sábado, 27 de outubro de 2012

O tigre na sombra


Cultura antecipa trecho inédito do novo romance de Lya Luft, que será lançado no dia 7, com sessão de autógrafos às 19h, na Livraria Cultura

Eu era uma menina cheia de problemas: tinha acessos de fúria ou de alegria sem explicação, vivia distraída, e se chamada de volta para a realidade me deixava num humor horrível. Ora queria dançar e voar, ora achava que me arrastava desajeitada e feia. Na hora de dormir tinha pesadelos, caía da cama, assustava Dália, por isso cedo nos deram quartos separado. Eu achei bom porque podia brincar diante do espelho, dentro do espelho, não importava.

Minha mãe mesmo depois de velha desfiava suas queixas: todo dia tinha aguentado minhas malcriações, eu era respondona, botava a língua para ela; sofria de anemia, febres inexplicadas, desmaios, eu desmaiava a toda hora.

(Para ela, era puro fingimento).

Quando algo me aborrecia demais, ou me assustava muito, eu me enfiava naquele funil por onde descia, descia, e acabava no chão. O médico de família, figura bonachona que ia de pediatra a obstetra, dizia com sua voz cansada (mas comigo sempre parecia meio divertido) ao meu preocupado pai:

– Meu caro, prepare-se. Essa sua filha é uma artista. Tem uma imaginação muito ativa, e vai te dar trabalho. No geral, tirando o pequeno defeito, a saúde é muito boa. Mas essa cabecinha...

Além de tudo eu me recusava a fazer o que, com ou sem defeito, se esperava das boas meninas: fazer alguma coisa útil. Não pode dançar, mas pode bordar. Não pode correr, mas pode cozinhar. Pode jogar cartas com a mãe e as amigas quando uma delas falta. Eu, por natureza ou para não me deixar escravizar, recusava. Se era obrigada fazia tudo errado, para que desistissem. Com o tempo desistiram, essa menina não tem jeito mesmo.

Mas até lá, já na adolescência, brigas frequentes, gritos, lágrimas, às vezes castigo.

Minha mãe repetia:

– Essa aí, que dizem ser tão inteligente, nem conhece os naipes num baralho.

(A perna curta ela deixava nas entrelinhas.)

A mãe tinha razão. Eu nem conhecia os naipes do baralho que ela curtia com amigas, não poderia nunca dançar nem correr, nem seria elegante ou bonita. Não ia namorar, casar, ter lindos filhos.

Quem ia querer uma moça assim meio tortinha?

Então me preparei para ser algo que não exigisse boas pernas, beleza e saúde. Podia ser pintora, escritora. Contadora, como meu pai. Advogada, como um dos tios.

Num daqueles ruidosos almoços de família minha irmã anunciou algo que não havia me contado ainda: seria uma bailarina clássica famosa. Minha mãe confirmou abrindo um raro grande sorriso, acabava de matricular a filha perfeita numa escola de dança.

Meu coração saltou na boca, por que a mim ninguém perguntou se eu também queria? Mas logo reconheci a tolice, como uma menina meio aleijada poderia dançar?

Alguém lembrou de me perguntar:

– E você, Dodinha, o que você quer ser quando crescer?

Eu então disse:

– Quero ser entendedora do mundo.

Os adultos sorriram com aquele ar de quem vê um bicho interessante num zoológico.

Tia Carola perguntou:

– Mas que faculdade você vai fazer para isso?

Respondi:

– Eu vou ler todos os livros.

Meu pai veio em meu socorro:

– Isso mesmo. Dóda, mas cuidado, minha flor, não acredite em tudo que está nos livros, nem pense que tudo está nos livros.

Ele foi a única pessoa no mundo a me chamar de “minha flor” – embora a flor fosse Dália.

Quando chegava o tempo de escolher uma faculdade, cheguei a dizer, para agradar meu pai, que pensava em Ciências Contábeis, ia trabalhar em seu pequeno escritório. Seria uma forma de nunca me afastar dele.

– Não faça isso – ele respondeu com firmeza. – Você detesta números, é péssima nisso. Vá fazer alguma coisa que lhe dê alegria, onde possa usar sua inteligência, sua imaginação, como filosofia, sociologia, artes, direito, sei lá. Mas não faça como eu, minha flor: não se boicote.

POR LYA LUFT

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* O livro O Tigre na Sombra é um lançamento da Editora Record (128 pgs, R$ 29,90). Acima, reprodução de uma tela de Susana Luft, filha da escritora
Fonte:  http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a3930999.xml&template=3898.dwt&edition=20686&section=1029

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