quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Sobre a “maciça presença” do relativismo

 
Qual o oposto do relativismo? É difícil responder a essa pergunta, até porque não sabemos, sequer, o que é o relativismo. Dado que não existe uma autoridade jurídica que imponha que sentido deve ter esse termo, tentaríamos explicá-lo recorrendo a uma noção dicionarizada. O relativismo é o sistema de crenças segundo o qual não há verdade absoluta, mas apenas diferentes perspectivas com valor relativo. Para simplificar a questão, podemos nos ater ao aspecto ético. Nesse sentido é que Bento XVI registrou que “oggi un ostacolo particolarmente insidioso all’opera educativa è costituito dalla massiccia presenza, nella nostra società e cultura, di quel relativismo che, non riconoscendo nulla come definitivo, lascia come ultima misura solo il proprio io con le sue voglie” (Discurso de 6-VI-2005). Relativista é quem nada reconhece como definitivo, em poucas palavras. Deixo de lado a questão do “ego com os seus desejos”, embora seja ela também passível de crítica, porque usamos um círculo de temas que sempre depende da existência de um outro (mesmo que não seja uma pessoa).

Retomo a pergunta que aparece no início do parágrafo anterior. A resposta não é difícil. O oposto de nada reconhecer como definitivo é não ser o caso de nada se reconhecer como definitivo; um rearranjo da frase permite dizer que o não relativista é aquele que reconhece alguma coisa como definitiva (fora do próprio ego, numa tese lateral, mas compatível). No nosso sentido particular, um norte ético, um valor não negociável. Terei em vista a denúncia comum de que nossa sociedade e cultura são relativistas.

* * *
Será verdade, estabelecidas essas distinções mínimas, que vivemos em tempo de predominante relativismo? Vou propor uma tese um pouco polêmica. É possível que vivamos, ao contrário, em tempo de muitas teses definitivas fundadas em valores manifestamente absolutos.

Toda tese desse tipo sofre de um problema aparentemente grave. As fontes de que fazemos uso para afirmar o que e como pensam nossos contemporâneos são finitas, mas inabarcáveis. Eles expressam suas opiniões na rua, nos jornais, em casa. Existe um fosso enorme entre opiniões expressas publicamente e opiniões expressas em privado — e outro fosso, na verdade um gradual esburacamento, entre o que confessamos ao público, à família, a nós mesmos e a ninguém (nem a nós mesmos). Por isso, usarei como fonte uma entidade vaga, mas muito referida e influente, chamada ‘tendência da opinião pública’. Um exemplo: a tendência da opinião pública é claramente favorecer o aborto como prática legítima, ao menos em alguns casos. Pessoalmente, não creio que o aborto seja válido sequer no caso de estupro. Em todos os casos, abortar é, precisamente, matar um ser humano dentro do útero da sua uma mãe, e não há sutileza argumentativa capaz de dizer que A, sendo A diferente de B, é B. Se sou contrário ao assassinato, segue-se que sou contrário a toda ação cujo núcleo seja “matar alguém”, mesmo que esse alguém seja um feto, e mesmo que haja dúvida sobre a humanidade desse feto. Essa dúvida é razoável, e assassinar nunca é razoável. Quero crer que, não tendo respeitos humanos, não teria dificuldades em dizê-lo em público — tanto é que o estou dizendo agora. Mas não é assim que normalmente acontece. Há opiniões minhas que prefiro não compartilhar, seja porque não interessam ou não devem interessar a ninguém, seja porque não tenho segurança suficiente para as sustentar. E é até possível que as contrarie numa conversa, tornando o menos certo mais certo, ou vice-versa. Ninguém, absolutamente ninguém, tem controle preciso disso; a começar porque as inconsistências epistemológicas, especialmente em meios ‘fundamentalistas’ (cristãos ou não), são maiores do que em meios onde prevalecem opiniões mais porosas (porque quem afirma categoricamente A provoca um aumento drástico na probabilidade de que a negação de A venha a ser eventualmente sustentada, mesmo indiretamente, em outra ocasião, como consequência de alguma outra afirmação categórica B que também faça parte do meu conjunto de crenças expresso ou inconfessado). Desfaço-me de todos esses problemas dizendo, simplesmente, que tomo como fonte o que pensa publicamente o ocidental médio. Os meios de comunicação de massa facilitam o reforço de tendências, e todo mundo possui, mais ou menos, as mesmas opiniões públicas em estado de default. Quem não o percebe, ou está sendo demasiado criterioso com algo dificilmente cristalizável, ou tem dificuldade em captar teses vigentes.

Como são muitas as tendências em matéria ética, vamos escolher um só tema. Aleatoriamente, escolho o tema do valor dos animais e do seu sofrimento. Parece-me verdadeiro que a tendência é valorizar bastante o tema, embora em parte a visão de mundo de nossos antepassados — como, digamos, os do séc. XIX — esteja de acordo com ela.
As premissas da opinião pública a esse respeito são as seguintes:

(1) Os animais sofrem.

(2) Causar sofrimento nos animais sem motivo é imoral.

(3) Os que causam sofrimento nos animais sem motivo devem ser fortemente punidos.
Vamos colocar essas premissas 1-3 em conflito com o relativismo. Vamos lembrar que:

(4) Se A é relativista, A acredita que, para qualquer valor moral x escolhido ao acaso, x é relativo.

Creio que (4) seja consistente com o que dissemos nos primeiros parágrafos. A linguagem em que a proposição foi expressa não deve assustar o leitor: ela só pretende clarificar a proposição, i. e., torná-la mais exata e palpável, como o exige o cuidado filosófico mais elementar.

Vamos supor que as sentenças 1-3 são objeto da crença de Gaspar, um sujeito qualquer ocidental. Assim,

(5) Gaspar acredita que os animais sofrem, que causar-lhes sofrimento sem motivo é imoral, e que quem pratica esse tipo de tortura deve ser punido.

Nosso Gaspar é mais um entre meus contemporâneos. Como é uma premissa (aceita acima; mas se o leitor não a aceita, não é obrigado a ter por verdadeiras as consequências que virão abaixo) o fato de que Gaspar crê que a tendência da opinião pública, ao menos nesse ponto, está correta, e como também é uma premissa o fato de que o Ocidente contemporâneo, que inclui Gaspar, tende ao relativismo, então devo concluir:

(6) Gaspar é relativista e Gaspar acredita fortemente nas proposições (1) – (3).

Dizer que Gaspar é relativista não é bem um fato, mas uma atribuição de uma propriedade comum em dada época a uma pessoa escolhida ao acaso, fazendo-se uso da probabilidade. O leitor observador concordará que é bastante comum que uma pessoa escolhida ao acaso acredite em 1-3 e seja, como a opinião pública manda, relativista. Quase todo texto que leio sobre cultura, comportamento e sociedade ocidental, “às direitas e às esquerdas”, aceita ambas as premissas ao associar o relativismo à discussão sobre o sofrimento dos animais e ao dizer que o relativismo é uma tendência; ou que é uma “maciça presença na nossa sociedade e cultura”, como disse Bento XVI.

Não está previsto no Código Penal de 1940, nosso atual código, qualquer punição para a tortura dos animais. No contexto do legislador de 1940, se alguém matasse um cão, responderia possivelmente por crime de dano e, na esfera cível, teria de indenizar o seu dono. Animais eram tratados, juridicamente, como patrimônio, e não como sujeitos capazes de sofrer e de ser protegidos em si mesmos. Que alguém deva ser punido por fazer sofrer, sem motivo, um animal, implica uma mudança considerável (e efetivamente esta mudança está sendo introduzida na legislação penal, acompanhando um movimento que é, antes de mais nada, ético). Assim, são diferentes a opinião pública vigente nos anos 40 do século XX e a vigente na segunda década do século XXI. O acento, ao menos, é mais forte, hoje, nas proposições 1-3, do que era nos anos 40, considerada a opinião pública, e mesmo a opinião individual, familiar e privada, “inter amicos”. Um Gaspar dos anos 40, provavelmente, assumiria 1-3 com reservas, e talvez sequer excluiria a proposição (3), ou excluiria dela o advérbio de modo “fortemente”. Estatisticamente, e isso nada tem a ver com o que é certo e o que é errado, mais pessoas hoje do que nos anos 40 abraçam com convicção a proposição (3), e se comovem profundamente com o fato d qual (1) é a descrição.
 
Espero que tenha ficado claro, com o que disse, que o conjunto de crenças expresso por (1) a (3) convive tranquilamente, ou muito frequentemente, com a doutrina expressa por (4), o relativismo.

Voltemos a (6). Se Gaspar é relativista, e escolhemos, por exemplo, a proposição (3), ligando-a a um cão, temos a seguinte sentença (sim, já fiz uma confusão enorme entre ‘sentença’ e ‘proposição’: o leitor me há de perdoar, sabendo que a distinção não é importante aqui):

(7) Gaspar acredita fortemente que quem faz o cão sofrer sem motivo deve ser punido e que o sofrimento do cão é um valor relativo.

É provável que, confrontado com (7), o nosso Gaspar médio diga: “ei, tem alguma coisa errada aí! Como assim, o sofrimento do cão é um valor relativo? Os cães não são coisas!” Se João tiver torturado um cão, dificilmente convenceremos Gaspar de que João estava apenas manifestando sua compreensível indiferença por esses animais. Para Gaspar, na verdade, nada justificaria a tortura do cão. A vida do animal é algo tão absoluto — ou seja, indiferente à sutileza dos pontos de vista relativos sobre o valor da sua vida — que quem a viola torpemente deve ser inclusive punido. Quando dizemos — e sempre tenho ouvido isso — que quem tortura um animal pratica uma torpeza, estamos dizendo que nada justifica a prática desse ato (lembre-se que torturar um animal é fazê-lo sofrer sem motivo!). Ou seja, que esse ato é absolutamente errado. Devemos concluir, então, que Gaspar tem crenças contraditórias. Confrontado, é bem provável que, ao menos nesse tema do sofrimento do cão, Gaspar se declare, ou melhor, seja obrigado a declarar-se não-relativista. E se os animais não são coisas, supõe-se também que as pessoas também não são.

E quem é não-relativista para um só valor x qualquer, não é relativista em nenhum sentido. Basta dizer que a sentença comumente aceita diz que A é relativista se, para qualquer valor (nesse caso, moral) arbitrário x, x é relativo. Se encontramos um só x que não seja um valor relativo, não podemos mais aplicar a propriedade ‘relativista’ a essa pessoa. Ao contrário do que diz o adágio popular, a exceção não confirma a regra: é um passo elementar da lógica de ginásio que a exceção prova que a regra é falsa. Gaspar escolhe: ou deixa o cão ser torturado impunemente, ou abdica do valioso título de relativista. E essa é uma consequência analiticamente necessária, quando usamos o sentido comum de relativismo. (O que vemos é que, logo, o confrontado se põe a torturar a lógica para se livrar dessas duras consequências.)

Escolher algum valor como absoluto não é simplesmente declará-lo absoluto. É agir como se ele fosse absoluto. A atitude de Gaspar diante dos animais é a mesma que a de um muçulmano convicto ou de uma feminista convicta diante de outras questões. Todos eles, Gaspar e seus colegas religiosos e feministas, agem com base numa valoração absoluta, e não relativa, de certos bens.

Convido o leitor a rever os passos e as premissas que aceitou, e a examinar se se deve concluir o que digo nos dois parágrafos seguintes.

Com isso procurei mostrar que só vivemos num tempo aparentemente relativista. Na verdade, nós e Gaspar, tanto os que se creem relativistas quanto os que não se creem relativistas, como eu, acreditamos fortemente (no sentido de Charles Taylor de strong belief), e absolutamente, em muitas coisas. O número enorme de pessoas que se incluem na posição de Gaspar não me deixa mentir. Eu, pessoalmente, nunca vi um relativista de facto. Os que defendem o aborto o defendem com unhas e dentes. Ateus não só desconfiam de Deus, como não querem que ele exista e não querem que ninguém se engane com essa crença absolutamente errada em sua opinião. Talvez sejamos até mais assertivos e mais favoráveis a valores absolutos que nossos antepassados. Que os valores defendidos sejam falsos (apenas aparentes) ou verdadeiros é outra questão. Parece-me mais adequado falar-se numa simples mudança parcial de valores, e não em relativismo.*

Talvez essa confusão toda é que tenha motivado Joseph Ratzinger, formidável intelectual,  a usar em outras ocasiões uma expressão tão contraditória, embora aparentemente verdadeira, como “a ditadura do relativismo”.** Porque, se estou correto,  não temos nem ditadura (porque ela pressupõe o uso efetivo da força) e nem relativismo. O fato de que alguns queiram que exista uma ditadura do relativismo apenas para que possam condená-la retoricamente — expediente comum dos puritanos e dos santarrões — não é capaz de criar a realidade da ditadura.

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* Uma nota biográfica. Quando morei numa antiga residência universitária em Munique, lugar que o famoso oponente de Habermas teria visitado muitos anos antes, quis desfazer essa dúvida conversando com pessoas próximas a ele. Um amigo meu que o conhecia bem me disse que, sendo contraditória a tese da “ditadura do relativismo” (e não é de uma análise superficial que falava), ainda assim fazia sentido como expediente retórico. A mim me parece que contradições não servem para nada. Existe claramente uma pressão (mas não coerção) para dizermos que (a) nada é moralmente verdadeiro, e simultaneamente que (b) algumas coisas são absolutamente verdadeiras em sentido moral, como o valor intrínseco dos animais e os sentimentos não-negociáveis da gestante diante de um feto indesejado. O fato de que essa posição preferencial seja contraditória não nos autoriza a usar uma expressão contraditória para a descrever e condenar. Nem se diga que o relativismo é a crença de que nada pode ser afirmado fora do campo científico, como ouvi em outra ocasião. Essa posição é a do cientificismo, que é incompatível com o relativismo (de todas as perspectivas possíveis, o cientificismo diz que apenas a científico-naturalista é verdadeira; logo, não é uma posição relativista). Condenações confusas são capazes de convencer apenas quem já estava convencido de antemão.

** Além disso, mesmo um antropólogo cético está autorizado a concluir, com base na comparação de centenas de culturas de todos os tipos, que há mais motivos para dizermos que existe uma ética comum do que afirmar, toscamente, que “tudo é relativo” (“The resemblances in ethical concepts so far outweight the differences that a sound basis for mutual understanding between groups of different cultures is already in existence“, escreveu R. Linton em An Anthropologist’s Approach to Ethical Principles, in H. G. Blocker (ed.), Ethics, an Introduction, New York, Haven, 1986, p. 98). Enquanto tentarem enfiar goela abaixo dos que se consideram relativistas uma visão de mundo factualmente dogmática, retórica e abusiva do slogan “eu sou careta mesmo”, ninguém se convencerá de nada. A apologética triunfalista só tem produzido ceticismo.
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Fonte: http://www.dicta.com.br/categorias/filosofia/17/09/2012.
Filed under: Filosofia,Geral,História,Sociedade incluído por Julio Lemos
Data do post: 17 de setembro de 2012

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