terça-feira, 28 de novembro de 2017

Philippe Sands: “A Europa está vivendo uma fratura como nos anos trinta”

Philippe Sands durante o Festival Hay, em Segóvia.
Philippe Sands durante o Festival Hay, em Segóvia.

Especialista em direitos humanos retrata os juristas que deram nome ao genocídio e reflete sobre movimentos separatistas

Nos agradecimentos de seu último romance, John Le Carré escreve: “Gostaria de agradecer especialmente a Philippe Sands, que me guiou com a atenção de um advogado e a compreensão de um escritor”. Sands, de 57 anos, é um dos advogados de direitos humanos mais respeitados do Reino Unido e esteve envolvido nos principais processos dos últimos anos: Pinochet, Bósnia, Iraque, Ruanda... Autor de vários ensaios jurídicos, o convite que recebeu para fazer uma conferência em Lviv, ou Leópolis –uma cidade ucraniana que foi polonesa e antes austro-húngara–, mudou sua vida. Lá nasceu seu avô, mas também os dois fundadores do direito internacional, os juristas que inventaram os conceitos de “crime contra a humanidade” e “genocídio”. E também havia passado por lá Hans Frank, o governador nazista da Polônia, responsável pela morte das famílias dessas três pessoas. Aquele convite se tornou um livro, East West Street (Rua Leste- Oeste), um dos fenômenos literários do ano no mundo anglo-saxão. É ao mesmo tempo uma obra de intriga que tenta responder velhos mistérios familiares, a evocação de um mundo perdido –toda a família de seu avô foi assassinada pelos nazistas– e fazer um retrato das figuras que conseguiram algo que então parecia impossível: que os Governos não tivessem direito de fazer o que quisessem com seus cidadãos. Sands visitou a Espanha no fim de setembro para apresentar seu livro. Esta conversa aconteceu durante o Hay Festival, em Segóvia.

Pergunta. Uma velha frase de Albert Camus dizia que entre sua mãe e a justiça, ele escolhia sua mãe. Um dos protagonistas do seu livro é Niklas Frank, filho de Hans Frank, governador nazista da Polônia, julgado como criminoso de guerra em Nuremberg e executado. No entanto, Niklas sempre reconheceu os crimes do pai. O senhor acha que viveríamos em uma sociedade melhor se mais gente fosse capaz de dar esse passo, de renunciar à sua tribo em nome da justiça?

Resposta. Eu acho que é uma exceção. Na primeira vez que encontrei com ele, a primeira coisa que fez foi mostrar uma fotografia do pai morto, o que realmente me chocou. Ele mostrou um ódio contra o pai que me fez sentir desconfortável. Sempre carrega consigo aquela foto do pai pouco depois de morrer enforcado. Foi o primeiro filho de um alto funcionário nazista a dizer que o pai era criminoso e merecia morrer. Foi um escândalo na Alemanha. Gosto da atitude dele, mas ele a leva longe demais.

P. O senhor diz que seu livro não é sobre o Holocausto, mas sobre a memória e os segredos, mas não acredita que também descreve o mundo que mudou completamente depois dos crimes nazistas?
A razão pela qual voltamos a ler Joseph Roth e Stefan Zweig é que sentimos que algo está acontecendo na Europa de novo
R. Existe uma lacuna na história da minha família: meu avô nunca falou sobre isso, minha mãe tampouco. E algo aconteceu quando fiz 50 anos e queria saber quem era. Fui convidado para ir a Lviv e tive a oportunidade de conhecer a casa onde meu avô nasceu. Eu entendi isso quando, falando com meu filho de 21 anos meses atrás, que tinha acabado de ler o livro, ele me disse: “É muito interessante. Conheço a história da família, mas você, quando tinha a minha idade, não sabia disso. Isso nos torna muito diferentes”. O que paira sobre de tudo é a história da Europa nos anos trinta, os assassinatos em massa de judeus, e poloneses, que no final desencadearam uma revolução: antes desse momento, o Estado era soberano. Se o rei ou o governante quisesse matar metade de sua população, ninguém o impediria, o direito internacional não existia.

P. Não é algo que continua acontecendo? Mianmar (antiga Birmânia) expulsou centenas de milhares de rohingyas em semanas, em um claro episódio de limpeza étnica, e ninguém conseguiu deter isso. Houve muitas atrocidades em massa desde 1945. Algo mudou, mas mudou o suficiente?
R. Antes de 1945, o direito internacional sempre guardava silêncio. Sobre os judeus na Alemanha ninguém disse nada, porque a Alemanha podia tratar seus cidadãos como quisesse, judeus, homossexuais, deficientes. E nesse sentido a mudança foi revolucionária, embora essas mudanças sejam muito lentas, não se pode esperar que comportamento humano se transforme. Passarão anos, décadas, antes que aconteçam mudanças reais para que seja transformada a proteção de indivíduos e grupos.

P. Os dois juristas que retrata em seu livro, Hersch Lauterpacht e Raphael Lemkin, inventaram os conceitos de “crime contra a humanidade”, o primeiro, e de “genocídio”, o segundo, que foram usados pela primeira vez nos julgamentos de Nuremberg. Qual a diferença entre eles?
R. Em termos simples: o conceito de “crimes contra a humanidade” procura proteger o indivíduo diante da violência em guerras e matanças. “Genocídio” é sobre a proteção de grupos. Todos os genocídios são crimes contra a humanidade, mas não o contrário. A diferença essencial é que se você matar 100.000 pessoas será sempre um crime contra a humanidade, mas só será um genocídio, de acordo com a lei, se você puder demonstrar que a matança tinha o objetivo de destruir o grupo todo ou em parte. Eu acredito que a pergunta deve ser colocada da seguinte forma: você quer que a lei te proteja como indivíduo ou quer que a lei te proteja como membro de um grupo religioso, nacional, seja o que for? O que sou antes, um indivíduo ou um membro de um grupo?

P. Um dos grandes personagens do livro é a cidade, hoje parte da Ucrânia, em que todos os personagens se encontram, Lviv ou Leópolis, Lemberg em outras épocas. Em Pós-Guerra, Tony Judt explica que houve uma Europa multiétnica e multirreligiosa que desapareceu com a Segunda Guerra Mundial. Você acha que Lviv simboliza essa transformação?
R. Não acho que simboliza uma Europa que desapareceu, acho que mudou: Lviv nos anos trinta, Londres nos anos dois mil. Não acho que existam muitas diferenças. Lviv na década de 1930 viveu uma agitação de intelectuais, escritores, arquitetos, comerciantes, com tensões entre os diferentes grupos, mas também era uma cidade vibrante, com música, cinema, teatro... Como a cidade em que moro hoje. Mas em 15 anos tudo desapareceu. Isso me obriga a fazer uma pergunta: por que damos como certo que a Londres atual não pode desaparecer, que estará aqui para sempre? Começamos com o Brexit, que é uma demonização dos outros... Por que não poderia acontecer em Londres, Paris ou Barcelona?

P. O senhor toma emprestado o título de Joseph Roth, que também era de Lviv, e cita Stefan Zweig. Por que acredita que esses dois autores estejam sendo muito lidos hoje, especialmente Zweig e suas memórias, O Mundo de Ontem?
R. O Mundo de Ontem é um livro incrível. Voltamos a eles porque algo está acontecendo e por isso nos inspira. A razão pela qual voltamos a lê-los é que sentimos que algo está acontecendo na Europa de novo, seja o Brexit, o que acontece na Hungria, o nacionalismo na Catalunha. A Europa está vivendo uma fratura e a última vez que algo assim aconteceu foi na década de trinta. E os autores que nos inspiraram durante essa ruptura foram Zweig e Roth, ou o menos conhecido Józef Wittlin.
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Reportagem por   
Fonte:  https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11/16/cultura/1510857150_401400.html

O cristianismo do futuro. “Reconhecer Deus nesse mundo e não mais no passado”


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Como pensar o cristianismo de hoje e de amanhã? 
Esta semana, vai a primeira parte da nossa série 
de entrevistas com os autores de Plaidoyer pour un nouvel engagement chrétien (Éditions de l'Atelier).

Jean-Victor Élie e Pierre-Louis Choquet, doutorandos e pesquisadores, escreveram com Anne Guillard um “Pleito por um novo compromisso cristão”, livro pelo qual eles esperam atestar um “cristianismo mergulhado no mundo”.

A entrevista é de Sixtine Chartier, publicada por La Vie, edição de 02-11-2017. A tradução é de André Langer.

Eis a entrevista.

O livro de vocês se apresenta como um pleito. Pelo que vocês pleiteiam e quem são seus contendores?

Pierre-Louis Choquet: Nós quisemos escrever esse livro, no contexto que se segue às manifestações Manif pour tous, em 2015, porque nós não estávamos satisfeitos com o modo como alguns jovens católicos se manifestavam na esfera pública. Nós estávamos incomodados com o viés conservador que emanava do seu discurso e que estava em defasagem com a experiência que nós fizemos da vida cristã no dia a dia. E o nosso desejo era tomar posição publicamente. Nós também tínhamos o sentimento de que essas parcelas da Igreja estavam se apropriando do Papa Francisco, mas de uma maneira muito “integralista”.

O que vocês entendem por “integralista”?

Jean-Victor Élie: Nós fazemos referência a uma noção como a “ecologia humana”, que traz embutida uma visão conservadora e contra-cultural, isto é, que pensa a modernidade como uma espécie de impasse, um lugar em que o cristianismo corre o risco de se perder. Os católicos dessa corrente imaginam o mundo de hoje como o fim do catolicismo na França. Em vez disso, nós acreditamos que é nesse mundo, aqui e agora, que Deus escolhe se revelar e que a tarefa que nos incumbe é reconhecer Deus nas dobras desse mundo, e não na nostalgia de um mundo passado, imaginado.

Mas a fé cristã não deve também ser um “sinal de contradição” para o mundo, como está escrito no Evangelho?

Jean-Victor Élie: É evidente que a fé deve ser sinal de contradição. Mas não é porque vamos buscar Deus na nossa vida presente e no mundo, à medida que evolui; esse não é o caso. O estilo de vida de Jesus continua sendo um sinal de contradição para o mundo presente. Mas ele está sempre em diálogo com os seus contemporâneos, com seu modo de vida e seus questionamentos, e não na rejeição. Cristo não chega se posicionando imediatamente contra tudo o que existe. Ele é judeu e tem uma forma de penetração completa na realidade em que vive.

Pierre-Louis Choquet: A fé não deve ser uma contradição que seja moral, mas uma contradição que gera perplexidade nas pessoas que estão prontas para ouvi-lo e que as remete para o que realmente acreditam. Foi o que disse Jesus: “Quem tem ouvidos, ouça!”

Ainda é necessário que os fundamentos filosóficos e antropológicos do cristianismo sejam entendidos. Isso não tem nada de evidente hoje...

Pierre-Louis Choquet: Mas quais são os fundamentos antropológicos do cristianismo? No Evangelho, não há muita coisa sobre essa questão. A pesquisa em antropologia nos ensina que o fenômeno humano é muito diverso e que há pouquíssimas constâncias. Para nós, a única invariável antropológica sobre a qual se pode articular o cristianismo é que a pessoa humana foi feita para celebrar. A maneira como o cristianismo celebra o fenômeno humano e a vida é, do nosso ponto de vista, sem dúvida extraordinário.

Jean-Victor Élie: Celebrar é entrar em uma dinâmica de reconhecimento. É reconhecer que nós recebemos alguma coisa de muito grande, como disse Paulo aos cristãos de Corinto: “O que você tem que não tenha recebido?” Desse dom incrível brota um imenso sentimento de gratidão que nos dá uma profunda alegria. E é isso, sem dúvida, que precisamos comunicar ao mundo de hoje: esta esperança indescritível de que nós recebemos de um imenso dom.

Pierre-Louis Choquet: Mas o fato de operar esse deslocamento e de colocar em perspectiva os fundamentos antropológicos da teologia de João Paulo II não quer dizer que nós pensamos que o dogmático não tem nenhuma serventia...

Vocês abordam, além disso, no livro, as questões bioéticas, que são, de acordo com vocês, questões “maiores”...

Jean-Victor Élie: Sobre esses temas de bioética como o aborto, a PMA [procriação médica assistida], a eutanásia, nós temos uma posição muito clara. Mas isso não é o que mais importa, para nós, nesse livro, mas na medida em que nós constatamos um investimento massivo da Igreja católica na França nesses temas. Pelo contrário, nós ouvimos, naquele momento, algum padre falar em uma homilia sobre as desigualdades sociais e ecológicas, ou sobre a lei do antiterrorismo que torna os poderes da polícia administrativa preocupantes? Há um verdadeiro silêncio sobre essas questões na Igreja católica. Isso não quer dizer que nós escondemos os temas bioéticos. Mas esse desequilíbrio não nos parece ajustado.

Nesse caso, vocês se reconhecem no conceito de “ecologia integral”, que relaciona os combates bioéticos com os combates ecologistas, e que foi desenvolvido pelo Papa Francisco na Laudato Si’?

Pierre-Louis Choquet: Na França, depois do Manif pour tous e do [movimento] dos Veilleurs, uma parte da contestação mudou efetivamente de dimensão e abordou as dimensões ecológicas, sociais, etc. Isso deu “a ecologia integral”. Mas essa expressão é muito conotada. Para uma pessoa que não participa da Igreja, que realmente têm motivos para se sentir ferida pela instituição (por exemplo, se sua vida não está conforme aos “cânones” católicos), falar de “ecologia integral” é quase impossível, porque a expressão tem uma tendência enclausurante e moralizante.

Jean-Victor Élie: Mas tudo depende da maneira como a compreendemos. Pessoalmente, eu tenho sido interpelado pela frase do Papa Francisco na Laudato Si’: “Tudo está interligado”. A “revista de ecologia integral” Limite retomou-a como uma divisa. E, na realidade, o social está ligado ao ecológico. Mas como vamos poder traduzir isso para pessoas para as quais isso não está inteiramente claro?

Em seu livro, vocês analisam a evolução dos católicos conservadores, de direita, e vocês a deploram. Mas eles não têm pelo menos o mérito... de existir? Os cristãos que se reivindicam como sendo de esquerda parecem ter desaparecido dos radares.

Jean-Victor Élie: Somos nós cristãos de esquerda? Nós nunca nos reivindicamos como tais. Para nós, não faz sentido esquecer a dogmática e a liturgia para ficar apenas com a ecologia, por exemplo. Um dos erros do catolicismo de esquerda – expressão muito datada hoje – foi, talvez, o de entrar de cabeça na luta política e social sem cultivar ao mesmo tempo um amor à Igreja, até mesmo criticando violentamente a instituição. Nós nos sentimos, ao contrário, muito ligados à Igreja.

Vocês assumem outras diferenças com os cristãos de esquerda “à antiga”?

Jean-Victor Élie: O que é verdadeiramente novo é o século XXI e suas questões. A ecologia é uma questão central para nós, ao passo que os “católicos de esquerda” dos anos 1960-1970 não a abordavam, à exceção de algumas correntes ecologistas em torno de Lanza Del Vasto. Nós nos atemos a questões do nosso tempo e não queremos reavivar uma espécie de oposição eterna entre correntes.

Pierre-Louis Choquet: E, além disso, a filosofia da história marxisante não existe mais hoje. Nos anos 1960-1970, as pessoas ainda pensavam, de maneira mais ou menos explícita, que haveria uma revolução e que uma sociedade sem classes poderia surgir...

Vocês, então, estão propondo uma espécie de atualização do catolicismo de esquerda?

Jean-Victor Élie e Pierre-Louis Choquet: Não!

Jean-Victor Élie: Nós não nos sentimos realmente herdeiros desta tradição. Nós simplesmente procuramos refletir sobre o sentido que “o compromisso cristão” pode ter no mundo de hoje.

Pierre-Louis Choquet: Quando dizemos “cristão de esquerda”, ouvimos “cristão, portanto de esquerda”, como explica o deputado Dominique Potier. Ele prefere dizer: “cristão e de esquerda”. Não é sem relação, mas o discurso político e o discurso religioso são bem distintos.

Em seu livro, vocês opõem esperança e contra-cultura. Mas, na realidade, são contraditórias? A mudança não passa por uma verdadeira contra-cultura? Por exemplo, uma contra-cultura anticapitalista face ao modelo burguês...

Pierre-Louis Choquet: Se é uma contra-cultura que é moral e que deplora o pluralismo, não. Se é uma contra-cultura que abre passagens que permitem às pessoas saírem dos impasses nos quais elas se encontram, ótimo.

Jean-Victor Élie: Eu diria que isso não é fonte de inquietações para nós. Pelo contrário, isso nos põe a imaginar novas maneiras de ser no mundo enquanto cristãos. Qual será o centro: o culto – isto é, a missa –, a partilha do Evangelho entre vários? Ou outra coisa ainda?

E esta nova maneira de ser no mundo é passível de frear e até de inverter a tendência?

Jean-Victor Élie: A fé não se transmite, se propõe. Eu não me levanto de manhã dizendo para mim mesmo: “Hoje, eu vou converter 10 pessoas e terei atingido a minha cota”. Eu vivo como um cristão, não o escondo, isso me faz viver e me dá alegria, e eu posso compartilhá-lo com os outros sem que meu objetivo seja o de converter o máximo de pessoas. A conversão é um caminho pessoal, íntimo, que não se impõe.
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O homem perante a morte


Paulo de Almeida Sande*
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Mas tremo, perplexo perante uma sociedade que vive cada vez mais depressa a esconder de si própria a única realidade indiscutível. Não, meus amigos, nenhum de nós viverá eternamente.

O que fazer, meus amigos, quando nos morre um amigo?

Morreu o Pedro, morreu o João, morreu o Alexandre. Que fazer?

Como viver com a sua perda? De que forma celebrar a vida dos que morrem, nossos amigos ou familiares, se na sua morte perdemos também um pouco de nós mesmos?

Vivemos um tempo estranho, já falei sobre isso neste jornal. E se me repito é porque, auto-citando-me, “sem a pugnacidade da repetição, sem a insistência… em assuntos que incomodam, (eles) e até a morte, continuarão a ser tabu na sociedade moderna, egoísta e egotista”. Philip Ariès, em “O Homem perante a Morte”, definiu assim a relação do ser humano moderno com a morte física: ocultamo-la como se ela não existisse; escondemo-la nos hospitais, longe da vista dos que nos amam; extinguimos o luto, acelerando o processo de esquecimento.

É difícil não concordar. Vivemos a morte dos outros, mesmo dos amigos, como um incómodo. Um rápido ritual, um curto velório e um funeral a despachar, que à tarde há reunião.

Hoje, meu amigo, conhecemo-nos há 40 anos, ou mais, parece que foi mais, que foi sempre, perante o fim da tua vida a irromper sem cerimónia pela minha, é a vida que viveste antes do fim, tão longa e curta, que quero celebrar. Todos nós, perecíveis que somos, começamos e acabamos. Todos nós, e como nós os outros, acabam. Morrem. Fazem falta. Farão?

A semana passada morreu o Pedro Rolo Duarte, morreu o João Ricardo, e os seus nomes foram escritos, ditos nas televisões, multiplicados nas redes sociais. Farão falta? Fazes falta Pedro? Fazes falta João? “Ó sombra fútil chamada gente! Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém… Sem ti correrá tudo sem ti”. Vêem, até o Álvaro acha que vocês não fazem falta, que o Mundo continuará sem a vossa presença.

E é verdade, sabem? O poema de Álvaro de Campos continua a ser um monumento à natureza humana e à morte, que a define. “Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem, Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma? És importante para ti, porque é a ti que te sentes. És tudo para ti, porque para ti és o universo, … És importante para ti porque só tu és importante para ti. E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?”.

São. Era Pedro, era João, eram todos os nossos outros mortos assim, importantes para si e para si apenas, enquanto vivos. E contudo hoje sei de saber certo, Pedro, João, Alexandre, que apesar de mortos, apesar da vaidade humana, apesar do Álvaro, há gente viva com alma dentro a chorar-vos, a lembrar-vos, a contar feitos da vossa vida como se estivésseis vivos.

Eu, que sou importante para mim, centro do meu próprio universo, penso em vós, Pedro, João, Alexandre, e quero conhecer-vos, se calhar agora mais do que antes, a alguns não conheci bem, nem conheci vivos, pois quero conhecer-vos agora, celebrar a importância que tivestes para vós próprios, mas também a que tendes para mim – eu, que sou outro.

Desculpa Álvaro mas não estou contigo, eu que estou sempre contigo: até tu que nunca verdadeiramente viveste apesar da vida extraordinário que tiveste, até tu morreste. E eu que vivi depois da tua morte nunca li nada assim: “Descansa: pouco te chorarão… O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco, Quando não são de coisas nossas, Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte, Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros…”. Ora tu desapareceste em 1935, se não me engano, e tanta coisa aconteceu depois na tua vida! A tua morte, caro Álvaro de Campos, não foi senão uma passagem, continuaste e andas por cá, ainda hoje, em 2017, eu escrevo isto sobre ti. Como vês enganaste-te, a ti mesmo enganaste, tanto e tudo pode acontecer aos outros depois da morte…

E é por isso que quero celebrar a vida dos que nos morrem, como o Pedro e o João. A mágoa que sinto, a dor que me invade, a tristeza que ameaça consumir-me, supremo egoísmo do meu ser a quem faz falta os que se foram, impelem-me a celebrar a vida deles. E se hoje escrevo assim é porque também a mim, há dias, me morreu um amigo antigo. Ao contrário do Pedro e do João não era uma figura pública, como eles foi-se cedo de mais. Via-o pouco, quando soube da sua partida fiquei sem saber o que fazer.

Entristeci. Pensei na mágoa dos que o amaram. E depois, como às vezes noutros momentos de ficar triste, recordei o Álvaro: “Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda Do mistério e da falta da tua vida falada… Depois o horror do caixão visível e material, E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali. Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas, Lamentando a pena de teres morrido, … Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova, E depois o princípio da morte da tua memória. Há primeiro em todos um alívio Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido… Depois a conversa aligeira-se quotidianamente, E a vida de todos os dias retoma o seu dia… Depois, lentamente esqueceste”. Lentamente esqueceremos que o Alexandre viveu.

Ora o Álvaro só terá razão se nós, eu e todos vós, leitores, não soubermos celebrar a vida dos que nos morrem neste ocidente de egoísmos, em que os outros são estrelas distantes que só brilham por e para nós. E eu escrevo sobre ti, meu amigo antigo que partiste, repetir-me-ei sempre que possível, e necessário, direi que foste amado, que viveste com paixão as coisas materiais, que lutaste com todas as tuas forças contra a inevitabilidade do fim.

Recordo a última vez, vi-te pele e osso: a chama ainda brilhava nos teus olhos. E quando nos celebrámos vivos e o prazer do reencontro, era o puro gozo de nos acharmos juntos que o teu abraço me transmitia. Lembrar-te-ei, meu amigo. Celebrarei a tua vida sempre que puder, recordando-te, falando de ti, dando o teu exemplo a conhecer aos que não te conheceram. Não sei que fazer mais. Gostava de fazer mais.

Mas tremo, perplexo perante uma sociedade que vive cada vez mais depressa a esconder de si própria a única realidade indiscutível.

Não, meus amigos, nenhum de nós viverá eternamente.

Dedico este texto, com carinho, ao meu amigo Alexandre, que morreu com a dignidade de quem viveu uma vida boa. Por isso, será lembrado.
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*Director do Gabinete em Portugal doParlamento Europeu (PE). Rege desde 2002 a Cadeira de Construção Europeia do curso de Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade CatólicaPortuguesa. Licenciou-se em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa em 1981 e fez uma pós-graduação em Direito Comunitário. Colunista do Observador.
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segunda-feira, 27 de novembro de 2017

A função da universidade não é produzir patentes

Daasbjerg: empresários e investidores querem garantir o retorno dos investimentos que fazem em pesquisas. A universidade, contudo, não precisa ter essa preocupação
Kim Daasbjerg, professor da Universidade de Aarhus, na Dinamarca, afirma que os pesquisadores não devem se preocupar com a viabilidade comercial de suas descobertas. 
A Universidade de Aarhus é a segunda maior universidade da Dinamarca, superada apenas pela Universidade de Copenhague. Ela foi fundada em 1928 e hoje conta com 42,5 mil estudantes. Como define em sua página na internet, sua missão é encontrar soluções para os complexos desafios do mundo atual e, para isso, busca manter uma estreita colaboração com empresas e indústrias.

Isso não quer dizer, contudo, que não há espaço para a pesquisa básica, também chamada de pesquisa pura, que é aquela que busca o avanço de teorias científicas.

Pelo menos é isso o que vem defendendo Kim Daasbjerg, professor de química da instituição e idealizador de um interessante projeto de inovação aberta, o Open Science.

A iniciativa é uma resposta a um problema detectado por ele e que, em sua opinião, está afastando as universidades de sua missão, que é beneficiar a sociedade. O problema reside na pressão sobre os pesquisadores para que eles façam descobertas com viabilidade comercial e gerem renda com patentes e licenciamento, uma situação que, no limite, coloca em risco a própria geração de ideias.

A solução para Daasbjerg é liberar os pesquisadores dessas amarras e simplesmente proibir o registro de patentes. Só assim eles voltarão a ter liberdade para testar ideias “selvagens”, como define, sem se importar com o resultado comercial dos experimentos.

Na entrevista a seguir, o professor conta em detalhes o projeto e os benefícios que ele trará para toda a comunidade.

A Aarhus University se apresenta como uma instituição que valoriza muito a colaboração com empresas e indústrias. Como o projeto Open Science se insere nesse contexto e quais são seus benefícios?
O projeto Open Science já tem sua primeira plataforma de inovação aberta, a Spoman, que, nesse caso específico, é voltada para o desenvolvimento de polímeros inteligentes e nanocompósitos [Spoman é um acrônimo de Smart Polymer Materials and Nano-Composites]. A iniciativa trará muitos benefícios para todas as partes envolvidas.

No campo de interesses das companhias privadas, a iniciativa permite que empresas, pesquisadores e estudantes trabalhem em conjunto em torno de temas fundamentais para a ciência. Como resultado, a pesquisa básica passará a desempenhar um papel mais importante na inovação industrial. Embora essas pesquisas tenham potencial para aumentar a produtividade dos negócios e gerar soluções comerciais inovadoras, apenas uma pequena porcentagem das empresas dinamarquesas opta por esse tipo de investimento. A razão disso é que os resultados da pesquisa básica são muito imprevisíveis e, muitas vezes, levam muitos anos para gerarem lucros. Isto é especialmente verdadeiro para as pequenas e médias empresas que, geralmente, têm menos recursos disponíveis para investir em conhecimento e integrá-lo aos esforços de pesquisa e desenvolvimento.

No entanto, todas as empresas, independentemente do tamanho, são pressionadas por investidores e competidores a gerar melhorias incrementais e de curto prazo para produtos existentes, a fim de conseguir retornos mais rápidos.

A iniciativa Spoman é um remédio para esse fato infeliz.

A adesão é livre e ela reduz, para as empresas, os riscos de explorar ideias radicalmente novas por meio da pesquisa básica. Em outras palavras, pequenas e grandes empresas têm a chance de testar ideias “selvagens” que, potencialmente, podem levar à inovação radical. Em resumo, os benefícios para as empresas privadas são os seguintes: acesso fácil e gratuito ao conhecimento de ponta que pode ser usado para desenvolver novos produtos, serviços etc.; acesso aos nossos alunos e possíveis funcionários; contato com uma ampla seleção de pesquisadores de classe mundial; contato com empresas para discutir interesses compartilhados ou estabelecer novas colaborações comerciais; e possibilidade de explorar ideias selvagens e potencialmente mutáveis, que, de outra forma, seriam consideradas muito arriscadas pela administração ou pelos investidores.

E quanto aos pesquisadores e alunos? Quais são as vantagens para eles?
Os pesquisadores têm contato com colegas de outros grupos e instituições – e potenciais novos parceiros de colaboração; acesso a parceiros industriais que podem financiar projetos de pesquisa; possibilidade de publicar em conjunto com parceiros industriais – estes tipicamente produzem um maior impacto do que os pesquisadores acadêmicos comuns; estímulo para novas ideias de pesquisas; incentivo para resolver problemas interdisciplinares; e suporte para criar empresas ou divisões de empresas a partir de demandas do mercado.

Por ter uma abordagem aberta e transparente, a Spoman também aumenta a reprodutibilidade e a qualidade dos resultados da pesquisa. Já os benefícios para os estudantes são: treinamento em um ambiente altamente interdisciplinar; capacitação para resolver problemas com base na necessidade; contato com potenciais empregadores; desenvolvimento de novas habilidades em comunicação científica; e integração a uma grande rede de contatos na academia e na indústria.

De onde veio a ideia de criar o projeto?
Até certo ponto, a iniciativa Spoman foi uma maneira de trazer a ciência de volta aos valores Mertonianos [relativos ao conjunto de normas estabelecidas pelo sociólogo americano Robert K. Merton em 1942], como abertura, transparência e reprodutibilidade.

Durante as duas últimas décadas, os políticos dinamarqueses intensificaram os esforços para “forçar” as universidades a criar valor para a sociedade, como se fossem empresas, e comercializar suas ideias através de transferência de tecnologia (patentes, licenciamento, etc.). A colaboração Spoman neutraliza esse foco, já que seus fundadores não acreditam que as pesquisas tenham que, necessariamente, produzir receitas impressionantes. A abordagem fechada e protecionista pode impedir a missão original das universidades, que é beneficiar a sociedade.

Além disso, a política acima mencionada favoreceu a pesquisa aplicada em prejuízo da pesquisa básica – e isso pode eventualmente acabar com a própria fonte de ideias e descobertas. Além disso, os pesquisadores universitários encontram-se sob enorme pressão competitiva para ser o primeiro a publicar novos resultados – e eles, por exemplo, são avaliados com base no número e impacto de suas publicações.

Infelizmente, esse sistema encoraja o protecionismo e a concorrência, em vez de colaboração e compartilhamento de resultados. Como resposta, o Spoman permite que as universidades se concentrem no que melhor fazem: pesquisa básica e educação. E convida as empresas no processo a fazer o que melhor fazem: aplicar os resultados para fins comerciais. Portanto, o Spoman reduz a distância da pesquisa básica à inovação / aplicação, convidando a indústria a se tornar parte de toda a cadeia de pesquisas.

Ao fazer isso como ciência aberta, os resultados estão abertos para todos, portanto, novos materiais, técnicas ou conhecimentos são usados ​​não apenas em uma, mas em muitas aplicações. Isso permite novas colaborações e compartilhamento de experiências que, no final, podem reduzir os custos de pesquisa e desenvolvimento.

Como o Open Science funciona na prática?
A indústria e os pesquisadores definem projetos científicos básicos com base em desafios comuns a mais de uma empresa. Os projetos são realizados por estudantes. Nesse semestre, temos 20 alunos (de programas de mestrado, doutorado e pós-doutorado) trabalhando em colaboração ativa com parceiros industriais. Todos os resultados, métodos e planos são compartilhados na plataforma do Open Science (http://osf.io/wudyt/).

Como os pesquisadores e as empresas receberam a iniciativa?
A iniciativa Open Science se desenvolveu a partir de uma estreita colaboração entre pesquisadores acadêmicos e oito empresas fundadoras: RadiSurf, SP Group, NEWTEC, ECCO, LEGO, Alfa Laval, Vestas e Velux. Já temos outras empresas conosco e, até o momento, nenhuma delas demonstrou preocupação quanto à natureza aberta da iniciativa. Como mencionado anteriormente, essa é uma situação de ganha-ganha.

No entanto, existem preocupações entre os pesquisadores acadêmicos. Alguns participam por idealismo – eles querem abrir a ciência novamente –, outros porque veem a Spoman como uma espécie de rede e meio para conseguir financiamento. Mas também temos os que não se inscrevem na abordagem aberta e aqueles que não desejam participar em absoluto, e está tudo bem. O Spoman é um complemento da forma como as pesquisas e transferências de tecnologia são tradicionalmente realizadas. Mas esperamos que o Spoman crie um fluxo de projetos derivados e que estes levem a patentes. Ninguém pode patentear os resultados abertos, mas suas aplicações específicas podem, sim, ser registradas.

O modelo da inovação aberta é viável para empresas que investem grandes somas em pesquisa e desenvolvimento? Elas não se preocupam em proteger os resultados dessas pesquisas?
Como todos os projetos são projetos de pesquisa básica, não há segredos, produtos ou aplicações envolvidas. Por exemplo: podemos desenvolver conceitos para uma nova classe de material. Mas nenhuma das empresas precisa divulgar o que pretende fazer com o material – e ele pode servir para propósitos muito diferentes em diferentes setores e empresas. Assim, as discussões se concentram em grandes necessidades industriais e não em aplicações específicas. Atualmente, temos tanto empresas grandes (por exemplo, LEGO e ECCO), como médias e pequenas.

Quanto aos pesquisadores, eles não estão frustrados com a ideia de que não serão reconhecidos individualmente?
As pesquisas deverão ser publicadas em revistas, como acontece usualmente. No caso de os pesquisadores publicarem com parceiros industriais, as análises bibliométricas indicam que eles alcançarão um impacto maior – e ainda terão mais citações – do que se publicarem sozinhos. E isso pode, por sua vez, beneficiar suas carreiras.

Além disso, a iniciativa Spoman pode trazer desdobramentos individuais para os pesquisadores em projetos posteriores de colaboração “fechada”. Finalmente, o Open Science Framework usado para publicar os dados e resultados tem uma característica especial que permite que o pesquisador individual seja “cotado” cada vez que seus dados são usados ​​ou baixados. Com o tempo, isso pode contribuir para novos indicadores na forma como as universidades avaliam seus pesquisadores e uma nova “economia de reputação” que não se baseia apenas no protecionismo e nas citações.

Quais resultados vocês já colheram?
A iniciativa é muito recente e ainda não gerou novos produtos ou aumento de emprego, por exemplo. Mas acreditamos firmemente que isso acontecerá quando o projeto amadurecer. Estes são, no entanto, efeitos de longo prazo que não podemos esperar medir já.

Quanto aos efeitos de curto prazo, posso dizer que nós detectamos objetivos de estudo / interesse comuns entre estudantes, pesquisadores, empresários, políticos e gestores universitários e conseguimos financiamento da Fundação Industrial Dinamarquesa e da própria universidade para lançar o Spoman. Como iniciamos o Open Science em janeiro de 2017, já temos relatados quatro projetos e acabamos de iniciar outros oito envolvendo mais 20 alunos. Todos os meses, as empresas e os pesquisadores estão se reunindo para discutir temas de ciência, a direção dos projetos e o próprio conceito de inovação aberta.

Outro resultado que pode ser mencionado é o fato de já haver pesquisadores e parceiros industriais planejando colaborações “fechadas” para amadurecer resultados do Spoman. Desta forma, novas colaborações e maiores investimentos em pesquisa já estão em andamento. Os parceiros industriais também estão relatando enormes benefícios depois que se conectaram a novos pesquisadores e empresas. Essa rede abriu oportunidades para o desenvolvimento de novos negócios, P&D e até novas relações comerciais. As primeiras publicações devem acontecer dentro de um ano.

Em sua opinião, outras instituições podem replicar o projeto? Que caminhos eles devem seguir para alcançar um resultado semelhante?
Todos podem replicar o projeto – e espero que alguém o faça. Usaremos nossa avaliação para propor princípios básicos sobre como fazê-lo. No entanto, podem existir diferenças regionais, institucionais ou disciplinares para que uma nova implementação siga uma rota completamente diferente da nossa. Estamos mais do que satisfeitos em ajudar com a nossa experiência se alguém estiver interessado.
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Reportagem por  ,

Crónica politicamente incorrecta a propósito de Cem Anos de Solidão

 Paulo Ramalho*
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«Nas suas memórias (Vivir para contarla, 2002) García Marquez eleva a literatura ao patamar da utopia: “só se deveriam ler os livros que nos forçam a relê-los”. Cem Anos de Solidão é, precisamente, uma dessas obras que têm o raro poder de me convocar ciclicamente para dentro das suas páginas."

Vivemos todos à beira da revelação e a um passo da irrelevância; sonho e pesadelo, amor e ódio, selvajaria e generosidade – oscilamos entre a glória e a perdição. Vem isto a propósito de Cien Años de Soledad, que reli recentemente. Regresso a esse mundo mágico, povoado de personagens excessivos e delirantes – mas não será a vida sempre excessiva e delirante…? Não estará a realidade sempre contaminada de fantasia e inverosimilhança? A incrível e triste história dos Buendia é a história da nossa irremediável solidão comum. E a insónia que atinge Macondo é, afinal, a mesma que nos mantém em vigília, habitados por uma intranquila urgência, suspensos entre o pavor da aniquilação e o milagre da existência.

Nas suas memórias (Vivir para contarla, 2002) García Marquez eleva a literatura ao patamar da utopia: “só se deveriam ler os livros que nos forçam a relê-los”. Cem Anos de Solidão é, precisamente, uma dessas obras que têm o raro poder de me convocar ciclicamente para dentro das suas páginas. Detenho-me, por estes dias, num tema em especial: o abismo emocional que atravessa o livro, separando claramente os universos familiares feminino e masculino: fêmeas pacientes, urdidoras de lares e de famílias, dedicadas ao casto exercício da virtude ou ao amor de um só homem; machos inconstantes e erráticos, de paixões volúveis e queda para o adultério e a bastardia. Penso, por analogia, em Tachia, a amante parisiense de Gabo; penso também nas duas mulheres do meu avô paterno; penso, enfim, em mim próprio e na curta lista dos meus pecadilhos de alcova – não haverá aqui uma constante biológica a considerar? Tenho consciência que piso terreno escorregadio, minado pelas questões da “igualdade de género”; sei que é fácil escorregar na casca de banana do politicamente correcto e cair no palco, em frente da plateia reprovadora – mas, agora que comecei, devo ir até ao fim. Regressemos, pois, aos Cem Anos de Solidão.

Se os heróis deste livro são o produto histórico de uma sociedade patriarcal, assente no domínio masculino e na virilidade exacerbada dos varões da família (lembrem-se os dezassete filhos do Coronel Aureliano Buendia, tidos com dezassete mulheres diferentes); se o papel das mulheres da casa é quase sempre secundário, assentando no hábito da obediência e na repressão dos demónios do prazer (a avó de Úrsula a queimar os órgãos genitais no fogão, para castigar o pecado da sensualidade; Úrsula a encerrar-se voluntariamente num cinto de castidade) – e se tudo isto indicia a relevância dos factores culturais no comportamento dos personagens –, também não é menos verdade que a história é percorrida por um sopro de fatalidade a que não será estranho o imperativo biológico que aprisiona os actores na malha das suas acções: homens dominados pelos caprichos de uma sensualidade que salta a cerca dos bons costumes; mulheres que tecem maternais casulos em torno dos seus lares e aguardam o regresso dos companheiros, com argumentos de fêmea compassiva. Deixemos agora o atormentado destino dos Buendia seguir o seu curso anunciado e olhemos com atenção o mundo à nossa volta. África, Ásia Central, mundo islâmico, ilhas do Pacífico, tribos ameríndias, hinduísmo tradicional – os comportamentos sexuais da espécie humana tendem maioritariamente para um padrão poligâmico, ainda que socialmente codificado e inscrito em matrizes culturais diversas. Se recuarmos ainda mais, até aos nossos parentes primatas, constataremos igualmente que a monogamia é uma excepção e os sistemas de acasalamento da maioria das espécies se baseiam em pequenos grupos ou clãs, onde diversas fêmeas com a sua prole partilham um macho dominante. Está dito, não há como recuar: o autor destas linhas é da opinião que a poligamia está inscrita no código genético da espécie, foi regra nos primeiros grupos humanos e constitui ainda hoje, nas sociedades onde foi banida, um poderoso impulso recalcado, que encontra escape na prostituição e nas relações extraconjugais.

Nunca acreditei na existência de qualquer diferença entre raças – eduque-se, de criança, um pigmeu em plena Manhattan e obter-se-á, em adulto, um Nova-iorquino sofisticado, que caminha com desenvoltura na selva urbana e se sente inseguro no meio da natureza. Em contrapartida, fui-me apercebendo que todas as civilizações e culturas são erguidas sobre a diversidade estruturante dos sexos. Chamemos-lhe complementaridade, se quisermos – mas a verdade é que homens e mulheres não são exactamente iguais. Como se pode então falar de igualdade de género…? O terreno de discussão está tão contaminado por estereótipos sexistas que se torna difícil avançar sem cair no alçapão do pensamento dogmático. Mas, se conseguirmos evitar as armadilhas ideológicas dos dois extremos – machismo e feminismo –, acabaremos por chegar ao essencial: conseguir conciliar a diferença de género com a igualdade de oportunidades.

E voltamos à questão da poligamia masculina versus monogamia feminina… Nesse, como noutros campos, a miopia etnocêntrica e a arrogância evolucionista do mundo ocidental estão na origem de um processo de condicionamento da realidade que elimina as diferenças culturais para se instituir como pensamento único. Vivemos, de facto, numa sociedade de moralismos contraditórios, que mais facilmente legaliza a prostituição ou a união entre pessoas do mesmo sexo do que reconhece o direito ao casamento simultâneo – estável e feliz – entre mais de duas pessoas.
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*  É antropólogo e escritor português. Vive em Lisboa.
.©Paulo Ramalho
Fonte:  https://escritores.online/cronicas/paulo-ramalho/
Imagem da Internet

Gao Xingjian: “Nacionalismo, comunismo: ainda estamos presos sob o jugo das ideologias do século XX”

Gao Xingjian | Prêmio Nobel de Literatura em 2000
Gao Xingjian em uma foto de arquivo
Gao Xingjian em uma foto de arquivo

Escritor, pintor e cineasta de origem chinesa alerta sobre o crescimento dos populismos e propõe a construção de um novo Renascimento

Foi o primeiro Nobel de Literatura chinês, em 2000. Recebeu a honraria quando já acumulava mais de uma década como exilado na França, onde se refugiou das perseguições do regime comunista chinês, que inicialmente reagiu ao prêmio com um sonoro silêncio, e depois com uma crítica duríssima. Hoje, Gao Xingjian não poderia estar mais longe da China, onde nasceu em 1940. Não gosta de falar daquele país onde cresceu e se tornou tradutor; do regime que o obrigou a queimar uma mala com todos os seus escritos e o enviou a um campo de reeducação para lavrar a terra. “A China já não é o meu país, é o meu país anterior. Há 30 anos não tenho nenhum contato com nada relacionado a ela. Não tenho um passaporte que me credite como cidadão do mundo, mas me considero um”, comenta o escritor, pintor e cineasta, que desde 1998 também tem a nacionalidade francesa.

Como cidadão do mundo, o autor da A Montanha da Alma (Companhia das Letras), voraz leitor dos clássicos e audaz analista da história e da atualidade, alerta para a “profunda crise” que se instalou na sociedade ocidental. “Estamos presos sob o jugo das ideologias do século XX. E o verdadeiro problema é que essas ideologias viram dogmas que não resolvem os problemas. Tomemos como exemplo o marxismo, o comunismo, que se tornaram um pesadelo. Ou o fascismo e o nacionalismo, que têm efeitos brutais, como já vimos. Ideologias que, apesar de tudo, não foram derrotadas e que, como vimos, infelizmente não caducam. Também o imperialismo, que se volta para propostas políticas vazias, não tem um verdadeiro sentido”, afirma em Iasi (Romênia), onde participou do Festival de Literatura e Tradução (FILIT).

E essa desmemória, esse abraçar de dogmas caducos, contribui, afirma ele, para aprofundar a crise política, econômica e social que o mundo enfrenta na atualidade. O “declínio do Ocidente”, como descreve. “A democracia está se degradando e hoje enfrenta gravíssimos problemas”, adverte. “Não pode ser só uma simples apuração de votos, sem perspectiva, horizonte e futuro. E isso é o que acontece se deixamos os políticos manipularem a população para obter o poder do escrutínio. Isso não soluciona a crise econômica, a poluição, o terrorismo, o desemprego, a globalização.”
Gao Xingjian 
Gao Xingjian
Veste-se quase sempre com roupas pretas. Seu luto, e também seu tom de voz suave e cadenciado, alimentam essa imagem de fragilidade na qual se instalou desde que, após ganhar o Nobel, caiu gravemente doente por causa da pressão e dos “compromissos” do prêmio. Mas Gao Xingjian não é tênue, nem muito menos sutil, quando se mostra “preocupado” com a expansão do populismo, com o avanço da extrema direita na Alemanha e na França, com o impulso dos ultraconservadores nos Estados Unidos de Donald Trump. “Infelizmente, são essas ideias populistas as que triunfam hoje em dia. E podemos falar de extremismos de ambos os lados. A ideologia de extrema esquerda, que sempre conclamou a fazer a revolução e que ainda toma a revolução de Lênin como exemplo – algo que é estúpido, porque já se passaram 30 anos [desde a desintegração da URSS], e parece que ela se esquece de tudo o que aconteceu. E por outro lado estão os pujantes extremistas nacionalistas. Infelizmente, esquecemos que o fascismo nasceu desse nacionalismo extremo, que finalmente vira uma ditadura. Parece que deixamos de lado na nossa memória a História, o massacre dos judeus, todos os crimes cometidos. O verdadeiro problema da humanidade é que esquecemos nosso passado”, lamenta o escritor, que propõe lançar um verdadeiro debate sobre o devir da sociedade.

O autor, que muitos descrevem como um homem do Renascimento, por mergulhar e se sentir cômodo não só na escrita, mas também na fotografia, no cinema, no teatro e na pintura, clama por um novo “Renascimento social”. “Evito falar de revolução, porque se abusou do termo. Prefiro falar de renascimento. Embora não seja o mesmo que surgiu para sair da escuridão da Idade Média, trata-se, sim, do mesmo conceito: é preciso repensar tudo, uma nova motivação na indústria da tecnologia, da ciência, um novo pensamento com o foco e o interesse humanístico. Um renascimento que nada tem a ver com a religião, e sim com a essência humana”, propõe.

E nisso inclui também a cultura, que, ao se tornar “um produto da cultura do consumo”, não escapa da crise, segundo ele. Mas que papel deve desempenhar a literatura e a arte como um todo dentro desse renascimento? “A literatura não deve ficar enjaulada, deve ser independente. Os artistas, os escritores, com sua própria sabedoria, lucidez e consciência, mostram seu conhecimento da sociedade com suas próprias experiências e tocam a condição humana dos nossos dias. Devemos deixá-los testemunhar para despertar o espírito de outros, do público”.
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Reportagem por  María R. Sahuquillo
Iasi (Romênia) 27 NOV 2017 
Fonte:  https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11/19/internacional/1511131758_452301.html

Alexey Dodsworth - Distopia atual é achar que o autoritarismo é normal, diz escritor de ficção científica.

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 Dodsworth em Veneza: pesquisa com o transumanismo 
para que a tecnologia seja aliada da qualidade de vida
Alexey Dodsworth, pesquisador do transumanismo, avalia o momento presente no Brasil e no mundo frente às obras clássicas do gênero que projetavam uma vida de regressões e opressão
De Veneza, onde reside atualmente, o escritor, filósofo e pesquisador ítalo-brasileiro Alexey Dodsworth, ex-assessor especial do Ministro da Educação no segundo mandato de Dilma Rousseff, Renato Janine Ribeiro, concordou em realizar uma conversa por e-mail com a Revista do Brasil sobre o tema 'distopia na política e literatura'. A ideia da entrevista foi discutir se o que escritores como George Orwell e Aldous Huxley, entre outros clássicos da ficção científica, projetaram em suas obras estaria acontecendo hoje frente ao desalento provocado por governos autoritários e segmentos da sociedade que claramente defendem retrocessos nas áreas sociais, e são altamente manipulados, como as obras desses escritores previram.  

"Todos esses autores perceberam o que deveria ser mais óbvio para todos nós: a história se repete. E o mal, conforme pintado nessas obras, não é um monstro alienígena pandimensional. O mal, em todas essas obras que você citou, brota de nossa própria banal humanidade, é o autoritarismo cotidiano que se normaliza, a um ponto em que nos tornamos indiferentes a ele."

Com doutorado em filosofia pela Universidade de São Paulo, Dodsworth pesquisa o transumanismo, um campo que ele define como "um movimento científico, político e cultural cujo objetivo maior é a superação das limitações humanas a partir da utilização ética da ciência e da tecnologia. O objetivo dos transumanistas se harmoniza com a criação de eutopias: lugares, sejam eles em nosso planeta ou fora dele, onde os seres sencientes, sejam eles humanos ou não-humanos (animais ou artificiais), possam viver bem".

Dodsworth tem três livros de ficção publicados. O primeiro deles, Dezoito de Escorpião (Novo Século, 2014), foi contemplado com o Prêmio Argos (2015) na categoria “melhor romance de literatura fantástica”. Seu outros títulos são O Esplendor (2016, Draco Editora) e Extemporâneo (Editora Presságio, 2017), este selecionado pelo Programa de Apoio à Cultura do Estado de São Paulo.

Ao falar sobre o tema, Dodsworth encontra significados para a distopia em diferentes campos, um deles especificamente sobre o Brasil: "Infelizmente, temos sido muito dedicados na construção de uma sociedade distópica, a despeito de nossas condições naturais vantajosas".

E nas redes sociais: "Eis a distopia: nós temos a internet e, com ela, poderíamos aprender sozinhos um monte de coisas interessantes. Aprender idiomas. Fazer cursos à distância. Ler livros. Mas a maioria de nós usa a internet apenas como uma rede social de contato com pessoas que, em sua maioria, não são realmente nossas amigas. Estamos simplesmente futricando a vida uns dos outros, mas poderíamos estar aprendendo grego, ou fazendo um curso online de astrofísica".

"A distopia de nossos tempos é muito bem demonstrada na série Black Mirror: tecnologias incríveis sendo utilizadas para viabilizar nossa mesquinharia, nossa capacidade de oprimir, nossa priorização de coisas ridículas", diz ainda Alexey. 

Sobre os movimentos contra a corrupção: "Claro que não são 'contra a corrupção'. Ficaram e ficam quietos diante de exemplos bizarros de roubalheira, de abuso de poder e denúncias gravíssimas. O nível intelectual é tão baixo, que conseguem chamar o PT de 'comunista', um dos partidos que mais favoreceu bancos e empresários na história desse país." 

Alexey considera o MBL praticamente um agente da distopia: "...o MBL não está preocupado com arte, nem com os museus (duvido que frequentem, mesmo quando há exposições de Rembrandt), não está preocupado com as crianças, com nada disso. Esses protestos são um espantalho: eles criam um demônio a ser combatido, e dançam loucamente em torno deste demônio, proferindo insultos. É uma forma de angariar poder político. Quando gritam “pedofilia”, se valem de uma palavra poderosa, capaz de arrastar as emoções dos outros e conduzi-los à fúria, sendo que poucos são os que irão pensar “será que havia, de fato, pedofilia?”. Indignação e ódio são emoções que se multiplicam e se propagam como fogo em palha, é só ver como isso funciona em redes sociais."

O que é distopia? Entre os séculos 20 e 21 a significação desse termo se altera? Ou: a dinâmica de transformação da sociedade impõe a necessidade de ressignificar o conceito de distopia de tempos em tempos?
As expressões “distopia” e “utopia” têm em comum o termo grego “topos”, que significa “lugar comum”. A um primeiro olhar, é possível dizer que a expressão “distopia” é oposta à expressão “utopia”, posto que esta última significa – em um sentido mais superficial – um lugar ideal, bom, agradável.

Distopias, por sua vez, seriam realidades horríveis. Desde que John Stuart Mill usou – até onde se sabe, pela primeira vez – a expressão “distopia”, seu significado em nada se alterou. A ideia de um lugar (topos) de dor e sofrimento (dys) não se altera, o que muda são os mecanismos que fazem valer uma sociedade infeliz e dolorosa. Dentre tais mecanismos, o mais sutil e eficiente é aquele que faz os cidadãos acreditarem que vivem uma vida boa. Um bom exemplo é o discurso saudosista “na ditadura militar, as coisas eram melhores”. Não eram. Havia corrupção, tortura, ausência de liberdade de expressão. O fato de você não ter sofrido isso, não significa que tais coisas não ocorressem.

Mas aí que entra o problema: o significado literal de “utopia” é “lugar nenhum” (em grego antigo, o “u” é uma negação: u+topos, não-lugar). O que podemos ter é o desejo ou a esperança de um lugar maravilhoso, ideal, mítico. Só que este lugar não se realiza em canto algum, é um lugar que não existe, que pertence à esfera da imaginação, pertence ao porvir, localiza-se sempre num futuro possível ou uma lenda fantástica.

Deste modo, aprofundando a questão, o oposto de “utopia” não é “distopia”, pois o oposto de “lugar nenhum” não é “lugar ruim”. O oposto de “lugar nenhum” é, simplesmente, “algum lugar”: os topoi, as cidades. E a dinâmica das cidades muda: ora elas estão melhores, ora estão piores, na comparação consigo mesmas e com outros lugares existentes. E falo de “melhor” e “pior” num sentido objetivo, sem relativismos: liberdades individuais respeitadas, boas condições de saúde e educação, segurança etc. Estes lugares, as cidades, nunca se tornam “utopias”. Seria contraditório, pois, se utopias se tornassem, deixariam de ser “lugares”, para serem, por definição, “não-lugares”. Se a cidade existe, ela é um topos e, na qualidade de lugar existente, está sujeita à mutabilidade, está sujeita a se degradar, mas também a melhorar. Vivemos no devir, onde tudo muda.

Eu gosto da expressão pouco conhecida “eutopia”, que sinaliza um lugar (topos) bom (“eu”, em grego, significa “bem”, “bom” e “belo”). Eutopias, diferentemente de utopias, são lugares existentes, lugares possíveis porque não se pretendem perfeitos, mas em busca de melhorias. Dito isso, as cidades podem ser mais ou menos distópicas ou mais ou menos eutópicas, e isso pode ser avaliado a partir de critérios, como eu já disse, bem objetivos e mensuráveis: como é a saúde da população? A taxa de assassinatos e crimes? E a educação? E o índice de felicidade? Tudo isso se mede, e é claro que podem haver defeitos e vieses nos processos de medição, mas é importante buscar modos objetivos de mensurar a qualidade de vida.

É fato que existem, em nosso planeta, lugares mais eutópicos ou mais distópicos. Há também lugares com maior potencial natural de eutopia, como é o caso do Brasil, onde não ocorrem terremotos de grande monte, onde não há vulcões, onde a natureza é farta e os recursos, abundantes. Infelizmente, temos sido muito dedicados na construção de uma sociedade distópica, a despeito de nossas condições naturais vantajosas.

Sobre a distopia ressignificada, eu diria que o maior perigo jaz nas distopias que não envolvem sofrimento evidente e são mantidas por servidão voluntária. Renato Janine Ribeiro, meu orientador de doutorado, sempre diz – e com razão – que todo mundo sabe quando está com má saúde, mas é difícil para o mal educado ter consciência de sua ignorância. O ignorante vive na distopia e a sustenta, a embasa, vota nela, a aplaude e faz propaganda.
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Ex-ministro Renato Janine e Dodsworth: experiência no MEC 
durante o governo de Dilma Rousseff
Considerando o seu envolvimento na pesquisa sobre o conceito de ‘transumanismo’, você diria que a ‘distopia’ representa algumas das possibilidades de vislumbrar o futuro da humanidade? De outro modo: o transumanismo transforma o conceito de distopia?
Creio que cabe iniciar a resposta explicando – sinteticamente – o que é transumanismo. Trata-se de um movimento científico, político e cultural cujo objetivo maior é a superação das limitações humanas a partir da utilização ética da ciência e da tecnologia. O objetivo dos transumanistas se harmoniza com a criação de eutopias: lugares, sejam eles em nosso planeta ou fora dele, onde os seres sencientes, sejam eles humanos ou não-humanos (animais ou artificiais), possam viver bem.

Começo respondendo que um dos mais recorrentes mal-entendidos experimentados por nós, transumanistas, é quando nos deparamos com a crítica que nos acusa de favorecer distopias a partir de uma “veneração por tecnologia”. O filósofo Francis Fukuyama é um dos que sustentam essa crítica, que pode ser lida em seu texto Transhumanism – The World’s Most Dangerous Idea (em tradução livre: Transumanismo – A ideia mais perigosa do mundo). Em síntese, Fukuyama chama a atenção para o risco de criarmos duas humanidades: uma com dinheiro suficiente para pagar por melhoramentos tecnológicos, capaz de estabelecer um grupo de “super-humanos”, e outra de humanos normais, sem recursos para gozar dessas maravilhas tecnológicas. A distopia seria este mundo dual, composto por humanos aperfeiçoados e humanos comuns.

Há dois pontos, aqui, que considero importantes a destacar: Fukuyama tem razão quando fala em segregação da humanidade em dois tipos, o problema é que isso que ele critica não é algo que “pode vir a ser criado pelos transumanistas”. É algo que efetivamente já ocorre! Nosso mundo é dividido entre alguns poucos que possuem recursos para uma vida boa, e muitos que vivem em uma constante situação de distopia. Ora, já existem os que estão em melhores condições do que os outros, que não o são necessariamente por mérito, mas por sorte de terem nascido em determinadas conjunturas. O avanço científico e tecnológico não vem aprofundar esta desigualdade, e sim diminuí-la. Quanto mais conhecemos sobre o mundo e quanto mais avançamos cientificamente, mais baratas e acessíveis se tornam as tecnologias que permitem viver bem. Coisas que eram caríssimas há dez anos, hoje são acessíveis a quase todos. Veja o exemplo dos remédios que controlam tumores do tipo GIST. Custavam dezenas de milhares de dólares na virada do século. Hoje, são fornecidos pelo SUS, e o governo os viabiliza por algumas centenas de dólares. Outro exemplo: em 1970, meu pai teve um filho que nasceu com distúrbio congênito cardíaco. A criança morreu. Na época, não havia tecnologia capaz de melhorar as condições dessa criança. No fim dos anos 90, um de meus sobrinhos nasceu com o mesmo problema cardíaco que matou meu irmão mais velho. A tecnologia, então, permitiu a correção do problema, e meu sobrinho tem hoje vinte anos, e já é pai. A tecnologia que salvou meu sobrinho está disponível para qualquer criança brasileira. Quando eu visitava meu sobrinho na casa de apoio à criança cardíaca, me deparava com crianças provenientes de lugares pobres, enviadas pelo SUS a São Paulo para serem operadas no Incor. A tecnologia permitiu, de forma objetiva, a diminuição do sofrimento e barateou com o tempo. Se há alguns que podem hoje pagar por tecnologias melhores, é questão de tempo até que tais tecnologias barateiem.

Por outro lado, posso citar o filósofo Jürgen Habermas. Em síntese, ele diz que a tecnologia muitas vezes não soluciona necessidades humanas, a tecnologia as cria. Além do que, mesmo tendo acesso a tecnologias incríveis que nos fariam parecer deuses para nossos bisavós, ainda assim tendemos a utilizá-las de um modo tosco. Eis a distopia: nós temos a internet e, com ela, poderíamos aprender sozinhos um monte de coisas interessantes. Aprender idiomas. Fazer cursos à distância. Ler livros. Mas a maioria de nós usa a internet apenas como uma rede social de contato com pessoas que, em sua maioria, não são realmente nossas amigas. Estamos simplesmente futricando a vida uns dos outros, mas poderíamos estar aprendendo grego, ou fazendo um curso online de astrofísica. E nos sentimos contentes com isso. Eis a distopia que não se percebe como tal.

Então, se há um risco para o transumanismo, eu diria que é este: uma tecnologia que nos converta em crianças superpoderosas cada vez mais mimadas e dadas a chiliques quando uma máquina quebra. Outro dia, eu testemunhei um escândalo protagonizado por um rapaz no momento em que o wi-fi do avião caiu, num voo Europa-América do Sul. Ora, até ano passado eu nunca tinha visto wi-fi num voo que cruzasse o Atlântico, e vivi muito bem sem isso. O escândalo que ele fez só seria justificável se tivesse faltado água no avião.

A distopia de nossos tempos é muito bem demonstrada na série Black Mirror: tecnologias incríveis sendo utilizadas para viabilizar nossa mesquinharia, nossa capacidade de oprimir, nossa priorização de coisas ridículas. 

Considerando as obras clássicas de ficção científica, como os romances Fahrenheit 451 (1953), de Ray Bradbury; A Laranja Mecânica (1962), de Anthony Burgess; 1984 (1949), de George Orwell; Nós (1921), de Ievguêni Zamiátin – este é considerado o pai da distopia na literatura; e Admirável Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley, você diria que as distopias previstas nesses livros estão acontecendo hoje no mundo de algum modo?
Eu diria que todas essas obras refletem coisas que ocorreram, que são contemporâneas aos autores e foram por eles testemunhadas. Estamos muito longe de podermos nos comparar com o nazismo ou o fascismo e, embora existam sementes disso em todo o mundo e eu as reconheça, eu fico sinceramente preocupado em gritar “fascismo” para tudo o que eu não goste. Sinto-me como na alegoria do menino que gritava “lobo!” a torto e a direito, até que um dia o lobo apareceu de verdade e ninguém acreditou. A semente da distopia sempre existe e sempre existirá, pois a degeneração é um risco constante no mundo real. Por isso mesmo essas obras que você citou são clássicas, elas são atemporais: elas falam de coisas que nunca cairão em desuso, justamente porque vivemos em um mundo real, e não em uma utopia.

Você concorda com a tese de que a concretização da distopia hoje se reflete nas escolhas políticas que reabilitam governos conservadores e de algum modo preconceituosos, como estamos vendo no Brasil, com Temer, que ataca os direitos dos pobres e trabalhadores, e nos Estados Unidos, com Donald Trump, que exerce a xenofobia? Faz sentido a pergunta: o que está acontecendo no mundo hoje?
Concordo parcialmente. Explico: não existe “concretização da distopia”, no sentido de algo que se estabelece e não pode ser mudado.  Qualquer distopia pode ser combatida e revertida, embora algumas sejam mais difíceis de solucionar do que outras. Se o Brasil está mais distópico, e eu acredito que de fato esteja, não há nada que não possa ser mudado. A resistência existe, de várias formas e em vários fronts. Esta resistência é individual e coletiva, eventualmente atrapalhada, eventualmente acertada, mas no Brasil ela é manipulada. Basta observar alguns dos ditos movimentos “contra a corrupção”. Claro que não são “contra a corrupção”. Ficaram e ficam quietos diante de exemplos bizarros de roubalheira, de abuso de poder e denúncias gravíssimas. O nível intelectual é tão baixo, que conseguem chamar o PT de “comunista”, um dos partidos que mais favoreceu bancos e empresários na história desse país. 

Aponto também para o uso do termo “conservador” em sua pergunta. Embora eu me defina como progressista, não vejo com bons olhos a demonização dos conservadores. Progresso e conservação não são opostos inconciliáveis, são disposições que se completam e que demandam sabedoria para decidir o que deve progredir e o que deve ser conservado. Há coisas conquistadas em nosso processo civilizatório que demandam conservação. A própria preservação da natureza, os movimentos ecológicos trazem em si aspectos conservadores, em contraposição a um desenvolvimentismo a todo custo – este sim, distópico. Dito isso, entendo que muitos dos que se definem como “conservadores” nem isso são. Eles são regressistas, isto sim. Eles não querem conservar o que é bom para a polis, eles querem retroagir a um estado de coisas que era bom apenas para alguns. É o caso, por exemplo, dos que lutam para cancelar o direito aos homossexuais de se casarem no civil. No que muda a vida de alguém se duas pessoas do mesmo sexo decidem se unir por contrato civil? A partir de argumentos toscos que bebem de fontes das falácias mais vergonhosas, esses regressistas exploram o sentimento do medo para criar espantalhos – inimigos imaginários que justificam a gritaria por regressão.

Quanto ao que acontece no mundo, não é diferente do que sempre ocorreu. A existência é uma dança constante entre progresso, conservação e regresso. Não existe sofrimento que não possa ser repetido, nem mal que não possa ser combatido. Mas, tudo somado, estamos melhores enquanto humanidade do que estávamos antes. Sofremos regressões no Brasil? Sim. A condição de muita gente piorou individualmente? Sim. Nada irremediável, porém. Enquanto humanidade, e mesmo enquanto brasileiros em geral, a vida que levamos hoje é objetivamente melhor do que a vida que levavam os nossos ancestrais do século 20 (ou dos anteriores). O saudosismo que muitos sentem é uma forma sofisticada de autoengano, a não ser em alguns casos individuais em que o sujeito pode dizer “minha vida era objetivamente melhor antes”. O mais comum, contudo, é o tipo que vê no passado essa perfeição que jamais existiu – é exatamente a utopia, o lugar imaginário.

Governos distantes dos interesses da classe trabalhadora, que não precisam da força bruta, mas apenas do poder midiático para colonizar a consciência das pessoas são um sinal de que a distopia prevista pelos escritores, como George Orwell, está acontecendo?
Uma das principais inspirações de Orwell para escrever 1984 foi Nós, do russo Zamiátin. Ambos criticam o autoritarismo do Estado. A consciência das pessoas, em ambas as obras, está oprimida mais pelo medo do Estado do que pela sedução da mídia. Poderes autoritários intimidadores são mais fáceis de combater porque o mal está identificado. Mas o que fazer quando as pessoas estão seduzidas pelo poder midiático? É bem mais complicado, porque elas não sentem que estão sendo dominadas, e se convertem em papagaios de pirata.

Poderíamos dizer que no seu romance Dezoito de Escorpião a distopia se dá em algum plano, como no caso das doenças mentais?  
Dezoito de Escorpião tem como cenário principal uma eutopia que oferece nova oportunidade de vida para pessoas diagnosticadas com doença mental. Fica evidente que o mundo é apenas o mundo, mas para aqueles indivíduos singulares o mundo é mais que isso, é uma distopia, pois as correntes eletromagnéticas artificiais afetam sua sensibilidade especial. Um dos personagens, Ravi Chandrasekhar, capaz de antecipar perigos, usa essa capacidade como desculpa para tentar controlar tudo. Por considerar a humanidade incapaz de cuidar de si mesma, ele cria uma eutopia à qual as pessoas voluntariamente se submetem. O problema da eutopia de Ravi é que ela depende inteirinha dele e, por isso, é muito difícil sustentá-la.

O quanto a distopia é inerente ao gênero da ficção científica?
Não diria que a distopia é “inerente” à ficção científica, mas que se trata de um modelo recursivo bastante utilizado por autores diversos. O ato de retratar uma sociedade doentia confere carga dramática a uma história. Dificilmente alguém se interessaria por um romance destituído de um grave conflito central. Claro, há ficções eutópicas. O Esplendor, meu segundo livro, se passa em um mundo eutópico. Mesmo esse tipo de história, contudo, tem um ponto: o quanto dura uma eutopia? O que pode destruí-la? Quais são as sementes do mal, e de que forma elas brotam?

Nós, que escrevemos, contamos histórias, sabemos que elas precisam de sofrimento para existir. Uma história ficcional sempre será, em maior ou menor grau, uma história de sofrimento. Seja ele o combate contra o sofrimento que já se instalou, seja o susto diante do que tenta se instalar.

Por que o futuro é pensado de forma distópica pelos escritores que mencionamos?
Apesar de terem biografias bem distintas e terem vivido em contextos diferentes, há alguns pontos em comum nos autores que você citou. Eles mais falavam do presente e do passado do que antecipavam o futuro, ou, melhor dizendo, construíram mundos ficcionais nos quais o futuro se apresenta como repetição “vitaminada” do que eles mesmos testemunharam. Todos esses autores perceberam o que deveria ser mais óbvio para todos nós: a história se repete. E o mal, conforme pintado nessas obras, não é um monstro alienígena pandimensional. O mal, em todas essas obras que você citou, brota de nossa própria banal humanidade, é o autoritarismo cotidiano que se normaliza, a um ponto em que nos tornamos indiferentes a ele.

Orwell teve uma vida curta, viveu na primeira metade do século 20, tinha inclinações anarquistas e testemunhou a Segunda Guerra Mundial. Ele tinha horror a governos autoritários, e escreve 1984 tendo como pano de fundo a Inglaterra justamente como forma de alertar que o fascismo pode brotar em qualquer lugar, mesmo em um país tão civilizado. O próprio Orwell escreve isso em uma carta para um amigo, Henson. 1984 é um alerta: nenhum lugar está livre de virar uma distopia. Não se deve tomar a liberdade como garantida, nenhum povo está protegido da semente do fascismo.

Zamiátin, escritor russo que inspirou Orwell, começa como um socialista politicamente engajado, que apoia a Revolução de Outubro, mas que paulatinamente passa a se incomodar com a censura protagonizada pelos bolcheviques. Ele se inspira nas piores coisas do regime russo do início do século 20, e propositalmente se vale da literatura para ironizar os exageros. Escrever ficção passa a ser sua forma de engajamento político, tanto que sua obra mais conhecida, Nós, lhe rendeu a proibição de publicar qualquer coisa. 

Bradbury, como Orwell, também escreve Fahrenheit 451 logo após a segunda guerra mundial. Diferente de Zamiátin, que usa o desapontamento com o socialismo russo como fonte de sua crítica, Bradbury diz, em mais de uma ocasião, que a distopia monstruosa e censuradora das liberdades individuais pode tanto vir da esquerda, quanto da direita ou do centro. Bradbury não está preocupado com uma orientação política específica. Ele se volta, isso sim, para as inclinações autoritárias humanas. Há algo em comum entre Bradbury e a filósofa Hannah Arendt: ambos veem males como o nazismo não como uma “monstruosidade”, mas como um mal banalizado.

Huxley escreveu Admirável Mundo Novo antes da Segunda Guerra Mundial, mas ilustra também as preocupações do escritor com o autoritarismo de Estado. Não me surpreende. Huxley viveu muitos anos na Itália da década de 1920, exatamente na época em que Mussolini arrebentou as proteções constitucionais que garantiam o direito de expressão e de associação.

Com as intervenções do Movimento Brasil Livre (MBL) fica claro que para as correntes conservadoras a arte só é aceita desde que não toque nos cânones da sociedade de consumo, como vemos nos casos noticiados pela imprensa, seja quanto à exposição em Porto Alegre, no MAM, em São Paulo, ou em outros casos. No livro Fahrenheit 451 a função dos bombeiros é queimar livros. E as pessoas que exercem a resistência acabam por decorar esses textos para mantê-los vivos. Como você vê essa desvalorização ou desejo de supressão da arte pelas sociedades distópicas?
Mas o mais irônico nisso tudo é que a própria arte dita pós-moderna, seja ela objetivamente boa ou ruim, também atende a uma sociedade de consumo. Quando movimentos conservadores acusam a arte pós-moderna de ser “esquerdista”, soam ingênuos. Se eu pego um bidê, pinto de cor de rosa e o ponho no meio de uma galeria conceituada e anuncio que a minha “obra de arte” custa trinta mil reais, haverá quem a compre simplesmente porque se sente adquirindo um produto diferenciado em um lugar cult, assinado por um artista cuja existência foi criada por empresários empolgadíssimos com a ideia de lucro fácil. Capitalismo escrachado. Não há nada de “socialista” nisso, é puro livre mercado: como há quem compre como forma de se sentir especial, da próxima vez ofereceremos um bidê sujo de vômito e pintado de azul.

Refiro-me, aqui, não à arte pós-moderna como um todo, porque existe a boa arte pós-moderna. O trabalho de Vik Muniz, por exemplo, lida com lixo, mas exige um altíssimo nível de domínio técnico e criatividade. Muniz é genial. Falo do “ruim” em um sentido objetivo: algo que não demanda nem um mínimo de domínio técnico. Qualquer um é capaz de pintar um bidê de cor de rosa, mas é preciso marketing para converter o banal em fenomenal. Marketing sem muito esforço, vale dizer. Bastam as validações impressionantes dos lugares e das pessoas para fazer algo tolo ser vendido por um preço tão alto.

Dito isso, quero aqui pontuar que o MBL não está preocupado com arte, nem com os museus (duvido que frequentem, mesmo quando há exposições de Rembrandt), não está preocupado com as crianças, com nada disso. Esses protestos são um espantalho: eles criam um demônio a ser combatido, e dançam loucamente em torno deste demônio, proferindo insultos. É uma forma de angariar poder político. Quando gritam “pedofilia”, se valem de uma palavra poderosa, capaz de arrastar as emoções dos outros e conduzi-los à fúria, sendo que poucos são os que irão pensar “será que havia, de fato, pedofilia?”. Indignação e ódio são emoções que se multiplicam e se propagam como fogo em palha, é só ver como isso funciona em redes sociais. A indignação é compartilhada sem que se verifique devidamente se o que se compartilha é real. E, sinto dizer, todos fazemos isso, sejamos de esquerda, de centro ou de direita. A estupidez se distribui farta e generosamente por todo o espectro político, e é mais desagradável ainda quando brota de nosso próprio lado – eu, por exemplo, me defino como de esquerda. O problema maior não é o escândalo dos burros, é o silêncio dos bons. Diante da estupidez recente do MBL, foram poucos os meus amigos de direita que se insurgiram e os criticaram. Fiquei feliz ao constatar que alguns, contudo, o fizeram. Do mesmo modo, creio ser uma obrigação moral reclamar quando a esquerda – meu lado do espectro – comete tolices. Ora, eu mesmo quero que me puxem a orelha se e quando eu cometer tolices. Só que, para muitos menos dotados intelectualmente, o ato de discordar já lhe converte em “traidor do movimento” e, por isso, há quem prefira ficar calado. Calar-se é uma forma de garantir o lugar na tribo. O lugar vale tanto assim? Eu acho que não. Nenhum lugar vale nossa submissão voluntária.

Palavras têm poder, e não é à toa que a literatura fantástica atribui poderes mágicos a elas. “Abracadabra”, por exemplo, talvez tenha origem hebraica, “aberah kedabar”, “criarei conforme falarei”. E assim é com gritos vazios: enquanto falo, crio efeitos mágicos. Como “pedófilo”, proferido por alguns movimentos de direita e, convenhamos, há o equivalente disso em alguns de esquerda, que gritam “nazista!” para seus desafetos, sejam lá quem forem. Há uma piada sobre isso: “todo mundo que eu não gosto é Hitler”. É bem verdade que muita gente de esquerda às vezes derrapa e faz isso. O equivalente, em alguns nichos da direita, é “todo mundo que eu não gosto é pedófilo”. Essa gritaria é uma forma de tentar exercer poder mágico por meio de palavras de efeito, justamente porque tais líderes não vicejam em um diálogo que demande maior elaboração mental. Eles são os prestidigitadores dos tempos atuais. Distraem você enquanto o truque é feito e, quando você se dá conta, arrancaram um coelho – no caso, um político instantâneo – da cartola.

Que outras características da distopia você vê na humanidade hoje?
Dentre todas as características que favorecem distopias, a maior delas me parece ser o nosso empenho em converter o planeta em um lugar inóspito para nós mesmos. Quando se diz que estamos destruindo o planeta, eu costumo corrigir, e respondo que não estamos. O que nós estamos destruindo são as condições que nos permitem viver bem neste planeta. Somos capazes de extinguir a nós mesmos e a muitos outros animais, mas a vida continuaria a existir, ainda que apenas na forma de bactérias extremófilas. Afinal, o que é distópico para nós pode perfeitamente ser eutópico para uma bactéria que adora radiação, como a Deinococcus radiodurans. Ou para baratas. Se isso vier a ocorrer (e talvez já tenha ocorrido inúmeras vezes ao longo da galáxia, em outras épocas e civilizações), o universo não sentirá a nossa falta.
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Reportagem por Helder Lima, da RBA publicado 22/10/2017 16h51

arquivo pessoal / facebook - Acesso 27/11/2017
Fonte:  http://www.redebrasilatual.com.br/revistas/133/a-distopia-segundo-o-escritor-alexey-dodsworth/view