terça-feira, 31 de outubro de 2017

A felicidade de cada um

Lya Luft Lya Luft*

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No curso da vida, a gente faz umas descobertas engraçadas sobre si mesmo

Somos, entre tantas coisas – animais predadores, meio obtusos, às vezes gloriosos –, uns eternos buscadores. Deve ser uma das molas de nossa vida, mais até do que sexo e poder. Essa busca meio indeterminada que nos faz sair da cama, tomar café, ver notícias no jornal e na TV (porque nos julgamos de ferro), ir para o trabalho ou a escola ou simplesmente ficar em casa. Buscamos eternamente, eu sei, essa estranhíssima coisa chamada felicidade: tão diferente em diferentes fases e até diversos lugares.
Menina, felicidade era segurança amorosa: os pais ali perto, o irmãozinho, as funcionárias que cuidavam de nós, o jardineiro conversando com plantas, a chuva na vidraça, o vento nas árvores, a lareira ou a perspectiva da praia, um dia de feriado para não ter de ir à escola (não, não fui boa aluna...). Sobretudo, estar ali em nossa casa, no meu quarto, a cama embutida em prateleiras cheias dos meus melhores amigos. Décadas depois, alguém me contou que ao visitar meu pai, em  seu escritório em casa, e admirar as prateleiras de livros forrando as paredes, meu pai fez um gesto simples e disse: "Esses  são os meus amigos".

Sem muito programar, que sou mais de impulsos, comecei a aprender a arte de recusar.

No curso da vida, a gente faz umas descobertas engraçadas sobre si mesmo, como certa vez quando, falando com jornalistas antes de uma palestra em São Paulo, um deles, muito jovem, disparou a pergunta que nunca tinham me feito: "Qual é o seu sonho de consumo?". Parei, sorri, surpreendida, e sem precisar pensar respondi: "Meu sonho de consumo? Ficar quieta". Era uma longa fase de muitas viagens para palestras e lançamentos. Era bom curtir o afeto dos leitores, era bom promover um livro.
No avião, voltando para casa, fui monologando coisas como: "Ora, se eu quero mesmo ficar mais quieta, por que não faço isso? Por que não diminuo esse giro de viagens e encontros e não curto mais o sossego que me falta?". Sem muito programar, que sou mais de impulsos, comecei a aprender a arte de recusar – nada fácil. Os convites mais simpáticos (quase todos são assim) tiveram de ser reduzidos, e como fazer essa seleção? Sempre havia uma razão verdadeira: estar preparando um novo livro, atender alguma coisa na família ou simplesmente estar cansada. "E se um dia não te convidarem para mais nada?". Bom, aí eu também não vou gostar nada! O jeito é dosar.
Fiquei bem mais feliz assim. Certa vez, perguntaram para minha filha onde seria mais fácil encontrar a mãe, e ela respondeu: "Em casa". Há quem estranhe: "Você quase não tem vida social, não frequenta os mais novos restaurantes, nem clubes, nem grupos...". Nada contra, mas para mim foi uma conquista. Uma obediência ao meu mais antigo e honrado desejo. Quando estou nessa falsa vagabundagem lírica, talvez de livro na mão até sem ler nem pensar nada especial, é que as coisas "se fazem" dentro de mim: futuros personagens, tramas, poemas, ou só encantamentos fugazes. Pode ser que nesta fase da vida eu mereça estar assim, com família, amigos, cachorrinhas, paisagem linda, o refúgio na Serra, música, livros, e tantos ótimos programas que – apesar dos protestos – a boa televisão oferece: agora, um concerto de Mozart para piano, tocado na TV por um Barenboim jovem.
(E ainda por cima, neste momento, começa a chover mansinho.)
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* Escritora
Fonte:  https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/lya-luft/noticia/2017/09/a-felicidade-de-cada-um-cj86l43i700i301pdn7996ju1.html
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segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Desapegar-se em Noronha? Nunca um mosquito custou tão caro

Luiz Felipe Pondé*





Não acredito na possibilidade de desapego no mundo contemporâneo, em que desapego é em si um produto. Por exemplo: que tal desapegar um pouco no Butão? Ou em Noronha? Belo espaço natural. Nunca um mosquito custou tão caro.

Desapegar no mundo da eficácia e do resultado é coisa de gente fina. Mortal mesmo vende a mãe para desapegar um pouco no domingo. Sei que está na moda o desapego e que os tontos ficam nas redes sociais falando disso. Como falam também que "Gratidão!" (com as mãozinhas juntas) faz você dormir bem à noite.

Qualquer pessoa minimamente treinada no repertório das grandes religiões e suas distintas formas de espiritualidade (das quais vêm ideias como gratidão e desapego) sabe que, se você pratica uma dessas virtudes "para dormir bem à noite", você não as está praticando de verdade. Ninguém é grato para conseguir algo ou desapega viajando de "business class".

A ideia de desapego é bem séria, seja na espiritualidade, seja na filosofia, a começar pela grega. No grego, "aphalé panta" significa essa ideia de "desapegar-se de tudo que é ou tudo que existe" no chamado neoplatonismo.

Palavras como "apathéia" ou "ataraxia" estão muito próximas dessa noção de desapego no estoicismo e no ceticismo. No budismo, no cristianismo, no hinduísmo, a mesma temática. Na mística medieval cristã ou islâmica, ideias como "desprendimento" ou "aniquilamento" também retomam a mesma temática do "prazer" que seria se desapegar das coisas do mundo. Na literatura de peso, Liev Tolstói (1828-1910) é um representante importante dessa busca. Em seu último romance, "Ressurreição", o personagem principal, Nerhliudov, passa todo o romance em busca do desapego, sonho do próprio Tolstói.

Quando se fala de desapego das coisas do mundo, a primeira ideia que vem à mente é o desapegar-se das coisas materiais. E, aí, em se tratando de nosso mundo contemporâneo, já fica difícil, uma vez que quase tudo que importa passa pela aquisição de um bem material, mesmo que este seja uma passagem para a Mongólia. Ou uma pousada na praia. Tudo pago em diárias, o que significa que você tem que pagar para desapegar. Porque, lembremos, quem mora embaixo do Minhocão não é um desapegado.

A busca do desapego deita raízes no fato de que o mundo cansa. Numa sociedade em que o cansaço é um grande "passivo psicológico" como a nossa, desejar o desapego é absolutamente normal. O problema é que, como em toda demanda de verdade, o mercado captura a própria demanda "natural" e devolve como commodity. Precifica a busca e vende para você de volta.

A literatura de autoajuda é a forma mais banal desse processo, prometendo a você que, na compra do livro X ou na participação no workshop Y, você conseguirá o tal do desapego. Evidente que mentem. O desapego é um processo doloroso que implica, na maioria dos casos, perdas profundas. Não é coisa que sirva ao papinho da "vida é feita de escolhas". Está mais para experiência avassaladora do fracasso do que para o tédio do sucesso. Desapegar-se é próximo da "calma trágica", descrita em personagens como Etéocles (filho de Édipo), da trilogia tebana de Ésquilo, ou Antígona (filha de Édipo), da tragédia que carrega seu nome no título, de Sófocles. Ésquilo viveu entre os séculos 5 e 6 a.C. e Sófocles no século 5 a.C..

O desapego fala do cansaço do desejo. E nosso mundo gira ao redor do desejo. Fala do perder-se, não da obsessão por uma alimentação balanceada. O "objeto" mais importante no desapego (aquilo de que você deve desapegar-se se quiser pensar a sério em fazê-lo) é o próprio Eu. E, aí, a coisa pega. "Ser você mesmo" cansa mais do que escalar o Everest. O Eu é um eterno adolescente chato em busca de autoestima. Aliás, a economia da autoestima é sinal de apego.

O filósofo Emil Cioran (1911-1995) escreveu em seu diário "tornar-se modesto por cansaço, por falta de curiosidade". Isso é desapego. Algo a que você chega não pela vontade soberana, mas pela exaustão fisiológica. Aliás, parafraseando o próprio Cioran sobre a preguiça, eu diria que desapego "é o ceticismo da matéria". Boa semana.
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*  Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião, ciência. 
Fonte:  http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2017/10/1931347-desapegar-se-em-noronha-nunca-um-mosquito-custou-tao-caro.shtml

domingo, 29 de outubro de 2017

Inédita há quase sete décadas, tradução de Mario Quintana para "O Pequeno Príncipe" é publicada

Dulce Helfer / Divulgação

Obra do poeta gaúcho ficou esquecida na gaveta até editora descobri-la entre outros papéis

Depois de quase sete décadas engavetada, a versão de Mario Quintana para um dos clássicos da literatura infantil universal poderá ser finalmente conhecida. Acaba de chegar às livrarias a tradução de O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry (1900 – 1944), assinada pelo poeta gaúcho.
O texto deve ter sido preparado por Quintana entre o final dos anos 1940 e início dos 1950, época em que a Gallimard, editora do volume original em francês, esteve aberta a propostas de publicadores brasileiros. A Melhoramentos, que contava com Quintana no seu time de tradutores, entrou no páreo, mas quem levou a melhor nas negociações foi a Agir, que lançou o sucesso editorial em 1952. Foi assim que o Brasil conheceu a tradução de Dom Marcos Barbosa. Já a de Quintana ficou inédita até agora.
– A tradução de Quintana ficou guardada, esquecida. Nos anos 1980, os editores da Melhoramentos resolveram fazer uma faxina na empresa, aí descobriram essa versão do Quintana entre outros papéis. Mas foi preciso esperar mais 30 anos, até que a obra entrasse em domínio público, para que finalmente fosse publicada – explica o poeta Armindo Trevisan, amigo de Quintana e responsável pelo prefácio, notas de rodapé e glossário do volume.
 
O clássico entrou em domínio público em 2015, no entanto a Melhoramentos segurou a publicação até agora para não competir com a avalanche de edições que chegaram ao mercado. De lá para cá, quase uma dezena de editoras passaram a trabalhar a obra, com traduções de nomes conhecidos na literatura brasileira, como Frei Betto (pela Geração Editorial) e Ferreira Gullar (Agir).
Trevisan não gosta de comparações entre tradutores, mas afirma que o poeta gaúcho encontra soluções mais criativas para alguns trechos do livro:
– Pela agilidade do fraseado, pela melodia e pela naturalidade com que o livro flui, temos a impressão de estar lendo um texto transparente, com um estilo muito parecido com o do próprio Saint-Exupéry.
Muito conhecida na tradução de Dom Marcos, a frase "tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas", foi reescrita por Quintana como "És responsável, para sempre, pelo que domesticaste". Para Trevisan, trata-se de uma tradução correta,  mas que deixa de lado o encantamento do verbo "domesticar",  da frase original em francês: “Tu deviens responsable pour toujours de ce que tu as apprivoisé (domar, domesticar)”.  
Melhoramentos / Divulgação
Frase clássica do livro ganha versão diferente na tradução do poeta gaúcho
Para muitos leitores, a faceta de tradutor de Quintana é desconhecida, mas foi a principal fonte de sustento do autor por mais de 20 anos. Entre 1934 e 1955, trabalhou para a editora Globo, traduzindo Proust, Balzac, Voltaire, Graham Greene, entre outros.
– Há muitas anedotas acerca da vida de tradutor de Quintana, mas a verdade é que era um perfeccionista, dedicado ao trabalho. Falava fluentemente francês e espanhol, mas chegou a traduzir também do inglês, aprendendo a partir do dicionário. Tinha o gênio do poeta para dar correção e musicalidade ao que traduzia – avalia Trevisan.

Três olhares

Texto original

"Mon dessin ne représentait pas un chapeau. Il représentait un serpent boa qui digérait un éléphant. J'ai alors dessiné l'intérieur du serpent boa, afin que les grandes personnes puissent comprendre. Elles ont toujours besoin d'explications."
Tradução de Dom Marcos Barbosa
"Meu desenho não representava um chapéu. Representava uma jiboia digerindo um elefante. Desenhei então o interior da jiboia, a fim de que as pessoas grandes pudessem compreender. Elas têm sempre necessidade de explicações detalhadas." 
Tradução de Ferreira Gullar
"Meu desenho não representava um chapéu. Representava uma jiboia que digeria um elefante. Desenhei o interior da cobra para que os adultos pudessem compreender. Eles estão sempre querendo explicações."
Tradução de Mario Quintana
"O meu desenho não era nenhum chapéu. Era o desenho de uma boa digerindo um elefante. Mas como os grandes não podiam compreendê-lo, eu fiz um outro desenho: desenhei o interior da boa, de modo que eles pudessem ver claramente. Os grandes sempre precisam que a gente lhes explique as coisas."
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REPORTAGEM POR  Alexandre Lucchese


Bullying

Lya Luft*

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Não só os assédios ficaram mais violentos como, espalhados em redes sociais, difundem a humilhação, o desamparo e a dor em grupos maiores e a situação se torna grave

Eu não ia escrever sobre, porque não se fala em outra coisa. Mas, talvez por isso mesmo, e porque alguns leitores pediram, estou comentando o caso. Vários ângulos, todos difíceis, todos espinhosos, perigosos, sempre tristes. Num excepcional período de violência física ou emocional, a qualquer estranhamento saímos de dedo em riste ou brandindo uma espada (pode ser verbal) feito serial killers. Estressados por condições da própria vida, da cidade, Estado, país e ultimamente também do vasto mundo, zombarias ou brigas que em outros tempos podiam se resolver no pátio da escola, ou com alguma conversa mais sensata, hoje às vezes se tornam dramas. Não só os assédios ficaram mais violentos como, espalhados em redes sociais, difundem a humilhação, o desamparo e a dor em grupos maiores e – todo mundo irritado, inconscientemente assustado – a situação se torna grave. Mesmo assim, habitualmente não nos matamos nem matamos os outros por isso. 

Que os deuses inventem sempre um adulto em casa, ou na escola um professor querido e respeitado, para ajudar a vencer desafios emocionais e superar eventuais perseguições. Isso pode salvar uma vida.

Como ajudar, abrandar, reduzir o problema que se agrava? Tudo começa em casa, o que parece clichê: falo na autoestima da meninada. Na sua segurança e na capacidade de enfrentar desafios. Isso vem, em parte, com a própria personalidade, mas depende também do ambiente familiar. De poder-se abrir com pai ou mãe numa dificuldade maior. Se faltam estímulo, aprovação, parceria e até alegria na família, o adolescente ou a criança é mais vulnerável. Paternidade, maternidade, já são bastante difíceis, apesar de toda a felicidade e ternura que nos dão. Ninguém pode evitar que um filho tropece na calçada e quebre a perna, por exemplo. Mas é preciso estar atento a coisas bem mais sutis do que isso. Se um pai, ou mãe, cujo filho acaba de matar colegas e ferir muitos outros, ou que se suicidou, nunca notou que seu filho sofria com zombarias ou deboches, nesse amor talvez houvesse lacunas ou muros.

Um filho mais quieto nem sempre está deprimido ou a perigo. Pode só querer ficar em paz, sem intromissões dos pais (amor pode ser excessivo, sim...), querer refletir, curtir uma descoberta ou até uma perda. Crescer dói. Adolescentes, como as crianças, são pessoas. E sofrem, têm perplexidades, angústias, solidão, dramas e dilemas. É bom saber que há por perto adultos amorosos e interessados. É bom ter a quem recorrer sem medo.
Porém: se amar é cuidar, é também ficar atento sem histeria. Interessado, mas não intrometido. Amoroso, não esmagador. (Quais os limites? Nem eu sei, criar filho é um pouco tatear no escuro.) E não nos enganemos: o pai, a mãe, não são o "melhor amigo ou amiga" dos filhos ou filhas: isso eles têm na escola, no bairro. Pais devem ser pai amigo e mãe amiga: aquele que, o filho sabe, sente, pode acolher, orientar, abraçar como nenhum amigo.
Que os deuses inventem sempre um adulto em casa, ou na escola um professor querido e respeitado, para ajudar a vencer desafios emocionais e superar eventuais perseguições. Isso pode salvar uma vida.
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* Escritora
Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/lya-luft/noticia/2017/10/bullying-cj9agftkj030y01o6qb9p4eya.html
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A FÉ EM MOVIMENTO


Resultado de imagem para Estátuas de Martinho Lutero de instalação do artista Ottmar Hoerl em praça em Wittenberg, cidade ao Leste da Alemanha,
Oitocentas Estátuas de Martinho Lutero de instalação 
do artista Ottmar Hoerl em praça em Wittenberg, 
cidade ao Leste da Alemanha, 
onde o religioso protestou contra a Igreja Católica.

Por João Luiz Rosa/ De São Paulo

"Quebra tudo! Todo mal tem de ser desfeito em nome de Jesus", diz o homem, sem aparecer no vídeo, enquanto a mulher, que ele chama de "capeta chefe", quebra vasos e utensílios religiosos. O local é o Morro do Dendê, na Ilha do Governador, zona norte do Rio; o homem, um traficante supostamente evangélico; e a mulher, a mãe de santo obrigada a destruir o próprio terreiro. Outra cena: em Manhattan, membros da Igreja Presbiteriana da 5ª Avenida entram em seu templo histórico - construído em 1875, pelo mesmo arquiteto que projetou a Bolsa de Valores de Nova York - para ouvir o sermão dominical. Ao púlpito, em vez do pastor, está Timothy Dolan, arcebispo de Nova York e maior autoridade católica da cidade.

A primeira cena foi fartamente exibida na TV e na internet nas últimas semanas; a segunda ainda não ocorreu - está marcada para domingo, numa comemoração pelo Dia da Reforma Protestante, o movimento religioso que completa 500 anos no dia 31. Qual cena representa melhor a herança da Reforma? O que persiste do cisma que quebrou a hegemonia da Igreja Católica Romana e abriu espaço para a multiplicidade do pensamento religioso no Ocidente?

Para muitos, os dois casos são extremos. Após a divulgação do vídeo, líderes evangélicos vieram a público para criticar a ação e dizer que é impossível ser evangélico e traficante ao mesmo tempo. Da mesma forma, tentativas de reaproximação entre católicos e protestantes são vistas com desconfiança por muitos segmentos nos dois rebanhos. Os episódios mostram, porém, como um movimento iniciado no século XVI continua a desencadear ações tão diferentes, sob um amplo espectro de pensamento. Como em qualquer revolução, julgar a Reforma por um ou outro aspecto isolado não dá conta da sua complexidade.

Em sua origem, a Reforma não era um movimento separatista. A história começou em 31 de outubro de 1517, quando Martinho Lutero, um monge agostiniano, afixou 95 teses na porta da igreja do castelo de Wittenberg, na Alemanha. O documento trazia críticas severas à Igreja Católica Romana, em especial ao comércio das indulgências, uma declaração de perdão dos pecados que Roma vendia para financiar a construção da Basílica de São Pedro.

Quatro anos depois, Lutero foi excomungado, mas o descontentamento já se espalhara pela Europa, lançando as bases da Reforma. O movimento se apoiou em cinco princípios - os chamados "solas" em latim: somente a fé, somente a Escritura, somente Cristo, somente a graça, glória somente a Deus. O termo "protestante" vem de uma tentativa do Sacro Império Romano-Germânico de reverter a liberdade concedida às novas igrejas, em 1529. Príncipes alemães que haviam se convertido protestaram contra as medidas - e o nome "pegou".


AP
A pedido do imperador Carlos V, Martinho Lutero se apresentou em 17 e 18 de abril de 1521 em assembleia 
na cidade de Worms, para responder a acusações de heresia
Da Europa, a Reforma se espalhou para a América do Norte, em especial os Estados Unidos, país fundado por puritanos ingleses, e, bem mais tarde, para o hemisfério Sul, incluindo América Latina, África e Ásia. É onde, hoje, o protestantismo mais cresce. No Brasil, ganhou contornos bem específicos. "[A religião] nunca chega [a outro lugar] da maneira que era originalmente", diz o reverendo Davi Charles Gomes, chanceler da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Duas forças atuam no processo, explica o pastor. Uma é centrípeta: vai de fora para o centro e exige uma adaptação rigorosa do indivíduo aos princípios religiosos. A outra, centrífuga, é a que predomina no Brasil. Vai do centro para as bordas, o que significa que a pessoa abraça novas convicções religiosas sem, necessariamente, abandonar as anteriores. É uma definição do sincretismo predominante no país. "Como em 'Macunaíma', o índio não consegue ver o loiro porque um é parte do outro", afirma Gomes, em uma alusão ao romance de Mário de Andrade. No livro, obra central do modernismo, o protagonista é um índio negro que entra em uma poça de água encantada e vira branco de olhos azuis.

O Brasil é cada vez menos católico romano, mas isso não significa que o futuro do país seja protestante - pelo menos não no sentido clássico do termo. Em um século, de 1872 a 1970, a participação católica variou muito pouco, caindo de  99,7% para 91,8% da população. Desde então, porém, essa redução vem se acelerando rapidamente. Em 40 anos, até 2010, os católicos saíram do patamar de quase 92% para 64,6%. Enquanto isso, a presença evangélica quadruplicou, saindo de 5,2% para 22,2%.

Mas não são as igrejas históricas, nascidas na Reforma ou fortemente influenciadas por ela, as que mais crescem no país. Esse grupo - que reúne luteranos, presbiterianos, metodistas, batistas e outras denominações tradicionais - permaneceu praticamente estável entre 2000 e 2010, data do mais recente censo do IBGE. A participação apresentou até uma retração discreta, de 4,1% para 4%. Foram as igrejas pentecostais, surgidas a partir do início do século XX, e as neopentecostais, ainda mais recentes, que puxaram o crescimento, aumentando de 10,4% para 13,3%. A questão, para alguns especialistas e religiosos, é que essas igrejas se distanciaram tanto das doutrinas dos primeiros reformadores que muitas delas nem podem ser consideradas protestantes.

Em 40 anos, até 2010, a proporção de católicos no país caiu de 92% para 64,6%, e a presença evangélica quadruplicou,
 passou de 5,2% para 22,2%

"A Reforma precedeu o Iluminismo e foi um dos eventos mais importantes da história. Graças a ela passamos a ver como naturais situações de insatisfação e contestação", diz o bispo Robson Rodovalho, presidente e fundador da Igreja Sara Nossa Terra, uma denominação neopentecostal. A Sara Nossa Terra foi criada na década de 80, em meio a um movimento de renovação ocorrido entre as próprias igrejas evangélicas, afirma o bispo.

Como é comum entre os neopentecostais, na Sara Nossa Terra são estimulados fenômenos como curas divinas e "falar em línguas" - a capacidade de se expressar em idiomas irreconhecíveis, que teriam natureza divina. São os chamados "carismas", também apreciados por alguns grupos católicos, os "carismáticos". Nada disso foi defendido na Reforma, mas Rodovalho afirma que esses dons estão previstos na Bíblia e que os reformadores não tiveram tempo de abordá-los porque tinham questões mais relevantes para tratar, como a autoridade das Escrituras.

Outro ponto de discórdia é a teologia da prosperidade, a ideia de que a vontade de Deus é que os cristãos sejam abençoados com bens materiais. Como numa espécie de contrato cósmico, se a pessoa for fiel nas contribuições, Deus cumprirá a promessa de enriquecimento. O princípio, visto como veneno nas igrejas históricas, é um esteio neopentecostal. O bispo Rodovalho reconhece que há exageros nessa linha, principalmente em programas religiosos de TV. "Mas concordo com prosperidade na essência", afirma. "Prosperidade é o suficiente de tudo, não o excesso. Se a pessoa não muda sua convicção, vai ser pobre a vida toda."

Não é de hoje que as igrejas reformadas se dividem por causa de questões doutrinárias ou mesmo administrativas, como formas de governo. A existência de tantas denominações é uma prova disso. No Brasil, onde o protestantismo só se estabeleceu a partir do século XIX, com a chegada de imigrantes europeus e missionários americanos, é ainda mais difícil compreender a complexidade desse cenário. Alguns colocam todas as igrejas sob o mesmo rótulo, o de evangélicas. Outros identificam como protestantes
as igrejas históricas, classificando as demais como evangélicas. Oficialmente, o critério do censo populacional estabelece dois subgrupos: os evangélicos de missão, como luteranos e batistas, e os pentecostais. Nesse último grupo estariam tanto essas denominações propriamente ditas, como Assembleia de Deus e Congregação Cristã do Brasil, como as neopentecostais, caso da Igreja Universal do Reino de Deus, da Renascer em Cristo e da Sara Nossa Terra.

O desafio adicional para as igrejas reformadas é que, agora, além dos pontos teológicos, questões práticas têm provocado ruído na relação interdenominacional. São temas como direito ao aborto, uso de células-tronco e pena de morte.

No domingo, dia 22, famílias que frequentam a Catedral Anglicana de São Paulo, no bairro do Alto da Boa Vista, zona sul da capital, reuniram-se em um gramado ao lado do templo para almoçar juntos. "Mas família para nós não significa só casais heterossexuais. É mais amplo", diz o reverendo Aldo Quintão, pároco da catedral. Quintão dá a eucaristia a divorciados, realiza uniões homossexuais e batiza filhos desses casais, o que causa desconforto entre seus pares. Recentemente, ele foi excluído de um grupo de pastores no WhatsApp por causa de suas atitudes polêmicas. Na catedral, também não há restrições quanto à participação dos membros na administração. "Onde tem hetero pode ter gay, e onde tem casado pode ter divorciado", diz.

Nos Estados Unidos, ainda profundamente religioso, e na Europa, secularizada, essas questões têm provocado muita discussão e separado alguns rebanhos. A Igreja Católica começou a receber sacerdotes anglicanos, inclusive casados, que deixaram suas congregações depois que foi aprovada a participação de mulheres no sacerdócio, inclusive no papel de bispos. A PCUSA, maior igreja presbiteriana dos Estados Unidos, viu dezenas de congregações pedirem para abandonar a denominação em 2015, depois que seus líderes aprovaram, em assembleia, o casamento gay.

Um levantamento do Pew Research Center, respeitada instituição de pesquisa de Washington, mostra que o número de pessoas que frequentam as chamadas "mainline protestants" - os grupos protestantes mais tradicionais dos EUA e, também, os mais liberais - caiu de 18,1% da população adulta americana para 14,7% entre 2007 e 2014. Isso significa uma perda de 5 milhões de membros, com o rebanho diminuindo de 41 milhões para 36 milhões de pessoas.

 Imagem relacionada
 Gravura de 1882 posteriormente colorizada que retrata Martinho Lutero afixando 
suas 95 teses na porta de igreja em Wittenberg, em 1517, 
que deram início à Reforma Protestante

Para observadores, o fato de temas como sociedade, política e cultura - em vez da religião e da espiritualidade - ocuparem muito espaço nessas igrejas é um dos motivos de seu declínio. Para discutir esses temas, as pessoas já teriam outros fóruns, como a universidade, a mídia e mesmo partidos políticos. Ao aderir sem questionamentos às agendas liberais, as igrejas ficariam invisíveis. "Alienação gera irrelevância, mas acomodação também", afirma o reverendo Gomes, do Mackenzie. "A vitalidade da igreja tem a ver com sua autenticidade."

Na Catedral Anglicana, a despeito dos posicionamentos pouco ortodoxos, o rebanho tem crescido, com a atração até de sacerdotes de outras tradições. "Neste mês recebemos seis padres católicos", conta o reverendo Quintão. Três deles planejam se casar, o que é impossível na Igreja Católica, que estabelece o celibato obrigatório. Os outros três pretendem manter-se celibatários, mas decidiram mudar de igreja mesmo assim.

A Igreja Anglicana mistura elementos protestantes e católico romanos. "Alguns sacerdotes preferem ser chamados de padre e outros, de pastor. E tem gente que fala em culto enquanto outros chamam de missa", diz o reverendo Quintão. A catedral tem atuação autônoma. Não está ligada a outras igrejas anglicanas existentes no país. A Bíblia ocupa um papel central na doutrina, como nas igrejas reformadas, mas há mais espaço para a tradição, como gostam os católicos. A característica que não pode faltar, afirma o pároco, é a participação da comunidade. Um dos mais recentes projetos é a abertura de uma casa de transição para crianças vítimas de abuso. Uma lista de casamento está circulando entre os frequentadores para mobiliar a casa. Juízes, arquitetos, engenheiros e pedagogos que frequentam a igreja estão ajudando com orientações, e mães vão se revezar na casa para fazer bolos, contar histórias etc., como numa família de verdade.

"Família para nós não significa só casais heterossexuais. 
É mais amplo", 
diz o reverendo Aldo Quintão, 
pároco da Catedral Anglicana


Com a comemoração dos 500 anos em curso, protestantes do mundo inteiro promovem seminários, cultos comemorativos, cursos, concertos. Edições especiais da Bíblia e uma infinidade de livros estão sendo lançados, ao lado de selos e produtos de consumo. Em meio aos festejos, é curioso ver como uma instituição que seria persona non grata apenas décadas atrás, hoje tem convite para entrar na festa - a Igreja Católica Romana, antiga opositora.

Isso tem muito a ver com o papa Francisco. Nenhum outro papa pareceu tão disposto ao diálogo com outras religiões como ele, dizem especialistas. "Francisco é fruto do Concílio Vaticano II", afirma João Décio Passos, autor e professor do departamento de teologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). O Vaticano II foi um grande encontro da igreja que durou pouco mais de três anos - de 1962 a 1965 - e mudou várias regras vigentes. Por exemplo, permitiu que as missas fossem feitas nas línguas de cada país, em vez do latim, como antes. Ao todo, foram produzidos 16 documentos, que receberam a contribuição de protestantes, convidados como observadores.

Do ponto de vista do diálogo inter-religioso, foi um avanço radical. Desde o Concílio de Trento, ocorrido entre 1545 e 1563, Roma só fez duas coisas em relação à Reforma Protestante - condená-la e combatê-la, diz Passos. Demorou 400 anos para que essa posição fosse revista no Concílio Vaticano II.

As posições de Francisco remetem a João XXIII, o papa que convocou o concílio na década de 60. Eleito quando já tinha 77 anos, João XXIII teve um curto pontificado, entre 1958 e 1963. Ele só dirigiu o primeiro dos quatro encontros do concílio, mas ditou o tom progressista que modernizaria a Igreja Católica. Depois dele, houve uma espécie de hiato conservador. Paulo XI, o sucessor, tinha preocupações sociais porque vinha de Milão, uma cidade industrial, e valorizava o trabalho, mas não era tão progressista em relação às doutrinas da igreja, afirma Passos. João Paulo II trouxe para o papado sua bagagem polonesa. A Polônia sofreu várias invasões ao longo de sua história e passou momentos difíceis tanto sob o nazismo como dentro da chamada "Cortina de Ferro", estabelecida pela extinta União Soviética. Durante todo esse tempo, o catolicismo foi uma força de resistência na afirmação da identidade do país. "Ser polonês é ser católico", resume o professor da PUC. Com esse perfil, João Paulo II fez um pontificado conservador.

O maior retrocesso, no entanto, veio com Bento XVI. No Concílio Vaticano II houve uma grande discussão a respeito de uma frase segundo a qual a Igreja Católica é a Igreja de Jesus Cristo. Parece um detalhe, mas não é. A ala mais progressista observou que a frase denotaria que só a igreja de Roma seria a verdadeira, fechando as portas para o diálogo com outros grupos cristãos. Ao fim, a expressão foi modificada para dizer que na igreja de Roma subsiste a Igreja de Cristo, uma forma de reconhecer a expressão cristã de outras tradições. Bento XVI voltou a inflamar os ânimos ao dizer que "é" e "subsiste" têm significado idêntico, o que equivaleu rebaixar as igrejas protestantes à condição de seitas, quando muito.

Esse posicionamento contrasta frontalmente com as ações de Francisco. No ano passado, o papa foi à Suécia, majoritariamente protestante, para participar, com pastores luteranos, da abertura das comemorações dos 500 anos da Reforma. Francisco reconheceu a contribuição de Lutero para dar um papel central à Bíblia na igreja e disse que era preciso superar as polêmicas que impediram o entendimento entre os dois lados.

Outro levantamento do Pew Research Center mostra que entre os protestantes europeus, 58% veem sua religião como mais parecida que diferente do catolicismo. A opinião é compartilhada por 57% dos protestantes americanos. Entre os católicos, 50% dos europeus e 65% dos americanos consideram as duas tradições mais como semelhantes que diferentes.

A reaproximação, porém, não é fácil. Durante séculos, eventos históricos sangrentos pontuaram a divisão religiosa na Europa. Na França, em 1572, a coroa, que era católica, ordenou o massacre dos huguenotes, como eram chamados os calvinistas franceses, na Noite de São Bartolomeu. Na Inglaterra, os católicos viram seus direitos diminuírem - com o confisco de terras, inclusive - durante o governo puritano de Oliver Cromwell, entre 1649 e 1653. E esses são apenas alguns episódios.

De acordo com alguns especialistas, 
as igrejas pentecostais e neopentecostais 
não podem ser consideradas protestantes

No Brasil, houve duas tentativas de implantar o protestantismo antes do século XIX, mesmo que esse não fosse o fim principal. Uma delas, a "França Antártica", começou com uma expedição comandada por Nicolas de Villegagnon para estabelecer uma colônia no Rio de Janeiro. Foram enviados protestantes de Genebra - centro de difusão do protestantismo que tinha à frente o reformador João Calvino - para avaliar a possibilidade de o local servir de refúgio para os protestantes franceses. Os holandeses também trouxeram a prática protestante durante suas incursões ao Brasil, a partir de 1624. Nenhuma das duas progrediu. Até 1891, o catolicismo permaneceu como a religião oficial do país. Antes disso, protestantes não podiam ser enterrados na maioria dos cemitérios, nem construir templos. Isso fez com que o protestantismo nacional se desenvolvesse, em grande parte, como oposição ao catolicismo. Vitrais, cruzes, velas e o uso de togas por sacerdotes, que são comuns em igrejas protestantes de outros países, até hoje enfrentam resistência em muitas congregações evangélicas brasileiras.

Fora dos limites religiosos, a Reforma Protestante também exerceu uma forte influência na formação das culturas nacionais. Uma das bandeiras de Lutero e dos demais reformadores foi a tradução da Bíblia para os idiomas locais, de maneira que as pessoas pudessem ler as Escrituras. Até então, o livro sagrado só estava disponível em latim ou grego e sua leitura cabia exclusivamente aos padres. Com a tradução da Bíblia veio também um esforço para alfabetizar a população, o que gerou um efeito positivo na educação e na produtividade dos países protestantes.

O pensamento econômico, em particular, foi muito influenciado pelos pensadores reformados. O estudo "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo", do alemão Max Weber (1864-1920), tornou-se um clássico ao fazer a correlação entre racionalismo econômico e filiação religiosa. Mas a influência protestante vai muito além disso. Algumas das maiores e mais conceituadas universidades americanas - Harvard, Columbia, Yale e Princeton - foram criadas por instituições religiosas reformadas. Até o início do século XX, essas escolas de elite faziam restrições a católicos e judeus, seja como professores ou alunos. E mesmo quando receberam permissão para dar aula, foi difícil aos não protestantes encontrar trabalho para ensinar disciplinas como literatura ou história americana, escreveu Bradley W. Bateman, reitor da Universidade Randolph, na Virgínia, em artigo na revista "The Atlantic".

A influência protestante nos Estados Unidos ajudou a estabelecer a economia como uma disciplina acadêmica, com efeitos diferentes ao longo do tempo, segundo Bateman. A princípio, alguns textos diziam que fazer greve era um violação, por parte dos trabalhadores, do contrato de trabalho firmado com os empregadores. Mais tarde, muitos pensadores protestantes passaram a se ocupar da injustiça social, com ataques ao trabalho infantil e jornadas muito longas de trabalho.

No Brasil, as igrejas protestantes históricas também criaram muitas universidades, o que aumentou sua influência social, apesar do contingente numérico relativamente pequeno frente à maioria católica. Nas últimas décadas, a política também entrou na agenda, mas sob um vetor marcadamente pentecostal e neopentecostal. Em agosto, 87 parlamentares participavam da bancada evangélica no Congresso, formada por 85 deputados federais e 2 senadores, de acordo com o Grupo de Pesquisa, Mídia, Religião e Cultura da Universidade Metodista de São Paulo. Considerada uma das frentes mais influentes no Parlamento, a bancada evangélica costuma se alinhar em torno do que seus membros classificam de valores familiares, como a restrição às uniões gays e ao aborto. A questão que os políticos evangélicos terão de enfrentar é como tratar desses temas frente às mudanças de opinião entre a população, e mesmo em algumas igrejas. "Na maioria das igrejas não passa a ideia da homoafetividade. É uma discussão que está no olho do furacão e depende dos estatutos, das lideranças e assembleias de cada igreja. Não é consenso", diz o bispo Rodovalho, que já foi deputado.

A julgar pelo histórico de cinco séculos, será difícil unificar os protestantes em torno de convicções únicas, pela própria natureza do movimento que os originou. A inquietude provocada por Lutero se mantém acesa.

Fonte: http://www.valor.com.br/cultura/5171954/fe-em-movimento 27/10/2017



sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Bjarke Ingels: “La gentrificación es el motor para redefinir lo urbano”

Bjarke Ingels
KT Auleta
 
Representa como pocos la figura del arquitecto estrella. Sus edificios con forma de copo de nieve o pirámide se conciben más como barrio que como inmueble. Cinco de ellos están redibujando Manhattan. Este danés, creador de las nuevas sedes de Google en San Francisco y Londres, atribuye su osadía a la falta de prejuicios: llegó a esta disciplina como un ‘outsider’.
lunes 23 de octubre de 2017
CUANDO LA ARQUICTECTURA espectacular pasó de asombrar a asustar y fue sustituida como modelo por la vertiente sostenible, el danés Bjarke Ingels (Copenhague, 1974) dio con la fórmula para conciliar ambas tendencias: “Algunos de nuestros proyectos rompedores son para el mundo de los poderosos, pero tenemos otra cara para gente que no está contenta con los modelos arquitectónicos existentes. Hoy la sed tecnológica convive con la sed de naturaleza”. El creador de las sedes de Google en San Francisco y Londres ha firmado cinco edificios en Manhattan, incluida la torre del World Trade Center que sustituyó al proyecto de Norman Foster. El año pasado fue elegido entre los 100 personajes del año por la revista Time. Hace 12, fundó el estudio BIG, que hoy tiene más de 400 empleados. Atribuye su osadía a su falta de prejuicios, mientras apura una cerveza en Pamplona durante un congreso organizado por la Fundación Arquitectura y Sociedad. Es un destacado exponente de la figura de arquitecto estrella contemporáneo.

El copo de nieve, el laberinto… ¿Los apodos de sus edificios reflejan la infantilización de la arquitectura? Tratamos de no repetir lo que ya existe. En lugar de meter nuevos usos en viejos moldes intentamos averiguar lo que va a pasar. En Nueva York contrataron a una agencia para que buscara nombres a uno de mis proyectos. Llamó al edificio Vía 57, pero la gente se refiere a él como “la pirámide”. Así lo bautizamos nosotros.

¿Por qué debe reinventarse la arquitectura? Necesitamos alternativas a la vivienda con jardín y al apartamento en la ciudad. Y nacerán de mezclar. Le Corbusier ya lo probó dedicando una de las plantas al comercio en edificios de apartamentos. La diversidad crea la posibilidad de la diferencia. Hay que aceptar lo distinto.
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El copo de nieve. Hospital psiquiátrico, Helsingør, 2005.
¿Lo diferente tiene que ser fotogénico? ¿Con forma de copo de nieve? Repensar la arquitectura implica estar preparado para aceptar rarezas. No nos interesa la ­definición de belleza como proporción. No queremos disfrazar los edificios de normalidad. Esa forma de copo de nieve es la más eficaz para la organización de un hospital. Las líneas rotundas de mis edificios tienen que ver con la claridad de las ideas que están desarrolladas en ellos. Cualquier cosa que exprese su naturaleza real es atractiva.

¿Qué le ha hecho tener el carácter ocurrente y desinhibido que revelan sus proyectos? Llegué a la escuela sin saber casi nada de arquitectura. Ni siquiera quería ser arquitecto. Pero una vez allí traté de entender la disciplina mirándola sin prejuicios. El buen salvaje tiene siempre otro punto de vista.

¿Le preocupa cómo envejecerán sus edificios? Sí. Los materiales nobles envejecen mejor que los materiales baratos. Pero una solución pasa por convivir con la ­naturaleza: la vegetación trepando por las fachadas las embellece. Es cierto que nuestros edificios ­iniciales eran muy económicos y podrían haber envejecido ­mejor si hubieran estado construidos con otros ­materiales. Sin embargo, sus enclaves se han convertido en barrios exitosos y su valor inmobiliario ha aumentado.

“Ni siquiera quería ser arquitecto. Llegué a la escuela sin saber casi nada de la disciplina. Pero una vez dentro, 
traté de entenderla sin prejuicios” 

Antes de convertirse en arquitecto, dibujó cómics. En uno recreaba la historia de la arquitectura moderna y se nombraba heredero directo de Mies, Le Corbusier y Koolhaas Fue el primer libro. Los de arquitectura suelen ser aburridos, no enganchan al lector. Algo que contrasta con las visitas de obra: cuando un arquitecto te explica lo que hace, suele hacerlo con pasión. Pensamos que en esa paradoja había un terreno por explorar. Queríamos explicar las historias detrás de las imágenes, y un cómic es más fácil de seguir que un libro ilustrado.

¿Qué ha hecho para lograr codearse con estrellas de la arquitectura mundial y diseñar —con Thomas ­Heatherwick— los edificios de Google? Creo que he ­innovado.

¿Por qué las grandes compañías del mundo —Google, Apple o Facebook— han encargado a arquitectos estrella edificios aislados en lugar de construir las marcas urbanas que caracterizaron a las ciudades del siglo XX? Creo que su manera de pensar está anticuada. Soy de Copenhague y he tenido que superar el centrismo que supone identificar la ciudad solo con las hermosas calles que rodean el centro histórico. La ciudad, y lo urbano, es mucho más. Un porcentaje muy pequeño vive en el centro. Esas compañías no nacieron en las ciudades, y eso abre un mundo por explorar que me interesa. Para Google hemos hecho un edificio que es a la vez un barrio. Tendrá tiendas y restaurantes. Y los vecinos podrán entrar a comprar y a pasear.

¿Pasando controles de seguridad? Con diversos niveles de seguridad. La diversidad es buena pero compleja. Nuestro proyecto para Google ganó con una idea rotunda: cuando las compañías emplean a 30.000 personas no pueden tener un edificio, han de ocupar un barrio. Y en los barrios tiene que haber de todo para que sean urbanos y formen parte de la ciudad.
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El 8 House, bloque de viviendas en Copenhague , Dinamarca, 2007.
¿Qué ocurrirá con las ciudades si las compañías poderosas no apuestan por ellas? Entre los sesenta y los ochenta, muchos centros urbanos sufrieron el ­abandono de los ciudadanos: queríamos una casa con jardín. En las últimas décadas, los centros han vuelto a llenarse de gente. Resultado: alquileres impagables. Es casi imposible vivir en el centro de Londres o Copenhague. Eso hace que la idea de ciudad deba redefinirse.

¿Qué hace a una ciudad ser lo que es? Los ciudadanos. Fíjese cómo determinados grupos de artistas se trasladan a vivir hacia barrios más económicos y esa concentración genera urbanidad. Cuando la gente llega a un lugar y se instala en él, dicha zona mejora, se desarrolla. El proceso de gentrificación se describe siempre como negativo, pero es también el motor para la redefinición de lo urbano.

Trabajó con Rem Koolhaas durante un año y medio. ¿Qué aprendió de él y qué preferiría evitar? Ha tenido una influencia radical en mi carrera. Él mira el mundo como realmente es y no como tenemos asumido que es. Trata de ver. La ciudad no es solo lo grandioso, ­también es lo mediocre. Esa actitud es clave. Me interesa el mundo en toda su extensión.

¿Qué evitaría del legado de Koolhaas? Todavía es, indudablemente, uno de los arquitectos más relevantes del mundo. Pero creo que lo que he tratado de hacer de otra manera tiene que ver con mi felicidad personal. Me gusta estar alegre y compartir ese talante con la gente que me rodea. Creo que la alegría da energía.
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Museo Marítimo de Dinamarca, Helsingør, 2013.
¿El trabajo es su vida? Tengo una vida al margen del trabajo, claro que sí. Todavía no tengo hijos. Aunque… lo más seguro es que tenga hijos españoles. Mi novia es de Madrid.

¿Es arquitecta? Sí. Pero hacía mucho que no salía con una arquitecta. Volaba al festival de Nevada con un amigo en un avión de 12 plazas. Una chica muy guapa se sentó frente a mí. Y empezamos a hablar.

Su padre es ingeniero. Sí, hace fibra óptica.

Corre el rumor de que es un potentado dueño de medios de comunicación. Me temo que solo es ingeniero. Debo estar haciendo algo bien para que inventen leyendas sobre mí [se ríe].

Su madre sí es dentista. Sí.

¿Cómo llegó usted a la arquitectura? Supongo que me tocaba. Tengo dos hermanos. La mayor se dedicó a la música. Es una buena pianista. Al pequeño se le dan bien las matemáticas y se ha convertido en un gran jugador de póquer. Yo estudié piano, pero no era lo que quería hacer en la vida. Dibujar es mi superpoder. Lo fue durante mi infancia: en el parvulario, en el instituto. Siempre era el mejor dibujando.

¿Quiere ser el mejor arquitecto? Quiero ser yo. Creo que la arquitectura necesita entender la creatividad de otra manera, no solo formalmente. Steve Jobs dijo que de cada 20 ingenieros uno es un artista y el resto son ingenieros. Creo que eso se puede aplicar a la arquitectura, al balonmano y a la enseñanza. Un maestro que es un artista puede cambiar a la gente.

¿Se ve como un artista? Me veo como alguien capaz de cambiar las cosas. Alguien dispuesto a ese esfuerzo. La arquitectura puede ser un arte, pero el arte actual debe ser transformador.

“En este oficio hay más cosas fuera del control de
 los arquitectos que bajo su mando. Si no hay cliente, 
 no se construye un proyecto”

Para la Exposición Universal de Shanghái quiso exhibir la estatua de La sirenita danesa aduciendo que era más sostenible trasladarla a ella que llevar 1.300 millones de chinos a Copenhague para que la vieran. Nuestro edificio trataba de comunicar lo divertido, sano y sostenible que es llegar al centro de la ciudad pedaleando en lugar de pasar las horas sentado dentro del coche en atascos. La sostenibilidad no era La sirenita, era la ventilación natural que proponía el edificio. Trataba de enfatizar el lado no solo necesario sino también plácido de la sostenibilidad. La Sirenita era un reclamo. Llevarla a ­Shanghái suponía admitir que en Europa podemos tener todas las maravillas del mundo, pero si los chinos vienen a verlas no se van a poder sostener mucho tiempo.
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La pirámide. Via 57, Nueva York. 2016.
La experiencia de ir a Dinamarca es algo más que ver a La Sirenita. Claro. Y es mejor ver la Mona Lisa en París que en Pekín. Pero 1.300 millones de personas no pueden ir a París a verla. El turismo es un campo por reinventar. El arte se puede mover. Moverlo implica además la transmisión de otros valores como la generosidad o la confianza.

¿Puede la arquitectura convertirse en chiste? Dígalo de otra manera: incluso los arquitectos pueden contar chistes. Debería estarles permitido, como también a otros profesionales.

¿No hay profesiones menos cómicas que otras? Un edificio, como una operación, no puede ser un chiste. Pero el humor no está reñido con la calidad. Normalmente la gente divertida es inteligente. Solo quien es capaz de pensar con rapidez puede ser divertido. Una idea brillante, no solo en arquitectura, empieza siempre con algo que sabemos reconocer. Lo inesperado llega luego. Y para ser brillante, lo sorprendente ha de tener sentido. Es verdad que en nuestro estudio nos gusta gastar bromas. Pero solo nos quedamos con lo que sigue siendo interesante cuando dejamos de reírnos.

Ha sustituido a Norman Foster para levantar en Nueva York el edificio World Trade Center 2. ¿Se está convirtiendo en realidad aquel cómic en el que usted bromeaba con ser descendiente de Le Corbusier? Bueno… [risas]. Parece simbólico que nuestra idea sustituya a la de Foster, pero lo que sucedió es que su proyecto estuvo parado 10 años y un nuevo constructor nos llamó.

¿Qué ha hecho que su edificio se construya y el de Foster no? El nuestro funciona mejor.

¿Cómo lo sabe si el de Foster no ha llegado a construirse? Fueron los problemas lo que hizo que no se construyera.

¿No era una cuestión icónica? La torre de Foster era bastante icónica.
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KT Auleta
Foster será siempre más sobrio que usted. Supongo, pero tenía detalles poco prácticos. Creo que fue ­diseñado para un tipo de promotor que no es el actual. Sucede continuamente. Nosotros ganamos el concurso para hacer la Biblioteca Nacional de Astaná, en ­Kazajistán. Años más tarde deciden que quieren un edificio de Foster y comienzan a levantarlo sobre nuestros cimientos.

¿La arquitectura es un mundo de depredadores? En el mundo de la arquitectura hay muchas más cosas fuera del control de los arquitectos que bajo su mando. Da igual lo maravilloso que sea un edificio; si no hay cliente, no se construye.

Su arquitectura transmite una imagen optimista y lo que cuenta es lo contrario. ¿Ha visto la película La vida es bella? La vida está llena de problemas y de posibilidades. Tu actitud decide lo lleno o vacío que ves el vaso. Hubo un momento, tras el Guggenheim de Bilbao, que Gehry y Zaha Hadid consiguieron encargos como nunca. Luego llegó la crisis financiera y el retorno a lo esencial. Es una reacción habitual. Pero hoy la arquitectura es un territorio ecléctico. Caben muchas opciones. Y no es el estilo lo que marca las propuestas, son las intenciones. Nosotros hacemos trabajos casi contrapuestos: proyectos rompedores para el mundo de los poderosos, pero tenemos otra cara para gente que no está contenta con los modelos arquitectónicos existentes. La sed tecnológica convive con la sed de naturaleza, y eso debe reflejarlo la arquitectura sin tener que elegir una u otra fuente.

¿Qué hace más allá de ser arquitecto? He invertido en una compañía que produce grafeno, un material fascinante, un carbono monomolecular que es más transparente que el vidrio, 200 veces mejor conductor que el cobre y 100 veces más resistente que el acero. Cuando el grafeno se comercialice, veremos cambiar y avanzar muchas cosas. Va a ser fascinante.
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Reportagem por  Anatxu Zabalbeascoa
Fonte:  http://elpaissemanal.elpais.com/documentos/bjarke-ingels/#?id_externo_nwl=newsletter_eps20171026

Milton Hatoum: “O Brasil vive um eterno romance de desilusão”

O escritor Milton Hatoum

O escritor Milton Hatoum

O escritor se prepara para lançar o primeiro volume de uma trilogia que fala sobre a ditadura militar

Brasília surgiu no meio do cerrado como uma utopia, o símbolo de um país que se avizinhava novo e integrava seu próprio território. Em pouco, transformou-se em distopia. Sob a ditadura militar e seus atos institucionais, as avenidas largas, as quadras planejadas, os espaços rarefeitos de edifícios e gentes, o vazio de uma cidade erigida do zero se aliou ao vazio existencial e político do Brasil. O que resultou disso foi uma sensação de obra inconclusa, de alienação. É esse o cenário de A Noite da Espera, o primeiro volume da trilogia O Lugar Mais Sombrio, que o escritor Milton Hatoum lança no dia 27 de outubro pela editora Companhia das Letras.

Em seu escritório em São Paulo, Hatoum diz que a capital do fim dos anos 1960, menos de uma década depois da inauguração, era a metáfora do inacabado, pois interrompido pelo golpe militar. Ele sabe por experiência própria, porque, meio nômade – cresceu em Manaus e morou na Europa –, também viveu três anos, de 1967 a 1970, em Brasília. “Habitávamos um grande deserto, que é também um labirinto do qual não se consegue escapar”, diz. A sensação vem do próprio conceito da capital, a cidade parque, sem esquinas, sem cruzamentos, sem ruas de bairro, mas que, combinado “com o golpe militar, deu em algo fatal, pois o vazio, que era da cidade e era nosso, era governado pelo medo” infligido pelo autoritarismo.

Em A Noite da Espera, Hatoum conta a história de Martim, um adolescente paulistano que muda-se para Brasília com o pai, que acaba de atravessar uma separação traumática e misteriosa com sua mãe no fim dos anos 1960. Já em Paris, dez anos depois, o protagonista revisita aqueles anos tentando reconstruir, a partir de memórias, reminiscências e cartas, os anos turbulentos que passou na capital. Assim, a narrativa não é construída por um discurso linear em terceira pessoa, mas conduzida por fragmentos de textos repletos de vazios, interrupções e reflexões. A escolha formal do escritor conversa com a cidade e com o próprio Martim, que se ressente da ausência da mãe, não compreende o momento político do país e descobre um mundo novo a partir do contato com um grupo de amigos aspirantes a artistas e intelectuais.

E esse é um do principais méritos deste primeiro volume da trilogia A Noite da Espera – que Hatoum lança nove anos depois da publicação de seu último romance, Órfãos do Eldorado –, recriar a sensação de isolamento, algo absurdo, que se tinha na Brasília sob a ditadura. Martim e seus amigos pertenciam a uma geração que, se não experimentou a estabilidade e a tranquilidade no Brasil, estava preparada para colher os frutos de um país cada vez mais moderno, livre e inventivo, “mas que foi bruscamente e brutalmente interrompido pelo golpe”. “A sensação que ficou era essa: a impossibilidade de dizer”.

"É o romance da desilusão no país que vive um eterno romance da desilusão”, diz Hatoum. Para ele, há um claro paralelismo entre o que a geração de Martim – e dele próprio – viveu e o que se vive agora. “O Brasil, parece ser sempre assim, caminha numa trajetória ascendente, com avanços sociais e, de repente, mergulha na desilusão, no desamparo”, continua o escritor. “Hoje, a geração de 1994 é, assim como a de Martim, a geração da desilusão. Eles viram o país avançando para chegar a um momento de ruptura brusca com um impeachment, um golpe parlamentar, que alterou a trajetória ascendente de estabilidade e conquistas”.

Escrevendo o romance faz cerca de sete anos, o escritor não poderia saber o clima turbulento que o lançamento do primeiro livro encontraria, mas diz não se espantar. “Voltamos, novamente, ao ‘pequenino fascismo tupiniquim’ de que Graciliano Ramos falava em Memórias do Cárcere [escrito nos anos 1930 durante a prisão do escritor na ditadura Vargas]. De outro modo, por que a performance de um ator nu seria associada à pedofilia?”, indaga. “Só mentes muito obscuras podem fazer essa associação. É uma sociedade que odeia a arte, porque odeia a liberdade. Que se cala ante o assassinato de homossexuais e é favorável a leis que dificultam a fiscalização do trabalho escravo. Eu me pergunto qual é o projeto dessas pessoas. Onde elas querem chegar com isso? Mas não me surpreende. Foi isso ontem, é isso hoje, no Brasil e na América Latina”.
Lançamento será no em 27 de outubro 
Lançamento será no em 27 de outubro
Ao longo dos três livros (Hatoum ainda está trabalhando, sem data para lançamento, nos próximos volumes, que se passarão em São Paulo e Paris), Martim vai passando da ingenuidade adolescente para a vida adulta. E, possivelmente, do exílio dentro de seu próprio país em Brasília – fugido de seus traumas pessoais e um pouco alheio ao que acontecia ao seu redor – para a condição de exilado real na fria Europa. Segundo o escritor, sem o seu protagonista não haveria romance de formação e, ademais, ele é o representante da maioria. “Os jovens eram como ele, não como os amigos mais combativos e politizados que ele fez em Brasília. Ele é um ingênuo, imagina uma vida em uma casinha caiçara enquanto o Brasil implode”.

Em A Noite da Espera, o trauma da ruptura familiar e o sonho idílico de Martim vêm antes da preocupação política, mas nem uma coisa nem outra são capazes de mantê-lo a salvo do autoritarismo – assim como também acontece com a utopia da capital modelo. Em uma passagem do romance, o personagem rema despreocupadamente no lago Paranoá, que circunda toda a cidade, até que, cansado, adormece. É acordado por militares que o levam preso quando seu bote toca a margem do Palácio da Alvorada, residência presidencial – embora seu único “crime” fosse estar perdido flutuando na água. Martim é toda uma geração: condenada por calhar de ser jovem em 1968, poucos meses antes do Ato Institucional nº5, antessala da proliferação dos porões e paus-de-arara dos militares.
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Reportagem por  André de Oliveira - São Paulo

A prática do comum e a necessidade de inimigos

Christian Dunker em debate com Pierre Dardot, Christian Laval e Laura Carvalho sobre o livro Comum, no “Seminário Internacional 1917: o ano que abalou o mundo” (foto de Artur Renzo). A gravação integral da mesa está disponível na TV Boitempo!

A virada moralista que tomou conta do Brasil nos útlimos tempos é apenas uma negação recorrente da importância e do valor do que é comum.

Por Christian Ingo Lenz Dunker.*

O debate que tivemos com Christian Laval e Pierre Dardot parece cair em um momento crucial da situação brasileira. Mais do que nunca, se acirra no Brasil de hoje a falsa oposição entre o Estado e o mercado. Ao identificarmos o estatal com o público, e o público com o estatal ficamos sem alternativa positiva e prática aos argumentos de austeridade que justificam e naturalizam o desmonte de direitos, a precarização de equipamentos e predação de bens públicos. Essa autêntica terapia de reversão força uma escolha entre o Estado-público e a possessão privada. Por trás desta retórica há um argumento econômico: não há dinheiro para tudo e para todos. Começa então uma luta administrada para resistir ou se reapossar do Estado.


A alternativa que Dardot e Laval nos apresentam em seu novo livro, Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI, ultrapassa justamente este ponto. Criticando o paradigma estatista, que no Brasil tornou-se sinônimo agressivo de esquerda, eles nos mostram como esta é uma falsa escolha, precisamente porque além do Estatal e do privado há o comum. O comum que pode ser gerido e instituído de forma comum. O comum que subverte o binário formado por usuários de um lado e funcionários do outro.

O livro traz sete proposições claras para este momento:
  1. É preciso construir uma política do comum, por meio da qual nossas instituições possam ser reconstruídas como instituições comuns.
  2. É preciso contrapor “direito de uso” a “propriedade”. Hoje, a propriedade é um conceito jurídico que determina o que significa possuir algo, em detrimento de usar algo.
  3. O comum é o princípio de emancipação do trabalho.
  4. É preciso instituir empresas comuns.
  5. A associação econômica deve preparar a sociedade do comum.
  6. O comum deve fundar a democracia social.
  7. O serviços públicos devem ser instituições do comum, que podem se federalizar e se internacionalizar.
Christian Laval, Christian Dunker e Laura Carvalho, no camarim antes do debate sobre “A ideia do comum”.

Neste sentido a reconstrução do estatal como comum poderia passar, por exemplo, pela retomada da UERJ, uma importante universidade brasileira, como uma universidade comum. Os equipamentos de saúde mental que estão sendo deteriorados ou empreitados por comunidades religiosas em São Paulo poderiam ser retomados como lugares instituídos e geridos pelos comuns. Nesses casos hipotéticos recoloca-se o problema da produção envolvendo a circulação e gestão do dinheiro no espaço dos comuns, inclusive do ponto de vista do direito econômico.

Esse novo tipo de direito de uso que recria o que já existe não depende nem apela para a noção de bens comuns ou bens coletivos, pois não se trata de objetos passíveis de serem partilhados ou cedidos, mas de relações de uso: “um rio não é um rio, mas a conexão entre um rio e o coletivo que cuida dele”. Acompanhamos recentemente a experiência de desapropriação de um rio, o Xingu, por ocasião da construção da barragem de Belomonte, que desalojou uma grande população no norte do Brasil.

Quando pensamos na crítica do conceito de propriedade contido na ideia de bem comum, quando discutimos a práxis instituinte do comum e quando falamos dos limites entre o uso e o abuso, sempre vem à mente a partilha de experiências desejáveis e potencialmente úteis. Mas é preciso pensar também no mal-estar comum, nos destinos do que não gostamos ou do que não nos reconhecemos e ainda assim faz parte de nossa experiência do comum.

O neoliberalismo não é apenas uma proposta econômica, mas também uma moral que apreende o sofrimento como uma nova fronteira do “capital humano”. Produzir anomia para vender segurança. Propor metas semestrais inalcançáveis para ter o pretexto subsequente para realizar ajustes instrumentais. Produzir competição nociva entre os próprios funcionários de uma empresa para extrair mais produtividade. Demandar mais serviço do que um trabalhador pode atender para deixá-lo em estado permanente de déficit. Produzir medo para criar mais subserviência. Criar trabalhos sazonais e contrários precários para administrar a competição angustiada por uma oportunidade de emprego. Ou seja, fazer sofrer mais para render mais. Todas estas táticas que não foram inventadas pelo neoliberalismo, mas articuladas por ele como um projeto de unificação a vida em forma de empresa.
Christian Dunker, Laura Carvalho, Pierre Dardot e Christian Laval no debate de lançamento de Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI.
* * *
Consideremos agora o cenário reverso e veremos como a recente crise moral que tomou conta do Brasil reflete uma perda premeditada da experiência do comum. Consideramos a massa de pessoas que legítima e genuinamente decidiram fazer alguma coisa para alterar o quaro institucional brasileiro. Vestiram camisas da seleção brasileira, bateram panelas, apoiaram a Lava Jato e festejaram a grande vitória, que daria início à grande virada com um novo Brasil assado a limpo pelo MBL, pelos jovens, pelos movimentos de renovação.

Não é preciso imputar má fé a tão grande número de envolvidos, nem mesmo temer que a população seja sempre irracional quando se organiza em grupos. Havia, de parte a parte, a emergência de um comum, tanto nas manifestações tanto de direita quanto de esquerda que antecederam a destituição de Dilma. O comum emerge, para o bem e para o mal, com expectativas de gestão e de continuidade entre os meios e os fins, de repetição de processos, de reformulação de práticas. Ocorre que nada disso ocorreu. Escândalos maiores e imoralidades piores vieram à luz sem que as mesmas punições fossem aplicadas. As reformas apresentadas não se mostram em continuidade com o movimento comum que as antecedeu. A gestão da crise não presta contas nem reconhece os atores que lhe deram causa. As lideranças políticas e judiciárias permanecem, como sempre foram ao longo de toda a crise, agindo autonomamente, sem participação dos grupos que se mobilizaram em torno da insatisfação comum. As pesquisas de opinião mostram massiva desaprovação em relação a quase todas as iniciativas do governo tampão.

Então, o que seria mais fácil: reconhecer, envergonhadamente, que se foi enganado ou criar novos e mais poderosos inimigos? É o que se vê nas discussões morais que tomaram conta do país. Sumariamente:
  1. Quem antes reclamava da qualidade de nossa escola agora silencia diante de um pacote tirado do bolso, na última hora, sem a participação de educadores e especialistas. A educação deixa de ser uma instituição comum.
  2. Quem antes pedia uma reforma política “higienista”, agora se contenta com mais uma versão de “a raposa que toma conta do galinheiro”. A política deixa de se orientar, explicitamente, para o comum e se torna propriedade de bancadas movidas pela autoconservação.
  3. Quem antes pedia pela redução do custo Brasil e pelo fim de nosso burocratismo, viu apenas a regulamentação do trabalho se flexibilizar.
  4. Quem antes pedia por mais desenvolvimento e menos “ignorância”, agora aplaude o corte de verbas para ciência e tecnologia.
  5. Quem antes atacava as empresas estatais como fonte e origem do atraso e da corrupção nacional agora recusa-se a entregá-las para a administração comum, transparente e aberta.
  6. Quem antes advogava uma Escola sem Partido, agora aprova o ensino religioso unidimensional.
  7. Quem antes pedia por mais liberdade e menos doutrinação, agora aprova o fechamento da Queermuseu em Porto Alegre, a retirada de quadros eróticos em Goiânia ou chama de pedofilia a performance artística envolvendo a nudez, no Museu de Arte Moderna de São Paulo.
Como se vê, a virada moralista é apenas uma negação recorrente da importância e do valor do que é comum. Estamos na negação direta de cada um dos sete princípios que, segundo Laval e Dardot, constituem o comum. A negação do comum corresponde à criação de novos inimigos. Inimigos necessários para que o tamanho de nosso “nós” se avolume, nos afastando de toda comunidade com o “eles”.

A negação do comum é compreensível como regressão individualista em meio à vergonha e o medo. Um efeito indireto da grande dissonância cognitiva que se tem que resolver para convencer-se de que todo o trabalho para tirar Dilma em nenhuma hipótese pudesse corresponder ao apoio dado a Temer. Como se fosse possível querer os fins, mas não querer os meios. Quando percebemos nossa própria contradição, quando ela fica perto demais, a reação mais simples é falar mais alto, gritar para esquecer de que nós e nossos inimigos somos feitos da mesma matéria prima.

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Christian Dunker está realizando na TV Boitempo uma leitura comentada de seu livro, vencedor do Prêmio Jabuti, Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. Toda semana publicamos uma aula nova sobre um dos capítulos do livro. Não perca!

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Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012 e um dos autores da coletânea Bala Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (Boitempo, 2015). Seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, 2015), também vencedor do prêmio Jabuti na categoria de Psicologia e Psicanálise. Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

Fonte: https://blogdaboitempo.com.br/2017/10/27/a-pratica-do-comum-e-a-necessidade-de-inimigos/