terça-feira, 14 de novembro de 2017

Antifundamentalismo

 Marcia Tiburi *
Antifundamentalismo

A reflexão sobre a falta de fundamento proposta por Flusser em sua autobiografia filosófica chamada Bodenlos pode nos ajudar a pensar o que é o “fundamento” e o que 
é o fundamentalismo hoje. 

Experimento filosófico poliglota, diálogo entre línguas em que criação e tradução acontecem ao mesmo tempo, a obra de Flusser é o exercício das potências do pensamento na matéria da língua vivida, ela mesma o chão da vasta reflexão do filósofo tcheco e judeu que, por décadas, viveu no Brasil. É nesse espírito que encontramos em sua filosofia uma exposição do sentido produtivo do que ele chamou de “falta de fundamento”. 

Bodenlos é o nome de sua autobiografia filosófica publicada em 1992 logo após sua morte. Nela, uma introdução traz o título “Atestado de falta de fundamento” como se fosse um documento. Muito para além de um currículo, de um documentário ou da descrição dos meros fatos da vida, o que interessa a Flusser é a exposição da vida do pensamento e do diálogo objetivo e subjetivo que ele teve com algumas pessoas.

Boiar

Em Flusser a falta de fundamento se relaciona ao que chamamos de “absurdo”. A imagem de flores em um vaso é a primeria metáfora que o filósofo usa para expor a sua questão. Além das flores sem raiz, ele sugere os planetas que se movem sem significado em torno do Sol. Estar boiando, diz Flusser, define o clima da falta de fundamento no sentido de absurdo e falta de significado.

Para ele, as religiões são “métodos de proporcionar fundamento”. A sua falta apavora e se pode recalcá-la. Em outras palavras, podemos dizer que as religiões podem forçar a barra produzindo uma ilusão fundamental. Para Flusser todos os nossos problemas são, em última análise, problemas religiosos no sentido de que procuramos solução religiosa, não a encontramos e seguimos procurando. Nesse viver sem fundamento é que reside o verdadeiro clima da religiosidade.

Ora, no clima da falta de fundamento que constitui a vida, normal é buscar um lugar onde pôr os pés. Ficar flutuando é vertiginoso e pode ser até mesmo perigoso. A não ser que esse flutuar seja tratado filosoficamente. Boiar, nesse caso, é um modo de ser razoável. Em termos simples, podemos dizer que saber boiar é o que há de mais importante para não se ser devorado pelo fundamento. E, não sabendo viver dentro dele, transformá-lo em abismo. Em termos filosóficos, é preciso saber perguntar quando o fundamento se torna abismo.

Se fundamento é aquilo que se busca, o ponto de equilíbrio de uma postura, o fundamentalismo, no entanto, é a deturpação dessa necessidade de equilíbrio. O que era a densidade da base torna-se rigidez. A base que permitiria equilíbrio torna-se um abismo vazio que parece suficiente ao sustento do que está acima dele. Podemos contrapor a ideia de estar solto na água ou no ar, nessa experiência que é viver sem fundamento em busca dele, ao estar preso a um ponto fixo absoluto que não permite que nada se mova.

Ao fundamento como ponto de equilíbrio podemos dar o nome de razoabilidade, que é tudo o que nos falta em nosso momento atual.

O fundamentalismo em moda, esse fundamentalismo que se tornou popular, é o efeito da má experiência com a “falta de fundamento”, de um modo desesperado de viver a sua falta.

Podemos dar o nome de neofundamentalismo a essa prática discursiva de falar por falar, sem conhecimento de causa, de repetir clichês e toda sorte de discurso pronto. “Copiar e colar” jargões e chavões se tornaram comuns em tempos de hiperprodução e consumismo da linguagem e isso precisa ser superado em nome do pensamento crítico, o único que é reflexivo.

Nos tempos da deturpação dos fundamentos e da insuportabilidade da sua falta, devemos fazer como as crianças que experimentam o antifundamentalismo fundamental, conquistar a vertigem para aprender o equilíbrio. 
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* Filósofa. Prof. Universitária. Escritora. Artista Plástica
Fonte: https://revistacult.uol.com.br/home/marcia-tiburi-antifundamentalismo/ 09/11/2017

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