segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Floquinhos de neve no metrô


Luiz Felipe Pondé*

 Ricardo Cammarota

Não esperem nada da linha verde, a salvação virá da azul e da vermelha
Outro dia eu conversava com um amigo meu, médico homeopata, e ele, num arroubo sociológico, afirmou: “Não esperemos nada do pessoal da linha verde, a salvação virá das linhas azul e vermelha!”
Para quem não conhece o metrô de São Paulo, as linhas estão divididas por cores, como é comum se fazer pelo mundo afora. Quando meu amigo fez esse comentário, me chamou a atenção o caráter absolutamente científico da sua empreitada: havia algo de um espírito sociológico selvagem na sua fala. 

Eu sei que a linha amarela ficou de fora dessa sociologia. Vou ser fiel à minha fonte e nada direi acerca da linha amarela, mas suspeito que pelo menos parte dela cairia na classificação da linha verde.

Devo esclarecer o contexto da conversa em que surgiu essa observação fundamental acerca de nosso futuro. Falávamos de um certo sentimento de falta de esperança, não só para com o Brasil, mas para com nosso mundo ocidental –tema já banal. O resumo era o termo “snowflake”. Você conhece?

O termo é muito comum na Inglaterra. A tradução é floquinho de neve. A expressão é usada para designar pessoas que se ofendem facilmente. Como caráter epidêmico, é usado para descrever gente que, a partir de 2010, virou adulto jovem. Qual a relação entre a linha verde do metrô e a personalidade “snowflake”?

A linha verde corre, em grande parte, pela zona oeste e avenida Paulista –que, por sua vez, corre da zona oeste em direção à zona sul (e vice-versa, claro, não quero ofender ninguém!). Atende, portanto, em grande parte, a uma população floquinho de neve. 

Sei que há nessa afirmação muito de uma generalização selvagem. Mas o que seria da sociologia sem uma razoável dose de generalizações selvagens? Nem o velho Marx ficaria de pé.

A linha verde do metrô (pelas regiões que percorre) serve como metáfora de gente que perdeu um pouco a noção de como a vida é, devido às garantias materiais com as quais vive. Tipo: você nasceu com suíte para você desde bebê, logo, você acha que suítes deveriam ser um direito de todo cidadão.
A linha verde aqui, e sua “zona oeste paulistana”, representaria, em grande parte, o pessoal que acha possível salvar o mundo com alimento orgânico produzido na sua varanda. Ou gente que sofre de “síndrome traumática Trump” (nova síndrome descrita entre pessoas que nunca lavaram um tanque de roupa suja ou um banheiro na vida). Essa síndrome, de fato descrita nos EUA, é apenas um exemplo da condição floquinho de neve.

Gente assim se ofende se você a convida para jantar e oferece frango. “Seu frango me ofende”, diria um floquinho de neve.

Já as linhas azul e vermelha representam, nessa generalização sociológica selvagem, a moçada que cresceu com um banheiro para dez pessoas em casa. 

Suspeito que uma situação como essa educa mais do que dez anos de aulas de felicidade, autoestima e empatia nas escolas. Uma fila no banheiro, de manhã, em casa, é mais poderosa, no sentido civilizador, do que escolas que ensinam respeito às diferenças. À medida que o mundo vai ficando confortável, vamos perdendo a forma.

Pelas regiões geográficas que essas linhas percorrem (zonas norte, leste e sul profunda), elas seriam a metáfora de gente que não perdeu (ainda) a noção da realidade. Sabe o quanto as coisas custam, e que, normalmente, você sangra até morrer sem conseguir a maior parte delas. Acho que o “horror ao sangue” que marca a moçada na linha verde representa a perda dessa noção.

Uma das razões que me leva a suspeitar da chamada “esquerda” é que, em vez de enxergar os danos inexoráveis que a riqueza instalada está causando às pessoas, ela (à semelhança de seu profeta maior) acha que a solução é universalizar essa riqueza instalada, declarando que suítes devem ser um direito de todo cidadão. E mais: que as suítes devem cair do céu.

Portanto, voltando ao meu sábio amigo, não esperemos nada da linha verde. Quem salvará o mundo é o pessoal das linhas azul e vermelha porque, sangrando todo dia, eles ainda mantêm uma mínima lucidez em meio a esse parque temático que o mundo virou.

Eis um dos maiores paradoxos da condição humana: devemos fugir do sofrimento, mas, quando conseguimos, viramos floquinhos de neve. 

Eis um dos maiores erros dos utilitaristas ao determinarem que gerar felicidade em larga escala seria nossa “salvação”. Pelo contrário, a lucidez parece continuar habitando o território da dor. Esse fato essencial nenhum autor de autoajuda ousa enfrentar.
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* Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP. 
Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2018/08/floquinhos-de-neve-no-metro.shtml

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