entretanto, foi Helen quem levou adiante e às últimas consequências a hipótese da inocência de Capitu levantada pelo seu conterrâneo oito anos antes da publicação do livro sobre "Dom Casmurro".
Nessa história da recepção de "Dom Casmurro", tão cheia de reviravoltas, interessa menos a primazia da hipótese sobre a inocência de Capitu do que a sugestão aí contida de que a crítica depende tanto da "descoberta" individual como da disposição coletiva para legitimar a novidade interpretativa. Por que em 1939 e 1952 a hipótese da inocência não "pegou" (como se diz de certas leis), e tanto Azzi como Frank ficaram falando sozinhos?
Talvez porque apenas a partir da década de 1960, com todos os seus movimentos de contestação, a desconfiança em relação à autoridade do narrador e a hipótese da inocência de Capitu puderam ter alguma ressonância entre leitores que passaram a questionar os papéis tradicionais de homens e mulheres, as relações de gênero e o autoritarismo das estruturas sociais no Brasil. Ou seja, a efetividade de um achado crítico tem tanto a ver com a figura individualizada do crítico quanto com as possibilidades de assimilação desse achado pela comunidade de leitores.
O que se cristalizou a partir da leitura de Helen foi a célebre alternativa entre culpar ou inocentar Capitu. Nas últimas décadas foram promovidos até mesmo julgamentos públicos da personagem e do narrador, com defesas e ataques ardorosos de todos os lados. Isso parece pressupor que a leitura do romance pode e deve levar a uma conclusão e, no limite, à condenação de alguém, resultando no empobrecimento de um romance cuja grandeza se deve justamente ao fato de não se deixar reduzir a essa ou a quaisquer outras duas alternativas.
Nesse sentido, vale retornar ao prefácio de Waldo Frank de 1952 (infelizmente retirado das edições posteriores da tradução de "Dom Casmurro"). Lá, ele defende e sustenta a ambiguidade radical do romance, afirmando que a verdadeira resposta de Machado é que ele não tem nenhuma resposta, pois o que Machado de Assis sabe é a ambiguidade, e "a ambiguidade é a textura e a visão da vida presentes no livro".
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*Hélio Guimarães é professor da área de literatura brasileira na Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do CNPq.

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