quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Somos todos torturadores inofensivos nas redes sociais, dizem psicólogos

Paul Bloom / Matthew Jordan, para o The New York Times
 
Derek Parfit
Derek Parfit

Pesquisadores mostram que comportamentos individuais podem ser inofensivos quando aparecem de forma isolada, mas muito perigosos quando repetidos por diversas pessoas. A reflexão se aplica especialmente ao caso de linchamentos nas redes sociais.

Há um botão na sua frente; se você girá-lo, um estranho que está sentindo uma dor tolerável causada por um choque vai receber uma voltagem mais forte, mas tão leve que nem ele mesmo vai perceber. Você gira o botão e vai embora. Só que centenas de pessoas passam por ali e fazem a mesma coisa, até que a vítima começa a gritar de agonia.

Você fez alguma coisa errada? Derek Parfit, o influente filósofo britânico que morreu em janeiro de 2017, definiu esse caso como o do “Torturador Inofensivo”. A princípio, ele pensou num cenário mais simples, no qual mil torturadores girariam o botão mil vezes cada um em suas próprias vítimas. Obviamente, isso é terrível.

Então Parfit explora um outro caso, em que cada um dos mil torturadores gira o botão mil vezes, só que, a cada volta, eletrocutando uma das mil vítimas diferentes. O resultado é o mesmo: mil pessoas em agonia. No entanto, moralmente, a impressão é diversa, já que ninguém, de modo individual, causou mal real a um indivíduo específico.

Esse parece o tipo de exemplo técnico bem bolado que os filósofos adoram —entre outras coisas, é um desafio a uma visão utilitarista que analisa a incorreção de um ato apenas por suas consequências—, mas sem relevância no mundo real.

Só que o mundo mudou desde que Parfit publicou esse cenário, em 1986. Hoje, em 2018, os dois autores deste artigo são Torturadores Inofensivos, e você —independentemente da posição que você assuma diante de qualquer questão específica— provavelmente também é.

Esse enredo de Parfit se repete a todo momento nas redes sociais. Alguém escreve algo ruim sobre você no Facebook; dependendo da relação que tiver com tal pessoa, você pode chegar a se magoar pessoalmente ou não, mas, como ninguém percebe, não é lá grande coisa. Porém, se no dia seguinte houver mil curtidas e inúmeros comentários irônicos, é bem provável que você fique arrasado. Embora cada um dos comentários em particular tenha causado pouca ou nenhuma mágoa, o efeito agregado é muito mais grave.

No livro “So You’ve Been Publicly Shamed” [Então você foi humilhado em público], de 2015, Jon Ronson explorou os efeitos do linchamento digital, incluindo a história de uma mulher cujo tuíte irônico sobre o privilégio dos brancos deu muito errado, gerando dezenas de milhares de respostas enfurecidas, levando-a a perder o emprego e ter que se esconder.

Desde então, a turba tem andado ocupada: sua atenção se voltou para um dentista que matou um leão, uma série de mulheres brancas que, sem motivo aparente, chamaram a polícia por causa de negros, uma professora esquerdista que pediu a amigos que expulsassem um jornalista de um protesto e vários outros.

Quando pensamos na selvageria das redes sociais, em geral temos em mente um comportamento individual péssimo: ameaças de morte e de estupro, divulgação de informações pessoais, inclusive endereços e locais frequentados pelos filhos das vítimas ou mentiras maldosas, por exemplo. O Torturador Inofensivo, contudo, nunca vai tão longe. Ele apenas curte, retuíta e acrescenta aquele comentário inteligente ocasional. O problema é que somos milhões, todos girando o botão.

Parfit não nos diz, em momento algum, qual é a motivação dos torturadores de seu experimento mental, mas há diversas considerações no dia a dia. Afinal, somos animais morais. Há inúmeras evidências em estudos de laboratório e na vida real de que queremos ver os agentes imorais recebendo o castigo merecido. Isso está baseado na lógica evolucionista: se não estivéssemos sempre dispostos a punir ou excluir os malvados, não haveria ônus nenhum em ser bandido, e as sociedades cooperativas não decolariam.
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Against Empathy, livro do professor de psicologia Paul Bloom

Há também uma espécie de crédito social que acompanha o fato de ser visto como punidor moralista: queremos mostrar aos outros que somos bons, exibir nossa virtude. Quando alguém está olhando, é maior a tendência de agirmos como punidores, e há provas de que terceiros têm em mais alta conta —e mais chances de depois considerar de confiança— quem pune os bandidos, e não aqueles que ficam parados sem fazer nada.

No mundo real, é complicado desassociar as motivações morais das sociais. Na coluna The Stone, do New York Times, o filósofo Bryan W. van Norden escreveu: “Como a maioria dos americanos, vibrei espontaneamente quando vi o nacionalista branco Richard Spencer tomando um soco durante uma entrevista”. É difícil dizer em que medida a afirmação retrata prazer genuíno por um racista ter recebido o que merece e em que medida reflete o desejo de ser visto como antirracista para o público aplaudir.

Se a motivação consciente de nossa reprovação é explícita, a ideia de fazer nossa vítima sofrer talvez nunca nos ocorra. E a facilidade com que expressamos indignação moral online —na maioria das vezes sem qualquer repercussão no mundo real— torna essa condenação muito mais fácil. Como escreveu Molly Crockett, nossa colega de Yale: “Se a revolta moral é o incêndio, então a internet é gasolina?”.

Há também um sistema de recompensa construído em cima do constrangimento online. Em artigo publicado no site Quillette, “I Was the Mob Until the Mob Came for Me” [Eu era a turba até a turba vir atrás de mim], um autoproclamado ex-justiceiro social, sob o pseudônimo Barrett Wilson, descreveu a empolgação que sentia nos tempos de execração cibernética: “Toda vez que eu chamava alguém de racista ou sexista, a adrenalina subia. E a sensação se reafirmava e se sustentava a cada estrelinha, corações e joinhas que constituem as esmolas da validação das redes sociais”.

Mas causar morte com milhares de facadas não é uma coisa boa? Se fosse Hitler, não seria certo fazê-lo passar por isso? Sim, mas o problema é que, quando estamos cheios de indignação moral, agindo como parte da massa num mundo virtual sem nenhum sistema fixo de avaliação, lei ou justiça, todos os inimigos viram Hitler. É muito fácil haver, como diz Ronson, “uma dissociação entre a gravidade do crime e a selvageria eufórica da punição”.

Claro que o constrangimento público pode ter efeitos positivos. Às vezes a massa ensandecida acerta. Entretanto, da mesma forma, os Torturadores Inofensivos podem facilmente atingir os fracos e indefesos; o ataque pode se basear em mentiras e confusões ou ser encorajado pela ignorância de celebridades e políticos —incluindo e destacando o atual presidente [dos EUA].

O efeito do Torturador Inofensivo não se limita às redes sociais; podemos ver também as consequências da agregação quando se trata de ações individuais de maior impacto. Curtidas e retuítes têm uma semelhança estrutural com a execução por apedrejamento, sobretudo se o público é grande: é difícil ver a vítima e ninguém tem boa pontaria. Rejeição social é outro caso, uma tortura pelo acúmulo de omissões —indivíduos evitando contato com determinada pessoa—, e não por ações.

O escritor Julian Sanchez, membro do libertário Instituto Cato, usou o exemplo de Parfit em uma discussão sobre comportamentos como assobiar para uma mulher ou usar linguajar ofensivo de brincadeira. Ele observa que a reação típica à crítica dessas atitudes é a negação —muitos acham que não há má intenção nessas ações e que ninguém se machuca com elas. Mas, mesmo que seja válido para condutas individuais, a situação muda quando a consideramos em termos agregados, repetindo-se vezes sem conta, milhares de vezes por milhares de pessoas —e aí o impacto se torna óbvio.

É difícil mudar os tipos de comportamento que Sanchez aborda, e talvez mais difícil até fazer as pessoas repensarem o linchamento online, já que a sensação é muito boa quando achamos que estamos do lado certo. Nossa mente evoluiu para levar em consideração os efeitos de nossas ações individuais; é difícil pensar nos efeitos agregados. Mas a lição que fica do Torturador Inofensivo de Parfit é que, se queremos ser pessoas decentes, devemos tentar.
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*Texto publicado originalmente no jornal The New York Times.
Paul Bloom é professor de psicologia de Yale e autor de “Against Empathy: The Case for Rational Compassion” (contra a empatia: por uma compaixão racional).
Matthew Jordan é aluno de psicologia de Yale.
Ilustrissima / Folha de S. Paulo, 17.08.2018

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