domingo, 26 de novembro de 2017

A COMPLEXIDADE DA CIVILIZAÇÃO

Eduardo Wolff*


Em 1969, o historiador da arte e crítico inglês Kenneth Clark levou a uma rede de televisão britânica o primeiro grande documentário de história da arte totalmente em cores. Civilização Uma Visão Pessoal trazia em seus 13 exuberantes episódios os grandes momentos da história da cultura europeia, sobretudo a partir dos primórdios da Europa cristã e com ênfase na arquitetura, nas artes visuais e nas grandes ideias que forjaram essa sociedade. Foi assistindo a esse documentário que o jovem Niall Ferguson recebeu sua primeira impressão do que era uma civilização e, mais especificamente, do que era a civilização ocidental: a grandiosa aventura do espírito grego e as realizações romanas; a continuidade, mais que a ruptura, que o cristianismo medieval representou para a civilização surgida no Mediterrâneo; a catedral de Chartres e o gênio de Michelangelo; as aspirações de liberdade e a moderna sociedade industrial.

Niall Ferguson, que se apresenta no Fronteiras do Pensamento Porto Alegre nesta segunda-feira, viria a se tornar, assim como Clark fora em seu tempo, um dos grandes historiadores britânicos. Professor em Oxford, em Harvard e atualmente em Stanford, também se envolveria com um fascinante projeto para a televisão chamado Civilização - Ocidente x Oriente (publicado no Brasil pela editora Planeta).
Diferentemente de Clark, no entanto, Ferguson não restringiu sua concepção de civilização às elevadas contribuições das artes, das letras, da arquitetura e da filosofia para a porção de terra no globo que veio a ser chamada de Ocidente. A possibilidade de os indivíduos viverem uma paz assegurada social e legalmente, desfrutarem de uma dieta rica e diversificada e se dedicarem a uma vida de trabalho recompensado é tão constitutiva do que seja uma civilização quanto uma peça de Shakespeare ou uma partitura de Beethoven.

E foi talvez por formular as coisas nesses termos que Ferguson conseguiu se fazer uma pergunta fundamental: como foi que esse pequeno pedaço de terra no oeste do continente europeu (Inglaterra, Portugal, Espanha, França, Itália e Alemanha, especialmente), que nos séculos 15 e 16 não era capaz de fazer sombra à grandeza da China, viria a se transformar em uma das mais extraordinárias experiências civilizatórias da história humana, alçando o Ocidente à condição de civilização dominante pelos cinco séculos seguintes? A simples formulação da pergunta já serviria para levantar suspeitas de que Ferguson teria uma visão estreita acerca da civilização, restringindo seu interesse a uma alegada supremacia do Ocidente - de resto, entendido também de forma bastante restritiva como as nações do oeste europeu e o mundo anglo-saxão expandido.

A leitura de Civilização, assim como de outras obras de Ferguson, a exemplo de A Grande Degeneração (Planeta) e o recém-lançado The Square and the Tower, comprova o exato oposto disso. Em primeiro lugar, porque Ferguson analisa o complexo fenômeno da emergência, da expansão e do esfacelamento de civilizações não como um processo estanque, redutível a uma única causa (a economia, digamos), mas sim como algo muito mais frágil, acidentado e influenciado por múltiplos fatores. É assim que apresenta, por exemplo, as seis razões - ou, para usar a expressão empregada pelo autor, os seis "aplicativos" - pelas quais, a seu ver, o Ocidente foi capaz de ascender à condição de civilização dominante: a competição, a ciência moderna, os direitos de propriedade, a medicina, a sociedade de consumo e a ética do trabalho. Valores, mentalidade, condições geográficas e instituições desempenham papel tão importante quanto a economia e a política em seus sentidos tradicionais. Mais do que isso: não apenas o conceito de civilização ocidental é bastante matizado (Porto Alegre é Ocidente? E Tel Aviv? Como fica a Rússia?) como, mais do que isso, sua reflexão já parte da ideia de que civilizações vêm e vão, de que não há nada predeterminado no destino dos povos e das nações, e tudo isso torna a empreitada de desvendar os mecanismos de uma grande civilização particularmente fascinante.

Assim como ascendeu, essa civilização pode fenecer - como foi o destino de tantas outras. Assim como seus valores perduraram por séculos, quando não milênios, outros valores, novos, antes insuspeitos, podem nela emergir, descortinando a nós e às gerações vindouras outras formas possíveis da experiência humana.
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*  Tradutor, doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP)
FONTE: http://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=936bc6fd776ce64da2a129ebba5d27d8 - Caderno DOC 25 e 26 de novembro de 2017 p. 14.
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