sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

OS VÍCIOS E A VIRTUDE NO CAMINHO DE TRUMP

Maria Cristina Fernandes*
 Nelson Provazi

Franklin Delano Roosevelt mandou armas para a Inglaterra sem autorização do Congresso para ajudar os ingleses a se defender dos nazistas, Harry Truman colocou a indústria do aço sob controle do governo durante a guerra da Coreia e Ronald Reagan financiou a oposição aos sandinistas na Nicarágua contra determinação parlamentar. A lista de presidentes americanos que ultrapassaram os limites de seu poder é longa. Vai dos três melhores (George Washington, Abraham Lincoln e Roosevelt) até os 15 piores, sendo George W. Bush apenas o mais recente deles. Os recordistas na usurpação dos poderes e na reprovação dos historiadores (Warren Harding, Franklin Pierce e James Buchanan) nunca enfrentaram a mais remota ameaça de cassação. Andrew Johnson e Bill Clinton tiveram o impeachment aprovado pela Câmara, mas o Senado não confirmou o processo. Quando Richard Nixon teve que renunciar para não ser derrubado, 132 anos haviam se passado desde a primeira ameaça real de impeachment contra um presidente americano. Vice de um presidente morto um mês depois da posse, John Tyler valeu-se de um veto para derrubar decisão do Congresso. Quase rodou.

Dos 45 presidentes americanos, só falta um no mais recente livro de Cass Sustein ("Impeachment: a citizen's guide", Harvard University Press, 2017). Mas a eloquente ausência perpassa quase todas as 202 páginas do livro. O conjunto da obra dos primeiros 11 meses de Donald Trump no cargo já levaram à instalação, na Times Square, em Nova York, de um contador, em tempo real, com a adesão ao abaixo-assinado (NeedToImpeach.com) que pede sua remoção da Casa Branca. Até o início desta semana, a geringonça luminosa que disputa espaço com os outdoors de musicais da Broadway já marcava mais de 3,6 milhões de adesões. Na semana passada, a primeira proposição pelo impeachment de Trump foi derrotada por 364 votos a 58. Os votos favoráveis à permanência do presidente somaram 126 Democratas, entre eles o de sua principal liderança, Nancy Pelosi.

O autor é um professor de Harvard que colaborou com os governos Reagan e Barack Obama e participou ativamente do debate sobre o impeachment de Clinton, quando defendeu a tese de que a natureza das relações entre o presidente e Mônica Lewinsky era o ápice do divórcio da discussão do tema tal como este havia sido pensado pelos constituintes americanos. Fã de Nixon na adolescência, Sustein diz que o presidente que mais perto esteve de ser derrubado pelo Congresso foi um dos cinco melhores da história americana. Criou agências para a proteção da saúde do trabalhador e do meio ambiente, defendeu a autodeterminação da população nativa, assinou lei que proibiu discriminação sexual no ensino superior e demonstrou arrojo na política externa administrando tensões com a União Soviética e visitando a China. Dadas a inteligência e a sagacidade do personagem, ainda custa a Sustein crer que Nixon tenha se emaranhado no conjunto de ações, da desobediência a uma intimação à obstrução de Justiça, que acabariam por levar à denúncia: "Em face de seus extraordinários atributos, as aquisições de seu governo e seu agudo senso de patriotismo, é um imenso enigma entender como ele e sua Casa Branca acabaram fazendo o que fizeram".

Ao relatar a inclusão do impeachment na Constituição americana e as oportunidades em que se tentou usá-lo, o livro acaba por funcionar como um libelo contra a banalização do instrumento, nunca usado, de fato, para afastar um presidente da república nos Estados Unidos. E ainda serve para demonstrar como a inscrição do impeachment na Constituição brasileira se distanciou da previsão americana que o inspirou: "O ponto essencial é claro: intensa oposição política e até mesmo a percepção generalizada de que o presidente é um fracasso não é causa suficiente para impeachment". Sustein cita Jimmy Carter, o mais malsucedido presidente da era pós-Nixon, para quem a discussão de impeachment teria sido 'ridícula'. Reitera a percepção de que a força do impeachment é o de ter sido inscrito na Constituição americana para nunca ter sido usado: "Devemos desejar fortemente que nenhum presidente jamais seja impedido ou removido de sua função em bases que ultrapassem os liames constitucionais”.

Sustein, que comprou a casa de um dos líderes da independência e fez dela sua moradia, para não deixar dúvidas sobre sua admiração pelos fundadores da Constituição, mostra como o impeachment foi desenhado para garantir que o país, ao mesmo tempo em que precisava de um Executivo forte, não poderia ter um rei a conduzi-lo. Foi um instrumento forjado em meio ao clima de rechaço à monarquia britânica na independência. Recorre a Walt Whitman ("Como se não fosse indispensável aos meus próprios direitos que os outros tenham os mesmos") e àquele a quem chama de sucessor do poeta da revolução americana, Bob Dylan ("Até o presidente dos Estados Unidos às vezes precisa ficar nu"), para dizer que a previsão constitucional do impeachment, a despeito da resiliência da escravidão, fez jus à aspiração por igualdade.

O autor recupera os debates constitucionais e deixa claro que, na previsão do impeachment, houve a preocupação de deixar claro que o instrumento não deveria ser usado para punir a má administração. Disso se ocupariam os eleitores, a cada dois anos, na eleição presidencial e nas eleições legislativas que confeririam, ou não, maioria parlamentar ao Executivo. Ao binômio "traição e suborno", no entanto, os constituintes americanos viram necessidade de acrescentar uma terceira razão que viesse a resguardar o risco de um presidente colocar o bem público a pique. Veio daí o acréscimo de "altos crimes e contravenções".

Foi nesta terceira razão que se abriu uma avenida à interpretação, que, historicamente, tem oposto constitucionalistas como Antonio Scalia, ministro da Suprema Corte, para quem as gerações futuras não tinham direito de ir além no significado original, e Ronald Dworkin, advogado de uma leitura 'moral' do texto. Sustein tanto questiona a adesão inconteste ao primeiro, por virar às costas aos ensinamentos de Thomas Jefferson ("leis e instituições devem seguir passo a passo com o progresso da humanidade"), quanto o segundo, por franquear terreno às simpatias - e antipatias - políticas com o governante e abrir a porta do caos.

Foi o que aconteceu com Clinton e Nixon. Ambos, na avaliação de Sustein, foram presidentes bem-sucedidos e com extraordinária capacidade de comunicação, mas despertaram implacável oposição de seus adversários que queriam derrubá-los desde sempre. Foi sob implacável perseguição política também que Andrew Johnson escapou por um voto de ter seu impeachment confirmado pelo Senado. Empossado depois do assassinato de Lincoln, Johnson insurgiu-se contra uma lei que proibia o presidente de mudar determinados integrantes de seu gabinete, como o ministro da Guerra, sem a aprovação do Senado. Ao fazê-lo, quebrou o frágil equilíbrio de uma nação que emergia de dois traumas, a guerra civil e o assassinato de um dos mais marcantes presidentes de sua história.
Sustein custa mas chega, finalmente, àquele que é o objetivo velado do livro, e dá nome ao último de seus capítulos: "O que todo americano deve saber?" Lá estão exemplos de atos que deixam o presidente americano passível de cassação pelo Congresso e que, em maior ou menor grau, sugerem digitais da gestão Trump: revelar a um chefe de Estado estrangeiro informações que enfraquecem o país, aceitar propina para atos relativos à Presidência da República, subornar parlamentares em busca de apoio no Congresso, perseguir adversários políticos com ou sem o uso do serviço secreto, agir de maneira negligente no exercício do poder ou ser eleito graças a um plano pré-determinado de um chefe de nação estrangeira contra seu oponente.

A partir daí, lança mão da pergunta que milhões hoje se fazem nos Estados Unidos. E se o presidente for acometido de uma doença, como loucura? O autor tem reservas em relação à liberalidade do uso da 25ª emenda, incluída depois do atentado contra John Kennedy, quando Lyndon Johnson assumiu no vácuo jurídico de um presidente ainda vivo. Sustein era assistente do ministro da Justiça em 1981 quando Reagan foi vítima de um atentado. O ministro cochichou-lhe ao ouvido que a situação do presidente era bem pior do que aquela da qual falava o noticiário e lhe pediu um parecer sobre o recurso à 25ª  emenda, que autoriza o vice-presidente ou a maioria dos ministros a informar ao Congresso a incapacidade do titular. O então presidente se recuperou rapidamente e o memorando foi engavetado.

Ao colunista David Leonhardt, do "The New York Times", Sustein disse ter decidido escrever por ter ficado alarmado com a menção ao tema nas primeiras semanas do governo Donald Trump, quando ele ainda não havia demonstrado a que veio. Mas se sua eleição relembrou aos americanos que a hipocrisia é o tributo que o vício paga à virtude, o livro contribui para separar o que é vício e o que é virtude nessa discussão do impeachment, lacuna que marcou a experiência brasileira. O autor proclama a defesa da Constituição como a saída que salvou os Estados Unidos, ao longo de sua história, de tiranos: "Não precisamos focar no mecanismo do impeachment, mas se vamos manter a república, precisamos conhecê-lo. É a nossa segurança, nosso escudo, nossa espada, nossa última arma de autodefesa".
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* Maria Cristina Fernandes, jornalista do Valor, escreve neste espaço quinzenalmente E-mail: mcristina.fernandes@valor.com.br

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