domingo, 26 de novembro de 2017

EVANGELHO E HIPOCRISIA

FRANCISCO MARSHALL*
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 "Sem medo de céu e inferno ou da cara feia do bispo, 
podemos optar pelo altruísmo, pois sabemos que o bem disseminado é proveitoso para todos."

Em grego, a palavra evangelho junta o prefixo eu (bom, bem, como em eufemismo, bem dizer) e o substantivo angelía ("mensagem"); forma-se assim a palavra que designa boa nova, como se pretendem os evangelhos bíblicos. Não são História, nem biografia, Filosofia ou Teologia, mas contêm pitadas destas, sem suas metodologias; não são também gênero literário, menos ainda revelação divina, mas historietas populares com qualidade e conteúdo similar a Paulo Coelho: os feitos extraordinários de um mago nômade e alguma sabedoria. Havia, no início do século IV d.C., ao menos 17 evangelhos, ficções em prosa em torno do personagem literário e já folclórico Jesus Cristo, a síntese de mitos e heróis antigos, celebrador do vinho e da amizade, vítima de morte trágica e renascimento misterioso. Entre muita prosódia, há nos evangelhos pouca novidade, mas alguma mensagem, mística e ética. 

O conteúdo místico dos evangelhos refere herança judaica (hiper- autoridade patriarcal divinizada) e as crenças de outras seitas daquela era. Com a descoberta dos manuscritos do Mar Morto, em Qumram (1947), conhecemos as ideias dos essênios, similares às dos cristãos primitivos, com maior puritanismo. Ciosa da noção de palavra revelada e da originalidade da mensagem, a Igreja Católica tentou abafar a difusão daqueles escritos, hoje plenamente conhecidos; evidenciou-se a natureza cultural e histórica da crença cristã e sua pouca originalidade. 

 "Face a esses vis pastores, parecem preferíveis 
igrejas católica ou luterana, 
ainda mais na época de um papa lúcido"

Já o conteúdo ético, de natureza filosófica, herda traços do estoicismo, doutrina grega muito difundida no Império Romano. Talvez Nietzsche tenha errado ao chamar Cristo de Platão dos pobres; seria antes um Zenão dos crentes, ou um Sêneca da Galileia. A mensagem estoica possui alto grau de altruísmo e é a parte mais nobre da religião que dominou o mundo protegida pelo Império. Se desbastarmos do cristianismo as ambições de riqueza e poder, sobrará um núcleo ético estoico, e este será sempre relevante. A filosofia pode salvar algo da religião. 

Hoje, assistimos à vulgaridade de muitos líderes pentecostais, sem qualquer misticismo ou filosofia, que usam demagogia religiosa para chegar ao poder e impor suas crenças retrógradas. Face a esses vis pastores, parecem preferíveis igrejas católica ou luterana, ainda mais na época de um papa lúcido; preferível mesmo é a inteligência emancipada, capaz de informar-se, ponderar e fazer escolhas éticas. Sem medo de céu e inferno ou da cara feia do bispo, podemos optar pelo altruísmo, pois sabemos que o bem disseminado é proveitoso para todos. Também podemos acreditar no bem comum e na melhor forma de realizá-lo, a democracia. Nada disso depende da religião. 

Diante desse núcleo de ética possível entre religião, filosofia e política, com que palavra descrever a boçalidade dos que hoje agridem cheios de ódio, em nome do cristianismo, e vociferam contra arte, ciência, educação, direitos humanos e cultura? São certamente bárbaros ignorantes e hipócritas que usam a tradição religiosa para tentar impor seu mundo de trevas. Contra eles, até mesmo o cristianismo que fingem professar pode oferecer luzes, que se dirá o conhecimento e a cultura que todos, humanos, podemos conquistar.
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* Historiador, arqueólogo e professor da UFRGS 
Fonte:  http://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=5aafd54467e6622e9f3a3c986efde8f2
Fonte Impressa: ZH/Cad. DOC 25 e 26 de novembro de 2017 p. 17
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