domingo, 19 de agosto de 2018

Yuval Noah Harari: "Quando fores grande, talvez não tenhas profissão"

 

A irrelevância do homem numa sociedade dominada cada vez mais pelo algoritmo e a inteligência artificial é o alerta do cientista israelita no seu novo livro 21 Lições para o Século XXI. Pré-publicação em exclusivo e republicação 
da entrevista dada ao DN.

 
Após o sucesso planetário de dois livros, Sapiens e Homo Deus, o autor do momento, Yuval Noah Harari, está de volta com o livro 21 Lições para o Século XXI (editora Elsinore). Não é por acaso que é referido como autor do momento, é que depois de ter vendido um número inimaginável para a não ficção o seu novo livro sai dentro de duas semanas antecedido por matérias jornalísticas em toda a imprensa mundial e com uma digressão pelas principais cidades do mundo - até um debate inesperado com a atriz Natalie Portman em Londres, além da adaptação em documentário pelo realizador Ridley Scott já anunciada dos primeiros dois livros.

Desta vez, o cientista israelita, investigador e professor de História não faz o exame ao passado da espécie como no primeiro livro nem teoriza o futuro a longo prazo como no segundo, antes trata de 21 grandes questões para o nosso tempo, temas que tem debatido por todo o mundo e com todos os públicos após a publicação dos dois livros que se tornaram os preferidos de Barack Obama, Bill Gates e Mark Zuckerberg, entre milhões de leitores das dezenas de países onde foram traduzidos.
Ao longo de quase 400 páginas estão questões que marcam o diálogo contemporâneo: Trump e a epidemia das fake news, a hipótese de nova guerra mundial, o domínio crescente do islão e da China, os imigrantes e os nacionalismos... Mas este novo ensaio aborda muitos outros temas que afetam todos os leitores - de todas as idades, de todas os cantos do mundo, de todas as classes sociais -, basta consultar o índice e escolher um entre os vários títulos explosivos e que vão mudar a vida do cidadão contemporâneo. "Quando fores grande, talvez não tenhas profissão" é um deles, em que aborda o mercado de trabalho sob uma perspetiva não muito distante da atualidade e que volta a trazer ao de cima os receios que já assustaram os contemporâneos da Revolução Industrial e agora os que assistem cada vez mais à afirmação da inteligência artificial nas empresas.

No prefácio do seu terceiro livro, Harari abre também a porta às grandes transformações para breve num mundo globalizado como nunca. É o caso da influência a nível mundial de uma única conduta pessoal, entre os sete mil milhões de candidatos potenciais e em igualdade de circunstâncias, capaz de alterar radicalmente os regimes e a governação com um simples gesto mediatizado como foi o caso de Mohamed Bouazizi quando se imolou e deu origem à Primavera Árabe.

Ao longo de quase 400 páginas estão questões que marcam o diálogo contemporâneo: Trump e a epidemia das fake news, a hipótese de nova guerra mundial, o domínio crescente 
do islão e da China, os imigrantes 
e os nacionalismos... 
21 Lições para o Século XXI tem como ponto de partida a grave crise atual do liberalismo, o regime que se sobrepôs às grandes batalhas ideológicas entre o fascismo e o comunismo no século passado, mas que entretanto perdeu credibilidade face às revoluções da tecnologia da informação e da biotecnologia. O momento que a humanidade vive, considera Harari, é um dos maiores desafios de sempre para a humanidade, pois pode desembocar no desemprego generalizado e sabotar a liberdade e a equidade das sociedades como nunca. Como? A resposta é curta: "Os algoritmos da big data podem criar ditaduras digitais" e "atirar o ser humano para a irrelevância na sua quase totalidade, mantendo-se o poder concentrado nas mãos de uma pequeníssima elite".

A estrutura deste novo ensaio de que o DN pré-publica três extratos em primeira mão e reproduz na edição online a única entrevista (veja aqui) que Yuval Noah Harari deu para a comunicação social portuguesa no ano passado, mostra as grandes ameaças para a humanidade a muito breve prazo na sua ótica. Os leitores de todo o mundo podem dentro de duas semanas conhecer a versão mais atualizada do pensamento de um autor que é lido atentamente para se perceber os rumos da evolução e que pode alterar a nossa visão sobre os tempos que aí vêm.
A primeira das cinco partes em que o livro se divide analisa a ameaça da tecnologia com que empresas e empresários estão a equipar-se, enquanto filósofos, historiadores e sociólogos ignoram a necessidade de alertar para como as coisas podem correr mal. A segunda parte questiona as formas de governo atuais e até que ponto se deve reverter a globalização e restituir autoridade ao Estado-nação. A terceira trata dos ódios que levam ao terrorismo e à possibilidade de uma nova guerra global. A quarta põe em dúvida a capacidade de o homem dos nossos dias ser capaz de interpretar o mundo que criou. A quinta parte volta à mais velha pergunta da civilização: quem somos nós?

Esta ampla recolha de entrevistas, debates e palestras, avisa Yuval Noah Harari, colocou-o perante uma escolha extremamente difícil enquanto pensador: "Devo dizer o que penso livremente, correndo o risco de que as minhas palavras sejam descontextualizadas e usadas para justificar autocracias? Ou deverei censurar-me?" Como não aceitou a autocensura, o novo trabalho de Yuval Harari é um dos principais questionamentos estruturados perante a realidade com que toda a humanidade está confrontada. Aliás, consciente da iminente e grande mudança do estatuto do homem, Harari termina a introdução com um alerta e uma confissão: "Só foi possível escrever este livro porque as pessoas ainda são relativamente livres de pensar e de se exprimir. Mas está a tornar-se cada vez mais difícil refletir criticamente sobre o futuro da nossa espécie."

21 Lições para o Século XXI
Yuval Noah Harari
Editora Elsinore
397 páginas
Nas livrarias a 1 de setembro
Pré-publicação do capítulo 17

Pós‑verdade: certas notícias falsas duram para sempre

É‑nos dito uma e outra vez que, hoje, vivemos numa nova e assustadora época de "pós‑verdade", e que estamos rodeados de mentiras e ficções. Não é difícil encontrar exemplos. Assim, em finais de fevereiro de 2014, unidades especiais russas, sem qualquer insígnia militar, invadiram a Ucrânia e ocuparam instalações decisivas na Crimeia. O governo russo e o próprio presidente Putin negaram repetidamente que se tratava de tropas russas e descreveram-nos como "grupos de autodefesa" que poderiam ter obtido equipamento de aspeto russo em lojas locais. Ao proferirem esta afirmação bastante absurda, Putin e os seus adjuntos sabiam perfeitamente que estavam a mentir.

Os nacionalistas russos podem desculpar esta mentira argumentando que foi dita em prol de uma verdade maior. A Rússia estava envolvida numa guerra justa, e, se não faz mal matar por uma causa justa, é claro que não faz mal mentir, certo? A causa maior que alegadamente justificou a invasão da Ucrânia foi a preservação da sagrada nação russa. Segundo os mitos nacionais russos, a Rússia é uma entidade sagrada que tem perdurado ao longo de milhares de anos apesar de tentativas sucessivas por parte de inimigos maléficos de a invadirem e desmembrarem. A seguir aos mongóis, aos polacos, aos suecos, à Grande Armée de Napoleão e à Wehrmacht de Hitler, na década de 1990 foram a NATO, os EUA e a UE quem tentou destruir a Rússia ao deceparem partes do seu corpo e tornando‑as "países falsos" como a Ucrânia. Para muitos nacionalistas russos, a ideia de que a Ucrânia seja um país separado da Rússia constitui uma mentira muito maior do que qualquer coisa que o presidente Putin tenha dito durante a sua missão sagrada para reintegrar a nação russa.

Os cidadãos ucranianos, os observadores externos e os historiadores profissionais podem sentir ultraje perante tal explicação e encará‑la como uma espécie de "mentira nuclear" no arsenal de logro russo. Afirmar que a Ucrânia não existe como nação e como país independente é passar por cima de uma longa lista de factos históricos - por exemplo, que durante os mil anos de suposta unidade russa Kiev e Moscovo só fizeram parte do mesmo país durante cerca de 300 anos. E também viola diversos tratados internacionais e leis que a Rússia aceitou anteriormente e que salvaguardavam a soberania e as fronteiras da Ucrânia independente. Sobretudo, ignora o que milhões de ucranianos pensam sobre si mesmos. Não terão eles direito a decidir quem são?

Os nacionalistas ucranianos, certamente, concordam com os nacionalistas russos quanto à existência de falsos países. Mas a Ucrânia não é um deles. Esses países são a "República Popular de Luhansk" e a "República Popular de Donetsk", que a Rússia criou para disfarçar a sua invasão unilateral da Ucrânia.

Seja qual for o lado que apoiemos, parece que vivemos mesmo numa era assustadora de pós‑verdade, em que se podem inventar não só certos incidentes militares mas também histórias e países inteiros. Mas, se esta é a era do pós‑verdade, então qual foi a idade de ouro da verdade? Na década de 1980? Na de 1950? Ou na de 1930? E o que precipitou a nossa transição para a era do pós‑verdade? Terá sido a internet? As redes sociais? A ascensão de Putin e de Trump?

Os nacionalistas ucranianos, certamente, concordam com os nacionalistas russos quanto à existência de falsos países. 
Mas a Ucrânia não é um deles.
Um olhar rápido para o curso da história mostra que a propaganda e a desinformação não são uma novidade, e mesmo o hábito de negar a existência de nações inteiras e de criar falsos países tem muita tradição. Em 1931, o exército japonês simulou ataques a si próprio para justificar a sua invasão da China, e depois criou o falso país de Manchukuo para legitimar as suas conquistas. A própria China há muito que nega que o Tibete alguma vez tenha existido como país independente. A colonização britânica da Austrália usou como justificação a doutrina legal de terra nullius ("terra de ninguém"), que apagou 50 mil anos de história aborígene.

No século XX, um dos slogans sionistas mais usados aludia ao regresso de "um povo sem terra [os judeus] a uma terra sem povo [a Palestina]". A existência de população árabe local foi convenientemente ignorada. Em 1969, a primeira‑ministra Golda Meir disse que não havia povo palestiniano e que nunca tinha havido. Ainda hoje, esses pontos de vista são muito difundidos em Israel, apesar de décadas de conflitos armados contra algo que não existe. Por exemplo, em fevereiro de 2016, a deputada Anat Berko fez um discurso no parlamento israelita no qual duvidava da realidade e da história do povo palestiniano. Que provas apresentou? Que a letra "p" não existe na língua árabe, portanto como seria possível haver um povo palestiniano? (Em árabe, em vez de "p" usa‑se o "f", e o nome árabe para a Palestina é Falastin.)

A espécie do pós‑verdade

Na realidade, os seres humanos sempre viveram na era do pós‑verdade. O Homo sapiens é uma espécie do pós‑verdade, cujo poder depende da criação de ficções e da crença nelas. Desde a Idade da Pedra que os mitos de autofortalecimento serviram para unir coletivos humanos. De facto, o Homo sapiens conquistou este planeta sobretudo graças à sua capacidade singular de criar e disseminar ficções. Somos os únicos mamíferos capazes de cooperar com vários estranhos porque só nós conseguimos inventar histórias fictícias, espalhá‑las e convencer milhões de outros a acreditarem nelas. Desde que todos acreditem nas mesmas ficções, todos obedecem às mesmas ordens e, portanto, conseguem cooperar eficazmente.

Assim, se o leitor culpa o Facebook, Trump ou Putin por terem aberto alas à nova e assustadora era do pós‑verdade, recorde a si mesmo que há muitos séculos os cristãos fecharam‑se a si próprios numa bolha mitológica de autofortalecimento, sem nunca se atreverem a questionar a veracidade factual da Bíblia, ao passo que milhões de muçulmanos depositaram a sua fé inquestionável no Alcorão. Durante milénios, muito do que era visto como "notícia" ou "facto" nas redes sociais humanas eram histórias sobre milagres, anjos, demónios e bruxas, com jornalistas destemidos a darem as notícias diretamente das profundezas mais recônditas do submundo. Não há quaisquer provas científicas de que Eva tenha sido tentada pela Serpente, que as almas de todos os infiéis ardam no inferno após a morte ou que o criador do universo não goste que um brahmin se case com uma intocável - no entanto, milhões de pessoas têm acreditado nestas histórias ao longo de milhares de anos. Certas fake news duram para sempre.

Sei que muitas pessoas podem ficar incomodadas com o facto de eu pôr a religião e as notícias falsas no mesmo plano, mas é exatamente aí que quero chegar. Quando mil pessoas acreditam numa história inventada durante um mês, chamamos‑lhe fake news. Quando mil milhões de pessoas acreditam nisso há mil anos, dizemos que isso é uma religião e é‑nos dito que não devemos chamar‑lhe "notícias falsas" para não ferir os sentimentos dos crentes (ou despertar a sua ira). Note‑se, porém, que não estou a negar a eficácia ou a potencial benignidade da religião. Precisamente o oposto. Para o melhor e para o pior, a ficção conta ‑se entre as ferramentas mais eficazes do estojo de ferramentas da humanidade. Ao unir as pessoas, os credos religiosos possibilitam a cooperação humana em grande escala. Além de exércitos e prisões, também inspiram as pessoas a construírem hospitais, escolas e pontes. Adão e Eva nunca existiram, mas a Catedral de Chartres continua a ser bela. Grande parte da Bíblia pode ser ficção, mas ela pode levar alegria a milhares de milhões de pessoas e continua a encorajar seres humanos a serem compassivos, corajosos e criativos - à imagem de outras grandes obras de ficção, como Dom Quixote, Guerra e Paz e Harry Potter.

Uma vez mais, algumas pessoas poderão ofender‑se com a minha comparação entre a Bíblia e Harry Potter. Caso seja um cristão com pontos de vista científicos, talvez justifique todos os erros e mitos da Bíblia argumentando que o livro sagrado nunca foi para ser lido como um relato factual, e sim como uma história metafórica de profunda sabedoria. Mas não se pode dizer o mesmo de Harry Potter?

Caso seja um cristão fundamentalista, é mais provável que insista que todas as palavras da Bíblia são literalmente verdadeiras. Por instantes, suponhamos que tem razão e que a Bíblia é a palavra infalível do único Deus que existe. Então, o que dizer do Alcorão, do Talmude, do Livro de Mórmon, dos Vedas, do Avesta, do Livro dos Mortos egípcio? Não se sente tentado a dizer que estes textos são ficções intrincadas criadas por seres humanos de carne e osso (ou talvez por demónios)? E como encara a divindade dos imperadores romanos, como Augusto e Cláudio? O Senado romano afirmava ter o poder de transformar pessoas em deuses e depois esperava que os súbditos do império venerassem esses deuses. Não se tratava isso de uma ficção? Temos pelo menos um caso na história de um falso deus que reconheceu a ficção pelas suas próprias palavras. Como vimos antes, o militarismo japonês das décadas de 1930 e 1940 apoiou‑se numa crença fanática na divindade do imperador Hirohito. Depois da derrota do Japão, Hirohito declarou publicamente que isto não era verdade e que afinal ele não era um deus.

Assim, mesmo que aceitemos que a Bíblia é a verdadeira palavra de Deus, isso ainda nos deixa com milhares de milhões de hindus, muçulmanos, judeus, egípcios, romanos e japoneses devotos que, durante milhares de anos, depositaram a sua confiança em ficções. Uma vez mais, isto não significa que estas ficções sejam necessariamente inúteis ou nocivas. Elas ainda podem ser belas e inspiradoras.

Grande parte da Bíblia pode ser ficção, mas ela pode levar alegria a milhares de milhões de pessoas e continua a 
encorajar seres humanos a serem compassivos, 
corajosos e criativos
É claro, nem todos os mitos religiosos se têm mostrado igualmente benignos. Em 29 de agosto de 1255, o corpo de Hugh, um rapaz inglês de 9 anos, foi encontrado num poço na cidade de Lincoln. Mesmo sem Facebook e Twitter, rapidamente se espalhou o boato de que Hugh fora assassinado ritualisticamente pelos judeus daquela zona. A história foi‑se tornando mais fantasiosa à medida que era recontada, e um dos cronistas mais afamados daquele tempo - Matthew Paris - registou uma descrição pormenorizada e sangrenta de como judeus importantes de toda a Inglaterra se tinham reunido em Lincoln para engordar, torturar e, por fim, crucificar a criança raptada. Dezanove judeus foram julgados e executados pelo homicídio. Este género de processo tornou‑se comum noutras cidades inglesas, o que conduziu a uma série de pogroms em que se massacraram comunidades inteiras. Por fim, em 1290, toda a população judaica foi expulsa de Inglaterra.

A história não acabou ali. Um século depois da expulsão dos judeus de Inglaterra, Geoffrey Chaucer - o pai da literatura inglesa - incluiu um libelo de sangue com base na história de Hugh em Os Contos da Cantuária (The Prioress's Tale). A história termina com o enforcamento dos judeus. Na sequência disto, libelos de sangue desse género tornaram‑se parte habitual de todos os movimentos antissemitas, da Espanha do final do período medieval até à Rússia moderna. Encontramos um eco distante disto até na notícia falsa de 2016 de que Hillary Clinton encabeçava uma rede de tráfico de crianças que mantinha menores em escravatura sexual na cave de uma pizaria muito conhecida. Um número suficiente de americanos acreditou nisto ao ponto de o boato afetar a campanha eleitoral de Clinton, e uma pessoa chegou mesmo a ir armada à pizaria, exigindo ver a cave (a pizaria não tinha cave, sequer). Quanto a Hugh de Lincoln, ninguém sabe ao certo como morreu, mas foi enterrado na Catedral de Lincoln e venerado como santo. Dizia‑se que tinha feito vários milagres, e o seu túmulo continuou a atrair peregrinos vários séculos depois da expulsão de todos os judeus de Inglaterra. Só em 1955 - dez anos após o Holocausto - é que a Catedral de Lincoln repudiou o libelo de sangue, colocando uma placa junto ao túmulo de Hugh, na qual se lê: "Histórias inventadas de 'assassínios rituais' de rapazes cristãos por parte de comunidades judaicas eram comuns em toda a Europa durante a Idade Média, e mesmo bastante mais tarde. Estas ficções custaram a vida a muitos judeus inocentes. Lincoln teve a sua própria lenda, e a alegada vítima foi enterrada na Catedral de Lincoln no ano de 1255. Tais histórias não abonam a favor do mundo cristão."
Bom, algumas notícias falsas duram apenas 700 anos.

Uma vez mentira, verdade para sempre

As religiões antigas não têm sido as únicas a usar as ficções para fomentar a cooperação. Em tempos mais recentes, todos os países criaram a sua própria mitologia nacional, ao passo que movimentos como o comunismo, o fascismo e o liberalismo criaram complexos credos autofortalecedores. Joseph Goebbels, o maestro da propaganda nazi, e talvez o maior manipulador dos meios de comunicação da era moderna, terá explicado resumidamente o seu método ao dizer: "Uma mentira dita uma vez continua a ser uma mentira, mas uma mentira mil vezes repetida torna‑se verdade." Em Mein Kampf, Hitler escreveu: "A mais brilhante das técnicas propagandísticas não dará qualquer fruto a menos que se tenha sempre em mente um princípio fundamental - ela deve limitar‑se a algumas ideias e repeti‑las vezes sem conta." A máquina de propaganda soviética era igualmente flexível com a verdade, reescrevendo a história de tudo, desde guerras inteiras a fotografias individuais. Em 26 de junho de 1936, o jornal oficial, Pravda ("verdade") trazia na capa a fotografia de um Estaline sorridente a abraçar Gelya Markizova, uma menina de 7 anos. A imagem tornou‑se um ícone estalinista, endeusando Estaline como o Pai da Nação e idealizando a "Infância Soviética Feliz". As tipografias e as fábricas de todo o país começaram a produzir milhões de cartazes, esculturas e mosaicos dessa cena, que eram exibidos em instituições públicas de uma ponta à outra da União Soviética. Tal como não havia igreja ortodoxa russa que não tivesse um ícone da Virgem Maria com o Menino Jesus ao colo, não havia escola soviética sem um ícone do papá Estaline com a pequena Gelya. Infelizmente, no império de Estaline a fama era muitas vezes um convite à desgraça. No lapso de um ano, o pai de Gelya foi preso sob acusações falsas de ser um espião japonês e um terrorista trotskista. Em 1938, foi executado, uma dos milhões de vítimas do terror estali‑ nista. Gelya e a mãe foram exiladas para o Cazaquistão, onde a mãe morreu pouco tempo depois sob circunstâncias misteriosas. O que fazer com os inúmeros ícones que retratavam o Pai da Nação com a filha de um "inimigo do povo" condenado? Sem problema. Daquele momento em diante, Gelya Markizova evaporou ‑se e a "Criança Soviética Feliz" na imagem omnipresente passou a ser identificada como Mamlakat Nakhangova - uma rapariga tajique de 13 anos condecorada com a Ordem de Lenine por ter apanhado diligentemente muito algodão nas plantações (se alguém pensasse que a criança da imagem não parecia ter 13 anos, já sabia que o melhor era guardar para si essa heresia contrarrevolucionária).

Joseph Goebbels, o maestro da propaganda nazi, e talvez o maior manipulador dos meios de comunicação da era moderna, terá explicado resumidamente o seu método ao dizer: "Uma mentira dita uma vez continua a ser uma mentira, mas 
uma mentira mil vezes repetida torna‑se verdade."
A máquina de propaganda soviética era tão eficaz que conseguiu esconder atrocidades monstruosas domesticamente, ao mesmo tempo que projetava uma visão utópica no estrangeiro. Hoje, os ucranianos queixam‑se de que Putin conseguiu iludir muitos meios de comunicação ocidentais no respeitante às suas ações na Crimeia e em Donbas. Porém, na arte do logro ele não chega aos calcanhares de Estaline. No início da década de 1930, os jornalistas e intelectuais de esquerda louvavam a URSS como uma sociedade ideal numa altura em que ucranianos e outros cidadãos soviéticos morriam aos milhões com uma fome generalizada que o próprio Estaline orquestrou. Embora num tempo de Facebook e Twitter seja, por vezes, difícil decidir em que versão dos acontecimentos acreditar, pelo menos já não é possível a um regime matar milhões sem que o mundo saiba. Além das religiões e das ideologias, as empresas também recorrem à ficção e às notícias falsas. A criação de uma marca, muitas vezes, implica contar a mesma história fictícia uma e outra vez, até que as pessoas se convençam da verdade. Que imagens lhe vêm à ideia quando pensa na Coca‑Cola? Pensa em pessoas jovens e saudáveis a praticar desporto e a divertirem‑se juntas? Ou pensa em pacientes diabéticos e obesos deitados em camas de hospital? Beber muita Coca‑Cola não nos torna mais novos, não nos torna saudáveis e não nos torna atléticos - na verdade, aumenta as nossas probabilidades de sofremos de obesidade e diabetes. Porém, ao longo de décadas, a Coca‑Cola investiu milhares de milhões de dólares na sua associação à juventude, à saúde e ao desporto - e milhares de seres humanos, subconscientemente, acreditam nessa ligação.

Embora num tempo de Facebook e Twitter seja, por vezes, difícil decidir em que versão dos acontecimentos acreditar, pelo menos já não é possível a um regime matar milhões 
sem que o mundo saiba. 
O certo é que a verdade nunca foi uma prioridade para o Homo sapiens. Muitas pessoas partem do princípio de que, se uma determinada religião ou ideologia mostra a realidade de modo pouco fidedigno, os seus seguidores vão descobri‑lo mais tarde ou mais cedo pois não conseguirão competir com rivais mais lúcidos. Bom, trata‑se de outro mito reconfortante. A capacidade humana de cooperar depende de um equilíbrio delicado entre a verdade e a ficção. Se distorcermos demasiado a realidade, isso, de facto, irá enfraquecer ‑nos, pois leva-nos a agir de modo irrealista. Por exemplo, em 1905, um médium da África Oriental chamado Kinjikitile Ngwale afirmou estar possuído pelo espírito‑cobra Hongo. O novo profeta tinha uma mensagem revolucionária para o povo da colónia alemã da África Oriental: "Unam ‑se e expulsem os alemães." Para tornar a mensagem mais apelativa, Ngwale deu remédios mágicos aos seus seguidores, remédios que, alegadamente, transformavam as balas alemãs em água (maji, em suaíli). Foi assim que começou a rebelião Maji Maji. Fracassou. Pois, no campo de batalha, as balas alemãs não se transformaram em água e trespassaram sem piedade os corpos dos rebeldes mal armados.

Dois mil anos antes, a Grande Revolta Judaica contra os romanos também se inspirou numa crença ardente de que Deus combateria do lado dos judeus e os ajudaria a derrotar o Império Romano, aparentemente invencível. Também essa revolta falhou, conduzindo à destruição de Jerusalém e ao exílio dos judeus. Por outro lado, não é possível organizar massas de pessoas eficazmente sem recorrer a uma qualquer mitologia. Se nos limitarmos à pura realidade, poucas pessoas nos seguirão. Sem mitos, teria sido impossível organizar não só as revoltas fracassadas Maji Maji e judaica, mas também as rebeliões bem‑sucedidas dos mahdis e dos macabeus. De facto, as histórias falsas têm uma vantagem intrínseca relativamente à verdade no que toca a unir pessoas. Se queremos medir a lealdade grupal, pedir às pessoas que acreditem em absurdos é um teste muito melhor do que pedir‑lhes que acreditem na verdade.

não é possível organizar massas de pessoas eficazmente sem recorrer a uma qualquer mitologia. Se nos limitarmos 
à pura realidade, poucas pessoas 
nos seguirão
Se um grande chefe diz: "O sol ergue‑se a oriente e põe‑se a ocidente", não é preciso ser‑se leal ao chefe para o aplaudir. Mas se o chefe diz: "O sol ergue‑se a ocidente e põe‑se a oriente", só quem lhe é realmente leal aplaudirá. Do mesmo modo, se todos os nossos vizinhos acreditam na mesma história fantasiosa, podemos contar com eles num momento de crise. Se apenas estiverem dispostos a acreditar em factos confirmados, o que prova isso? Pode contra‑argumentar que, pelo menos nalguns casos, é possível organizar eficazmente as pessoas através de acordos consensuais e não através de ficções e mitos. Assim, na esfera económica, o dinheiro e as empresas unem as pessoas muito mais eficazmente do que qualquer livro sagrado, embora todos saibam que se trata apenas de uma convenção humana. No caso de um livro sagrado, um crente sincero dirá: "Acredito que o livro é sagrado", ao passo que, no caso do dólar, um crente só dirá: "Acredito que outras pessoas acreditam que o dólar é valioso." É evidente que o dólar não passa de uma criação humana, mas as pessoas parecem respeitá‑lo. Então, porque não podem os seres humanos abandonar todos os mitos e ficções e organizar‑se com base em convenções consensuais como o dólar? Essas convenções, contudo, não são visivelmente distintas da ficção. A diferença entre os livros sagrados e o dinheiro, por exemplo, é muito mais pequena do que parece à primeira vista. Quando a maioria das pessoas vê uma nota de dólar, esquece‑se de que se trata apenas de uma convenção humana. Quando veem aquele pedaço de papel com a cara do senhor já falecido, o que veem é algo de valioso em si mesmo. Raramente se lembram a si próprias: "Na verdade, isto não passa de um pedaço de papel inútil, mas, como as outras pessoas o acham valioso, posso usá ‑lo." Se observar um cérebro humano numa máquina de ressonância magnética, verá que, quando se mostra a alguém uma mala cheia de notas de cem dólares, as partes do seu cérebro que se iluminam irrequietamente não são as partes associadas ao ceticismo ("Outras pessoas acham que isto é valioso"), e sim as partes ligadas à ganância ("C'um caneco! Quero isto!"). Inversamente, na grande maioria dos casos, as pessoas só começam a sacralizar a Bíblia, os Vedas ou o Livro de Mórmon depois de serem longa e repetidamente expostas a outras pessoas que os veem como sagrados. Aprendemos a respeitar os livros sagrados do mesmo modo como aprendemos a respeitar as notas. Assim, na prática, não há uma divisão clara entre "saber que algo é apenas uma convenção humana" e "acreditar que algo tem valor em si mesmo". Em muitos casos, as pessoas são ambíguas e esquecidas no que toca a esta separação. Para dar outro exemplo, se se sentar e tiver uma discussão filosófica profunda sobre isso, quase toda a gente concordará que as empresas são histórias fictícias criadas por seres humanos. A Microsoft não é o edifício que detém, as pessoas que emprega ou os acionistas para quem trabalha - na verdade, é uma ficção jurídica complexa inventada por legisladores e advogados. Porém, 99 por cento do nosso tempo não é passado em discussões filosóficas, e tratamos as empresas como se fossem entidades reais no mundo, como tigres ou seres humanos. Esbater as divisões entre ficção e realidade pode ter muitos propósitos, desde "diversão" até à ponta oposta: "sobrevivência".

na esfera económica, o dinheiro e as empresas unem as pessoas muito mais eficazmente do que qualquer livro sagrado, 
embora todos saibam que se trata apenas 
de uma convenção humana
Não podemos jogar jogos e ler romances a menos que suspendamos a nossa descrença durante algum tempo, pelo menos. Para realmente desfrutarmos de um jogo de futebol, temos de aceitar as regras do jogo e esquecer durante 90 minutos que elas são meras invenções humanas. Se não o fizermos, vai parecer‑nos absolutamente ridículo que 22 pessoas corram atrás de uma bola. O futebol pode começar apenas por ser um divertimento, mas pode transformar‑se em algo mais sério, como qualquer hooligan inglês ou nacionalista argentino comprovarão. O futebol pode ajudar a formar identidades pessoais, pode cimentar comunidades de grande dimensão e pode até ser motivo de violência. Os países e as religiões são clubes de futebol em ponto grande. Os seres humanos têm uma capacidade incrível de saber e não saber ao mesmo tempo. Ou, em termos mais corretos, de saberem algo quando pensam bem no assunto, mas não pensarem nisso a maior parte do tempo, pelo que não o sabem. Se nos concentrarmos nisso, vemos que o dinheiro é uma ficção. Mas geralmente não nos concentramos. Se nos perguntarem, dizemos que o futebol é uma invenção humana. Mas durante o jogo, no calor do momento, ninguém nos pergunta isso. Se dedicarmos tempo e energia a essa missão, podemos constatar que as nações são ficções complexas, mas não temos tempo e energia para isso. Se quisermos alcançar a verdade última, veremos que a história de Adão e Eva é um mito. Mas com que frequência buscamos a verdade última? A verdade e o poder só conseguem caminhar lado a lado até certo ponto. Mais tarde ou mais cedo, seguem caminhos diferentes.

Os seres humanos têm uma capacidade incrível de 
saber e não saber ao mesmo tempo
Se queremos poder, a dada altura teremos de difundir ficções. Se queremos conhecer a verdade sobre o mundo, a dada altura teremos de renunciar ao poder. Teremos de reconhecer coisas - as origens do nosso poder, por exemplo - que enfurecerão aliados, afastarão seguidores ou perturbarão a harmonia social. Não há nada de místico nesse fosso entre verdade e poder. Para o testemunhar, basta procurar alguém branco, anglo‑saxão e protestante e confrontá‑lo com a questão da raça, ou então um israelita comum e falar‑lhe da ocupação, ou tentar conversar com um homem qualquer sobre o patriarcado. Ao longo da história, os estudiosos acabaram sempre diante deste dilema: estarão ao serviço do poder ou da verdade? Deverão ter em vista a união das pessoas, fazendo que todas acreditem na mesma história, ou deverão deixar que as pessoas conheçam a verdade, mesmo que o preço seja a desunião? As instituições de saber mais poderosas - fossem de padres cristãos, mandarins confucianos ou ideólogos comunistas - colocaram sempre a união acima da verdade. E era por isso que eram tão poderosas. Como espécie, os seres humanos preferem o poder à verdade. Dedicamos muito mais tempo e esforço à tentativa de controlar o mundo do que à tentativa de o compreender - e, mesmo quando tentamos compreendê‑lo, geralmente fazemo‑lo na esperança de que compreendê‑lo torne mais fácil controlá‑lo. Assim, se sonha com uma sociedade em que reine a verdade e os mitos sejam ignorados, não conte com o Homo sapiens. Mais vale tentar a sua sorte com os chimpanzés.

Sair da máquina de lavagem cerebral

Tudo isto não significa que as notícias falsas da atualidade não sejam um problema, ou que os políticos e os padres tenham carta‑branca para mentir descaradamente. Também seria totalmente errado concluir que tudo são notícias falsas, que qualquer tentativa de descobrir a verdade está condenada ao fracasso e que não há qualquer diferença entre o jornalismo sério e a propaganda. Soterrados sob todas as notícias falsas há factos reais e sofrimento real. Na Ucrânia, por exemplo, os soldados russos estão mesmo a lutar, milhares de pessoas já morreram e centenas de milhares ficaram sem casa.

O sofrimento humano tem muitas vezes origem na crença em ficções, mas o sofrimento em si é real. Assim, em vez de aceitarmos as fake news como sendo a norma, devemos reconhecê‑las como um problema muito mais difícil do que tendemos a reconhecer, e devemos esforçar‑nos ainda mais para distinguir a realidade da ficção. Não espere a perfeição. Uma das maiores ficções de sempre é negar a complexidade do mundo e pensar em termos absolutos de pureza imaculada versus mal satânico. Nenhum político diz a verdade, toda a verdade e nada mais além da verdade, mas alguns políticos são melhores do que outros. Se tivesse de escolher, confiaria muito mais em Churchill do que em Estaline, embora o primeiro‑ministro britânico não hesitasse em embelezar a verdade quando isso lhe convinha. Do mesmo modo, não há jornais isentos de tendências e erros, mas alguns jornais fazem um esforço sincero para descobrir a verdade, ao passo que outros são uma máquina de lavagem ao cérebro. Se eu vivesse na década de 1930, espero que tivesse a sensatez de acreditar mais no The New York Times do que no Pravda ou no Der Stürmer. É responsabilidade de todos nós investir tempo e esforço na descoberta das nossas tendenciosidades e na verificação das nossas fontes de informação. Mas, precisamente por causa disso, temos de, pelo menos, investigar cuidadosamente as nossas fontes de informação preferenciais - sejam elas os jornais, um site, um canal televisivo ou uma pessoa. No capítulo 20 analisaremos mais a fundo como evitar a lavagem cerebral e como distinguir a realidade da ficção. Aqui, quero apenas deixar algumas regras básicas. Primeiro, se quer informação fidedigna, pague bem por ela. Se recebemos notícias de borla, o mais certo é sermos nós o produto que esse meio de informação vende e não o seu cliente. Suponhamos que um multimilionário duvidoso lhe propunha o seguinte negócio: "Pago‑lhe 30 dólares por mês e, em troca, vai permitir que eu lhe faça uma hora de lavagem ao cérebro por dia, instalando na sua mente os preconceitos políticos e comerciais que eu quiser." Aceitaria o negócio? Poucas pessoas lúcidas o fariam. Então o multimilionário duvidoso faz‑lhe uma proposta ligeiramente diferente: "Vai permitir que eu lhe faça uma hora de lavagem ao cérebro por dia e, em troca, não lhe cobro nada por esse serviço." De repente, a oferta parece tentadora para centenas de milhões de pessoas. Não siga o exemplo delas. A segunda regra básica é que, se algum tema lhe parecer excecionalmente importante, esforce‑se por ler toda a literatura científica relevante sobre ele. Quando digo "literatura científica", refiro‑me a artigos aprovados por outros cientistas, livros publicados por editoras académicas bem conhecidas e a textos de professores de instituições reputadas. A ciência tem as suas limitações, evidentemente, e já se enganou em muitas coisas no passado. Todavia, a comunidade científica é, há séculos, a nossa fonte de conhecimento mais fiável.

É responsabilidade de todos nós investir tempo e esforço na descoberta das nossas tendenciosidades e 
na verificação das nossas fontes 
de informação
Se pensa que a comunidade científica está enganada quanto a algo, isso é inteiramente possível, mas ao menos conheça as teorias científicas que está a rejeitar, e ofereça provas empíricas que justifiquem a sua afirmação. Os cientistas, por seu turno, precisam de participar muito mais nos debates públicos contemporâneos. Não devem ter medo de se fazer ouvir quando a conversa envolve a sua área de especialidade, seja a medicina ou a história. O silêncio não é neutralidade; é apoiar o statu quo. É claro, é extremamente importante continuar a fazer investigação académica e publicar os resultados numa publicação científica que só alguns lerão. Mas é igualmente importante comunicar as mais recentes teorias científicas ao grande público através de livros de popularização científica, e mesmo através do bom uso da arte e da ficção. Significa isso que os cientistas devem começar a escrever ficção científica? Não é má ideia. A arte desempenha um papel decisivo na forma como as pessoas veem o mundo, e no século XX a ficção científica é provavelmente o género literário mais importante de todos, pois influencia o modo como a maioria das pessoas compreende coisas como a inteligência artificial, a bioengenharia e as alterações climáticas. Sem dúvida que precisamos de boa ciência, mas do ponto de vista político um bom filme de ficção científica vale muito mais do que um artigo na Science ou na Nature.
Pré-publicação do capítulo 19

Educação: a mudança é a única constante

A humanidade está perante revoluções inéditas, todas as nossas velhas histórias estão a esboroar‑se, e até agora não há histórias novas para as substituir. Como poderemos preparar‑nos a nós mesmos e aos nossos filhos para um mundo de transformações inéditas e incertezas radicais? Um bebé que nasça hoje terá trinta e poucos anos em 2050. Se tudo correr bem, esse bebé ainda andará por cá em 2100, e pode até ser um cidadão muito ativo do século XXII.

Que devemos ensinar a esse bebé que o ajude a sobreviver e a florescer no mundo de 2050 ou no do século XXII? Que tipo de aptidões precisará ele ou ela para conseguir um emprego, compreender o que se passa à sua volta e orientar‑se no labirinto da vida? Infelizmente, uma vez que ninguém sabe que aspeto terá o nosso mundo em 2050 - já para não falar de 2100 -, não conhecemos a resposta a estas perguntas. É claro que os seres humanos nunca foram bons a prever o futuro, mas, hoje, isso é mais difícil do que nunca. Assim que a tecnologia nos permitir reprogramar os corpos, os cérebros e as mentes, deixaremos de ter certezas sobre seja o que for - incluindo sobre coisas que até então pareciam fixas e eternas. Há mil anos, em 1018, havia muitas coisas que as pessoas não sabiam sobre o futuro, mas estavam convencidas de que os fundamentos da sociedade humana não iriam mudar. Se vivêssemos na China em 1018, saberíamos que em 1050 o Império Song podia ter colapsado, os kitanos podiam ter invadido o território a partir do norte e que a peste podia matar milhões. No entanto, era claro que mesmo em 1050 as pessoas ainda trabalhariam como agricultores e tecelões, os governantes ainda dependeriam de seres humanos para formar os seus exércitos e as suas estruturas burocráticas, que os homens ainda mandariam nas mulheres, que a esperança média de vida ainda rondaria os 40 anos, e que o corpo humano seria exatamente o mesmo. Assim, em 1018, os pais chineses que fossem pobres ensinavam os seus filhos a plantar algodão ou a tecer seda, e os mais ricos ensinavam os filhos rapazes a ler os clássicos de Confúcio, a arte da caligrafia ou a combater a cavalo - ensinando as suas filhas a serem donas de casa tímidas e obedientes. Era evidente que estas aptidões ainda seriam necessárias em 1050. Hoje, não temos a menor ideia do aspeto que terão a China ou o resto do mundo em 2050. Não sabemos como é que as pessoas ganharão a vida, não sabemos como funcionarão os exércitos e as burocracias, e não sabemos quais serão as relações entre os sexos. Algumas pessoas, provavelmente, viverão muito mais tempo do que se vive hoje, e o próprio corpo humano passará por uma revolução inédita graças à bioengenharia e aos interfaces diretos cérebro‑computador.

Assim, o mais certo é que muito do que os miúdos aprendem atualmente seja irrelevante em 2050. Hoje, há demasiadas escolas a colocarem a ênfase na memorização de informação. No passado, isto tinha sentido, pois a informação era escassa, e mesmo o lento gotejar da informação que existia era repetidamente bloqueado pela censura. Se vivêssemos, por exemplo, numa pequena cidade provinciana no México em 1800, era‑nos difícil saber muito sobre o mundo em geral. Não havia rádio, televisão, jornais diários ou bibliotecas públicas. Mesmo que fôssemos cultos e tivéssemos acesso a uma biblioteca privada, não haveria muito para ler além de romances e tratados religiosos. O Império Espanhol censurava vigorosamente todos os textos impressos localmente e só permitia que pingassem do exterior algumas publicações autorizadas.

no século XXI estamos inundados de quantidades gigantescas de informação, e mesmo os censores não tentam 
reprimi‑las. Em vez disso, espalham desinformação 
ou distraem‑nos com irrelevâncias
Esta também era em grande parte a realidade numa vila provinciana na Rússia, na Índia, na Turquia ou na China. Quando surgiram as escolas modernas, que ensinaram todas as crianças a ler e a escrever, transmitindo‑lhes os factos elementares sobre geografia, história e biologia, isso representou uma melhoria imensa. Por contraste, no século XXI estamos inundados de quantidades gigantescas de informação, e mesmo os censores não tentam reprimi‑las. Em vez disso, espalham desinformação ou distraem‑nos com irrelevâncias. Se vivemos numa qualquer vila provinciana no México e temos um smartphone, podemos passar várias vidas inteiras apenas a ler a Wikipédia, a assistir a palestras TED e a fazer cursos grátis online. Nenhum governo pode aspirar à ocultação da informação que não quer ver divulgada. Por outro lado, é assustadoramente fácil inundar o público com relatos contraditórios e manobras de diversão. Em qualquer parte do mundo, as pessoas estão a um clique de distância de notícias dos últimos bombardeamentos de Aleppo ou das calotas do Ártico a derreter. Além disso, há muitas outras coisas igualmente a um clique de distância, o que torna difícil a concentração, e quando a política ou a ciência parecem demasiado complicadas, é tentador ver antes vídeos de gatos a fazer coisas engraçadas, ler boatos sobre celebridades ou consumir pornografia. Num mundo desses, a última coisa de que um professor precisa é de dar aos seus alunos mais informação.

Eles já têm informação a mais. Em vez disso, as pessoas precisam é da capacidade de discernir a informação, de perceber a diferença entre o que é importante e o que é irrelevante e, acima de tudo, de combinar os vários pedaços de informação para obter um retrato completo do mundo. Na verdade, há séculos que este tem sido o ideal do sistema educativo liberal do Ocidente, mas até agora muitas escolas ocidentais têm ficado muito aquém de o cumprir. Os professores permitiam a si mesmos concentrar‑se no decorar de dados, ao mesmo tempo que encorajavam os alunos a "pensar por si próprios". Devido ao seu medo do autoritarismo, as escolas liberais tinham um horror particular a narrativas grandiosas. Partiam do princípio de que, se dessem aos alunos muita informação e alguma liberdade, estes iriam criar a sua própria imagem do mundo, e mesmo que esta geração não o fizesse, haveria muito tempo para construir uma boa síntese no futuro.

Agora o tempo chegou ao fim. As decisões que tomaremos nas próximas décadas influenciarão o próprio futuro da vida, e apenas podemos tomar estas decisões com base na nossa mundividência atual. Se esta geração não tiver uma perspetiva alargada do cosmos, o futuro da vida será decidido ao acaso. Estamos em contrarrelógio. Além da informação, a maioria das escolas também se foca demasiado em dar aos alunos um conjunto de aptidões predeterminadas, tal como resolver equações diferenciais, programar código em linguagem C++, identificar químicos num tubo de ensaio ou aprender chinês. Porém, uma vez que não temos qualquer ideia do aspeto que terão o mundo e o mercado de trabalho em 2050, não conhecemos ao certo quais as aptidões que as pessoas terão de ter. Podemos investir muito tempo e esforço a ensinar as crianças a escrever em C++ ou a falar chinês e, depois, descobrir em 2050 que a inteligência artificial programa melhor do que os seres humanos e que a nova aplicação Google Translate nos permite ter conversas em mandarim, cantonês ou hakka, apesar de nós só sabermos dizer "Ni hao". Assim, o que devemos ensinar? Muitos especialistas em pedagogia defendem que as escolas devem mudar de modelo e passar a ensinar os "quatro C": pensamento crítico, comunicação, colaboração e criatividade. De uma perspetiva mais ampla, as escolas devem dar menos atenção às aptidões técnicas e colocar a ênfase nas aptidões de vida polivalentes. Acima de tudo, estará a capacidade de lidar com a mudança, de aprender coisas novas e de preservar o equilíbrio mental em situações novas. Para conseguirmos acompanhar o ritmo do mundo em 2050, será preciso não só inventarmos novas ideias e novos produtos, mas sobretudo reinventarmo‑nos a nós mesmos uma e outra vez. À medida que o ritmo da mudança acelerar, não será só a economia a transformar‑se: o próprio sentido de se ser humano também tenderá a alterar‑se.

Quando a política ou a ciência parecem demasiado complicadas, é tentador ver antes vídeos de gatos 
a fazer coisas engraçadas, ler boatos 
sobre celebridades ou consumir pornografia
Já em 1848 o Manifesto Comunista declarava que "tudo o que é sólido se derrete no ar". Marx e Engels, porém, tinham em mente as estruturas sociais e económicas. Em 2048, as estruturas físicas e cognitivas também se derreterão no ar, ou numa nuvem de bits de informação. Em 1848, milhões de pessoas ficavam sem emprego em quintas na província e mudavam‑se para as grandes cidades, para trabalharem em fábricas. Mas, ao chegarem à grande cidade, era pouco provável que mudassem de sexo ou que acrescentassem a si mesmas um sexto sentido. E, se encontrassem emprego numa fábrica têxtil, podiam esperar manter‑se nessa profissão até ao fim das suas vidas laborais. Em 2048, as pessoas podem ter de lidar com migrações para o ciberespaço, com identidades de género fluidas e com novas experiências sensoriais geradas por implantes informáticos. Se encontrarem trabalho e sentido a desenhar roupa moderna para um jogo de realidade virtual 3D, no lapso de uma década não só esta profissão em particular como todos os empregos que exijam este tipo de criação artística podem passar a ser desempenhados pela inteligência artificial. Assim, aos 25 anos apresentamo‑nos num site de encontros como "uma mulher heterossexual de 25 anos que vive em Londres e trabalha numa loja de roupa". Aos 35 anos dizemos que somos "uma pessoa de género não específico que está a passar por um ajustamento de idade, cuja atividade neocortical ocorre sobretudo no mundo virtual NovoCosmos, e cuja missão de vida é ir aonde nenhum estilista de moda foi antes". Aos 45, tanto os sites de encontros como as autodescrições já passaram de moda. Basta esperar que um algoritmo nos descubra (ou crie) o par perfeito. Quanto a buscar realização pessoal no estilismo, seremos tão irrevogavelmente ultrapassados pelos algoritmos que, ao olharmos para os nossos principais feitos da década anterior, sentiremos mais vergonha do que orgulho. E aos 45 anos ainda temos muitas décadas de mudança radical pela frente. Peço‑lhe que não encare este cenário literalmente. Ninguém consegue prever ao certo as mudanças específicas por que passaremos.

Qualquer cenário particular tenderá a andar longe da verdade. Se alguém lhe descrever o mundo do século XXI e lhe soar a ficção científica, o mais provável é que seja falso. Mas se alguém lhe descrever os meados do século XXI e não lhe soar a ficção científica, essa descrição será indubitavelmente falsa. Não podemos ter certezas quanto às especificidades do futuro, mas a mudança em si é a única certeza. Mudanças tão profundas podem vir a transformar a estrutura básica da vida, tornarão a descontinuidade a principal característica da vida. Desde tempos imemoriais que a vida se dividiu em duas partes complementares: um período de aprendizagem a que se segue um período de trabalho. Na primeira parte da vida, acumulávamos informação, desenvolvíamos aptidões, construíamos uma mundividência e criávamos uma identidade estável. Mesmo que aos 15 anos passássemos a maior parte do nosso dia a trabalhar no arrozal da nossa família (e não numa escola formal), a coisa mais importante que estávamos a fazer era aprender: como cultivar arroz, como negociar com os mercadores de arroz gananciosos vindos da grande cidade e como solucionar os conflitos que surgiam com outras aldeias acerca de terrenos e água. Na segunda parte da nossa vida recorríamos às aptidões que tínhamos acumulado para nos orientarmos no mundo, ganhar a vida e contribuir para a sociedade. É claro que mesmo aos 50 anos continuávamos a aprender coisas novas sobre o arroz, os mercadores e os conflitos, mas tratava‑se apenas de ligeiros ajustes a capacidades já muito apuradas. Em meados do século XXI, a mudança cada vez mais acelerada, somada a esperanças médias de vida mais longas, tornarão este modelo tradicional obsoleto. A vida irá romper pelas costuras e haverá menos continuidade entre os diferentes períodos da vida. "Quem sou eu?" será uma pergunta ainda mais urgente e complicada do que algum dia foi.

Se alguém lhe descrever o mundo do século XXI e lhe soar a ficção científica, o mais provável é que seja falso. Mas se alguém lhe descrever os meados do século XXI e não lhe soar a ficção científica, essa descrição será indubitavelmente falsa
É provável que isto implique níveis de stress imensos. Porque a mudança é sempre stressante e, após uma certa idade, a maioria das pessoas não gosta de mudar. Quando se tem 15 anos, toda a nossa vida é mudança. O nosso corpo cresce, a nossa mente desenvolve‑se, as nossas relações aprofundam‑se. Tudo flui e tudo é novo. Estamos ocupados a inventar‑nos. Para a maioria dos adolescentes, isto é assustador, mas, ao mesmo tempo, também é empolgante. Novos horizontes abrem‑se diante de nós e temos o mundo inteiro para conquistar. Quando chegamos aos 50, não queremos mudança, e a maioria das pessoas já desistiu de conquistar o mundo. Já passei por isso tudo e agora estou bem aqui, obrigado. Preferimos muito mais a estabilidade. Investimos tanto nas nossas aptidões, na nossa careira, na nossa identidade e na nossa mundividência que não queremos começar tudo de novo. Quanto mais trabalhámos na construção de algo, mais difícil é abrir mão disso e criar espaço para algo novo. Podemos ainda valorizar novas experiências e pequenas adaptações, mas a maioria das pessoas na casa dos 50 não está preparada para passar por cima das estruturas mais profundas da sua identidade e da sua personalidade. Há motivos neurológicos para isto. Embora o cérebro adulto seja mais flexível e volátil do que em tempos se pensou, ele ainda é menos maleável do que o cérebro adolescente. Religarmos neurónios e recombinarmos sinapses dá uma trabalheira.

Mas, no século XXI, não podemos dar a nós mesmos o luxo da estabilidade. Se tentarmos agarrar‑nos a uma qualquer identidade, profissão ou mundividência fixa, corremos o risco de ficar para trás quando o mundo nos ultrapassar num ápice. Se assim for, uma vez que a esperança média de vida tenderá a aumentar, talvez tenhamos de passar muitas décadas como um fóssil que não percebe nada do que está a acontecer. Para nos mantermos relevantes - não só do ponto de vista económico, mas sobretudo do ponto de vista social -, precisamos de ter a capaci‑ dade de aprender e de nos reinventar constantemente, e sem dúvida que numa idade ainda jovem como os 50 anos. À medida que o que é estranho se normaliza, as nossas experiências passadas, bem como as experiências passadas de toda a humanidade, irão tornar‑se referências menos fiáveis.

Religarmos neurónios e recombinarmos sinapses 
dá uma trabalheira
Os seres humanos, como indivíduos e no seu conjunto, passarão cada vez mais a ter de lidar com coisas que nunca ninguém viu, como máquinas superinteligentes, corpos transformados, algoritmos capazes de manipular as nossas emoções com uma precisão desconcertante, cataclismos rápidos provocados por mão humana, e a necessidade de mudar de profissão a cada década. Qual a coisa certa a fazer quando somos confrontados com situações totalmente inéditas? Como devemos agir quando ficamos soterrados sob um volume imenso de informação e é impossível absorver e analisar tudo? Como viver num mundo em que a incerteza profunda não é um defeito do sistema mas uma característica do próprio sistema? Para sobreviver e desabrochar num mundo desses, precisamos de muita flexibilidade mental e grandes reservas de equilíbrio emocional. Sucessivamente, teremos de abrir mão de algumas coisas que conhecemos muito bem e familiarizar‑nos com o desconhecido. Infelizmente, ensinar as crianças a irem ao encontro do desconhecido e a manterem o seu equilíbrio mental é muito mais difícil do que lhes ensinar uma equação da física ou as origens de Primeira Guerra Mundial. Não é possível aprender a resiliência a partir de um livro ou através de uma palestra. Os próprios professores, em geral, não têm a flexibilidade que o século XXI exige, pois são eles mesmos um produto do velho sistema de educação. A Revolução Industrial legou‑nos a teoria educativa da linha de montagem. No meio da cidade há um grande edifício de cimento dividido em muitas salas idênticas, cada uma delas equipada com filas de mesas e cadeiras. Quando toca a sineta, vamos para uma destas salas juntamente com outros 30 miúdos que nasceram todos no mesmo ano que nós. Todas as horas, há um adulto qualquer que entra na sala e começa a falar. O Estado paga‑lhes para que o façam. Um deles fala da forma do planeta Terra, outro fala‑nos do passado humano, um terceiro conta‑nos coisas acerca do corpo humano.

É fácil rirmo‑nos deste modelo, e quase toda a gente concordará que, independentemente dos resultados que já obteve, atualmente está falido. Mas, até agora, ainda não criámos uma alternativa viável. Pelo menos uma alternativa que possa ser aplicada em grande escala, tanto no México rural quanto nos subúrbios ricos da Califórnia.

Reprogramar seres humanos

Assim, o melhor conselho que posso dar a um adolescente de 15 anos preso num modelo educativo datado, algures no México, na Índia ou no Alabama, é: não dependas demasiado dos adultos. A maioria deles têm boas intenções, mas simplesmente não compreendem o mundo. No passado, era uma aposta relativamente segura seguir o que diziam os adultos, pois eles conheciam muito bem o mundo, e este mudava devagar. Mas o século XXI vai ser diferente. Devido ao ritmo cada vez mais acelerado da mudança, nunca poderemos ter bem a certeza se os adultos nos estão a transmitir sabedoria intemporal ou algum dado tendencioso e já ultrapassado. Então, para quem nos devemos voltar? Para a tecnologia, talvez? Essa é uma jogada ainda mais arriscada. A tecnologia pode ajudar‑nos muito, mas, se ela tiver demasiada influência nas nossas vidas, podemos ficar reféns das suas intenções. Há milhares de anos, os seres humanos inventaram a agricultura, mas esta tecnologia enriqueceu apenas uma elite minúscula, escravizando a maioria das pessoas.

A maioria delas deu por si a trabalhar de sol a sol, arrancando ervas daninhas, transportando baldes de água e apanhando milho sob um sol escaldante. Isso também lhe pode acontecer a si. A tecnologia não é uma coisa má. Se soubermos o que queremos fazer com as nossas vidas, a tecnologia pode ajudar‑nos a alcançá‑lo. Mas se não soubermos o que queremos da vida, é muito fácil a tecnologia condicionar os nossos objetivos e controlar a nossa vida. Especialmente à medida que a tecnologia for compreendendo melhor os seres humanos, podemos dar por nós a servir os seus interesses, em vez de ser ela a servir os nossos. Já viu aqueles zombies que andam pelas ruas com as caras coladas aos smartphones? Acha que eles controlam a tecnologia ou que é a tecnologia que os controla a eles?

Devido ao ritmo cada vez mais acelerado da mudança, nunca poderemos ter bem a certeza se os adultos nos estão 
a transmitir sabedoria intemporal ou algum dado 
tendencioso e já ultrapassado
Então devemos depender de nós mesmos, é isso? Isso soa muito bem num programa como a Rua Sésamo ou num filme da Disney à moda antiga, mas na vida real isso não funciona assim tão bem. Mesmo que a Disney venha a aperceber‑se disso. Tal como no caso de Riley Andersen, a maioria das pessoas mal se conhece e, quando tenta "ouvir‑se a si mesma", facilmente cai nas garras de manipulações externas. A voz que ouvimos no interior das nossas cabeças nunca foi fiável, pois sempre refletiu a propaganda estatal, as lavagens cerebrais ideológicas e a publicidade comercial, já para não falar dos defeitos bioquímicos. À medida que a biotecnologia e a aprendizagem automática se desenvolverem, passará a ser mais fácil manipular as emoções e os desejos mais profundos dos seres humanos, e será mais perigoso do que nunca seguirmos o que nos diz o coração. Quando a Coca‑Cola, a Amazon, o Baidu ou o governo souberem como puxar os cordelinhos do nosso coração e ativar os interruptores do nosso cérebro, ainda conseguiremos distinguir entre o nosso eu e os especialistas em marketing destas empresas? Para conseguir levar a cabo uma tarefa tão exigente, vai ser preciso esforçarmo‑nos muito para conhecermos melhor o nosso sistema operativo. Para sabermos quem somos e o que queremos da vida. Isto, claro, é o conselho mais antigo de todos os tempos: conhece‑te a ti mesmo. Há milhares de anos que os filósofos e os profetas incitam as pessoas a conhecerem‑se a si próprias. Mas este conselho nunca foi mais urgente do que no século XXI, pois, ao contrário dos dias de Lao Tsé e Sócrates, hoje temos concorrentes à altura. A Coca‑Cola, a Amazon, o Baidu e o governo querem todos manipular‑nos. Não querem manipular o nosso smartphone, o nosso computador ou a nossa conta bancária - querem manipular‑nos a nós e ao nosso sistema operativo biológico. Talvez já tenha ouvido falar de pirataria informática, mas isso é apenas uma pequena parte da verdade.

Na realidade, vivemos na era da pirataria humana. Os algoritmos estão a observá‑lo neste preciso momento. Eles sabem aonde vamos, o que compramos, com quem nos encontramos. Em breve, monitorizarão todos os nossos passos, todas as nossas inspirações e expirações, todos os nossos batimentos cardíacos. Recorrem à big data e à aprendizagem automática para nos conhecer cada vez melhor. E quando estes algoritmos nos conhecerem melhor do que nos conhecemos a nós mesmos, conseguirão controlar-nos e manipular‑nos, e não há muito que possamos fazer quanto a isso. Viveremos na matriz, ou no Truman Show. Feitas as contas, trata‑se de uma simples questão empírica: se os algoritmos realmente compreenderem o que se passa connosco melhor do que nós próprios, a autoridade passa para as mãos deles. É claro, pode não se importar minimamente com a cedência de autoridade aos algoritmos e confiar neles para que tomem decisões por si e pelo resto do mundo. Se assim for, recoste‑se e desfrute da viagem. Não tem de fazer nada quanto a isso. Os algoritmos tratarão de tudo. Se, porém, quiser reter algum controlo relativamente à sua existência pessoal e ao futuro da vida, terá de correr mais depressa do que os algoritmos, mais depressa do que a Amazon e o Estado, e conhecer‑se bem a si mesmo antes que eles o façam por si. Para correr depressa, não leve muita bagagem consigo. Deixe todas as suas ilusões para trás. Elas são demasiado pesadas.
Pré-publicação do capítulo 21

Meditação: observar, simplesmente

Depois de criticar tantas histórias, religiões e ideologias, é justo que também me ponha a mim próprio à mercê das críticas, explicando como é que alguém tão cético ainda consegue acordar bem‑disposto todas as manhãs. Hesito em fazê ‑lo, em parte por recear cometer um ato de vaidade e em parte porque não quero transmitir a ideia errada, como se aquilo que resulta no meu caso resultasse no de toda a gente. Estou bem ciente de que as vicissitudes dos meus genes, dos meus neurónios, da minha história e do meu dharma pessoais não são partilhadas por todos. Mas também será bom o leitor conhecer a cor das lentes através das quais vejo o mundo, as lentes que distorcem a minha visão e a minha escrita. Em adolescente, eu era uma pessoa preocupada e inquieta. O mundo não tinha qualquer sentido para mim, e não obtinha quaisquer respostas às grandes interrogações que tinha sobre a vida. Em particular, não compreendia por que motivo havia tanto sofrimento no mundo e na minha própria vida, nem o que podia fazer quanto a ele. As pessoas à minha volta e os livros que lia só me ofereciam ficções complexas: mitos religiosos sobre deuses e céus, mitos nacionalistas sobre a pátria e a sua missão histórica, mitos românticos sobre o amor e a aventura, ou mitos capitalistas sobre o crescimento económico e como comprar e consumir coisas me faria mais feliz. Tive juízo suficiente para compreender que isto, provavelmente, eram apenas ficções, mas não fazia ideia de onde encontrar a verdade.

Quando comecei a estudar na universidade, pensei que esse seria o local ideal para encontrar respostas. Mas fiquei desiludido. O mundo académico deu‑me ferramentas poderosas para desconstruir todos os mitos que os seres humanos algum dia criaram, mas não me ofereceu respostas satisfatórias às grandes questões da vida. Acabei por dar por mim a escrever uma tese de doutoramento na Universidade de Oxford sobre os textos autobiográficos dos soldados medievais. Por diversão, continuei a ler muitos livros de filosofia e a ter muitas discussões filosóficas, mas, embora isso me proporcionasse entretenimento intelectual, não me fazia chegar propriamente a conclusões úteis. Era extremamente frustrante. Um dia, o meu bom amigo Ron sugeriu‑me que pusesse de lado, pelo menos durante alguns dias, todos os livros e as discussões intelectuais e experimentasse um curso de meditação Vipassana. (Vipassana significa "introspeção" na língua páli, da antiga Índia.) Julguei que fosse uma treta New Age e, como não tinha o menor interesse em ouvir outra mitologia, recusei a sugestão. Ao fim de um ano de incitamentos pacientes, em abril de 2000 ele conseguiu que eu participasse num retiro Vipassana com a duração de dez dias. Até ali, pouco sabia de meditação e pensei que deveria envolver todo o tipo de teorias místicas complicadas. Assim, fiquei espantado com o pragmatismo dos ensinamentos. Quem ministrava o curso, S. N. Goenka, instruiu os participantes a sentarem‑se com as pernas cruzadas e de olhos fechados e a concentrarem toda a sua atenção no ar que entrava e saía das suas narinas. "Não façam nada", dizia ele uma e outra vez, "não tentem controlar a respiração nem respirar desta ou daquela maneira. Simplesmente, observem a realidade do momento presente, seja ela qual for. Quando o ar entra, fiquem apenas cientes - 'Agora, o ar está a entrar.' Quando o ar sai, mantenham ‑se igualmente cientes - 'Agora, o ar está a sair.' Quando perderem a concentração e a vossa mente começar a divagar por entre memórias e fantasias, mantenham ‑se simplesmente cientes - 'Agora, a mente afastou ‑se da respiração.'"

Foi a coisa mais importante que alguém já me disse. Quando as pessoas fazem as grandes perguntas sobre a vida, geralmente não têm qualquer interesse em saber quando é que a sua respiração entra e quando é que a sua respiração sai. Querem antes saber coisas do tipo: o que acontece depois de morrermos? Porém, o grande enigma da vida não é o que acontece depois de morrermos, e sim o que acontece antes de morrermos. Se queremos compreender a morte, temos de compreender a vida. As pessoas perguntam: "Quando morrer, desaparecerei por completo? Irei para o céu? Renascerei num novo corpo?" Estas perguntas partem do princípio de que há um "eu" que perdura do nascimento à morte, e a pergunta é: "O que acontece a este 'eu' no momento da morte?" Mas o que perdura do nascimento à morte? O corpo está sempre a mudar, a cada instante, o cérebro muda a todo o momento, a mente muda a todo o momento. Quanto mais de perto nos observarmos, mais evidente se torna que nada perdura de um momento para o seguinte. Então o que dá continuidade a uma vida inteira? Se não conhecemos a resposta a essa pergunta, não compreendemos a vida, e não temos qualquer hipótese de compreender a morte. Se e quando descobrirmos o que dá coesão à vida, a resposta à grande questão da morte também se tornará clara. As pessoas dizem "a alma perdura do nascimento à morte", mas trata‑se apenas de outra história. Alguma vez observou uma alma? Pode explorar isto em qualquer momento, não apenas no momento da morte. Se conseguir compreender o que lhe acontece quando um momento termina e o seguinte começa, também compreenderá o que lhe vai acontecer no momento da morte. Se realmente conseguir observar‑se a si mesmo durante o tempo que demora a inspirar e expirar... terá compreendido tudo. A primeira coisa que aprendi ao observar a minha respiração foi que, independentemente de todos os livros que tinha lido e de todas as aulas que tinha frequentado na universidade, praticamente nada sabia sobre a minha mente, e que tinha muito pouco controlo sobre ela.

Quando as pessoas fazem as grandes perguntas sobre a vida, geralmente não têm qualquer interesse em saber quando é que a sua respiração entra e quando é que a sua respiração sai. Querem antes saber coisas do tipo: o que 
acontece depois de morrermos?
Apesar de todos os meus esforços, não conseguia observar a realidade do ar a entrar e a sair das minhas narinas durante mais de dez segundos, momento em que a minha mente começava a divagar. Durante anos, vivi convencido de que era o dono da minha vida e o CEO da minha própria marca pessoal - afinal, mal era o seu porteiro. Foi‑me pedido que me posicionasse à porta do meu corpo - as minhas narinas - e simplesmente observasse tudo o que entrasse e saísse. Ao fim de alguns momentos, tinha perdido a concentração e abandonado o meu posto. Foi uma experiência transformadora. À medida que o curso foi avançando, os alunos aprenderam a observar não só a sua respiração mas também as sensações no seu corpo. Não uma sensação especial de felicidade e êxtase, e sim as sensações mais mundanas e vulgares: calor, pressão, dor e assim por diante.

A técnica de Vipassana tem por base a ideia de que o fluxo mental está muito ligado às sensações físicas. Entre mim e o mundo há sempre sensações físicas. Nunca reajo aos acontecimentos do mundo externo; reajo sempre às sensações no meu próprio corpo. Quando a sensação é desagradável, reajo com aversão. Quando a sensação é agradável, reajo com o anseio por mais. Mesmo quando pensamos que reagimos ao que outra pessoa fez, ao último tweet do presidente Trump ou a uma memória de infância longínqua, a verdade é que reagimos sempre às nossas sensações físicas imediatas. Se nos sentimos indignados por alguém ter insultado a nossa nação ou o nosso deus, o que torna o insulto insuportável é a sensação de ardor que isso me causa na boca do estômago e a faixa de dor que envolve o meu coração. A nossa nação nada sente, mas o nosso corpo sente dor. Quer saber o que é a ira? Bom, observe as sensações que surgem e atravessam o seu corpo quando está zangado. Eu tinha 24 anos quando fiz este retiro, e já tinha sentido zanga, provavelmente, dez mil vezes antes, mas nunca me tinha dado ao trabalho de realmente observar as sensações que provoca em mim. Sempre que tinha sentido zanga, tinha‑me concentrado no objeto da minha ira - algo que alguém fez ou disse -, e não na realidade sensorial da raiva. Penso que aprendi mais sobre mim e sobre os seres humanos em geral ao observar as minhas sensações naqueles dez dias do que aprendi na vida inteira até àquele ponto. E, para o fazer, não tive de aceitar qualquer história, teoria ou mitologia. Bastou‑me observar a realidade como ela é. A coisa mais importante que compreendi foi que, quando quero algo e isso não acontece, a minha mente reage a isso produzindo sofrimento.

O sofrimento não é uma condição objetiva do mundo exterior. Trata‑se de uma reação mental produzida pela minha própria mente. Aprender isto é o primeiro passo para parar de gerar mais sofrimento. Desde aquele primeiro curso em 2000, comecei a meditar duas horas por dia, e todos os anos participo num retiro de meditação de um mês ou dois. Não é uma fuga à realidade. É retomar o contacto com a realidade. Pelo menos durante duas horas por dia, observo a realidade tal como ela é, ao passo que nas restantes 22 horas me deixo levar por e‑mails, tweets e vídeos com cães fofinhos. Sem a concentração e a lucidez que obtenho com esta prática, não teria conseguido escrever Sapiens ou Homo Deus. Pelo menos no que me diz respeito, a meditação nunca colidiu com a investigação científica. Na verdade, foi mais uma ferramenta valiosa no estojo de ferramentas científicas, especialmente quando se procura compreender a mente humana.

Escavar dos dois lados

A ciência tem dificuldade em decifrar os mistérios da mente sobretudo porque lhe faltam ferramentas eficientes. Muitas pessoas, incluindo muitos cientistas, tendem a confundir a mente com o cérebro, mas são duas coisas muito diferentes. O cérebro é uma rede material de neurónios, sinapses e bioquímicos. A mente é um fluxo de experiências subjetivas, tais como dor, prazer, ira e amor. Os biólogos partem do princípio de que o cérebro, através de um qualquer processo, cria a mente, e de que as reações bioquímicas, através de um qualquer processo, criam experiências como dor e amor. No entanto, até agora, não temos absolutamente explicação nenhuma sobre como a mente emerge do cérebro. Como é que, quando milhares de milhões de neurónios disparam sinais elétricos num determinado padrão, sinto dor e, quando os disparam num padrão diferente, sinto amor? Não fazemos ideia. Assim, mesmo que a mente surja do cérebro, pelo menos nesta altura estudar a mente é uma tarefa distinta de estudar o cérebro.

A investigação cerebral está a fazer enormes progressos graças à ajuda dos microscópios, da imagiologia e de computadores de alto desempenho. Mas não conseguimos ver a mente ao microscópio nem numa máquina de tomografia. Estes aparelhos permitem‑nos detetar atividades bioquímicas e elétricas no cérebro, mas não nos dão acesso às experiências subjetivas associadas a essas atividades. Em 2018, a única mente a que tenho acesso é a minha. Se quero saber o que vivenciam os outros seres sencientes, só tenho ao meu dispor relatos em segunda mão, que naturalmente acarretam várias distorções e limitações. Podemos, sem dúvida, reunir muitos relatos em segunda mão de outras pessoas e usar estatísticas para identificar padrões recorrentes. Esses métodos têm permitido aos psicólogos e aos investigadores cerebrais não só compreender melhor a mente mas também melhorar e até salvar a vida de milhões de seres humanos. Contudo, é difícil ir para lá de um certo ponto recorrendo apenas a relatos em segunda mão. Nas ciências, quando investigamos um dado fenómeno, é sempre preferível observá‑lo diretamente. Os antropólogos, por exemplo, recorrem muito a fontes secundárias, mas, se querem realmente conhecer a cultura de Samoa, mais tarde ou mais cedo têm de fazer as malas e visitar o país. Claro que visitar não basta. Um blogue escrito por um turista em viagem por Samoa não pode ser considerado um estudo antropológico científico, porque a maioria dos turistas não tem as ferramentas e a formação adequadas.

O sofrimento não é uma condição objetiva do mundo exterior. Trata‑se de uma reação mental produzida pela minha própria mente. Aprender isto é o primeiro passo para 
parar de gerar mais sofrimento
As suas observações são demasiado desordenadas e tendenciosas. Para nos tornarmos antropólogos rigorosos, temos de aprender a observar as culturas humanas de uma forma metódica e objetiva, sem quaisquer preconceitos. É isso que se estuda no departamento de antropologia, e foi isso que permitiu aos antropólogos desempenharem um papel tão decisivo no colmatar das fendas entre várias culturas. O estudo científico da mente raramente segue este modelo antropológico. Enquanto os antropólogos relatam amiúde as suas visitas a ilhas distantes e a países desconhecidos, os estudiosos da consciência raramente levam a cabo viagens pessoais ao reino da mente. Pois a única mente que posso observar de forma direta é a minha, e por muito difícil que seja observar a cultura samoana sem viés nem preconceito, é ainda mais difícil observar a minha própria mente de modo objetivo. Depois de mais de um século de trabalho árduo, hoje os antropólogos têm ao seu dispor procedimentos robustos para fazer observações objetivas. Já no que respeita aos estudiosos da mente, estes desenvolveram muitas ferramentas para coligir e analisar relatos em segunda mão, e quanto à observação das nossas próprias mentes ainda mal começámos a explorar. Não havendo métodos modernos para a observação direta da mente, podemos tentar usar algumas das ferramentas desenvolvidas por culturas pré‑modernas. Muitas culturas antigas dedicaram grande atenção ao estudo da mente, e elas não só recorriam a relatos em segunda mão como também treinavam as pessoas a observar a sua própria mente de forma sistemática. Os métodos que desenvolveram estão agrupados sob o termo genérico "meditação".

Hoje, este termo é muitas vezes associado à religião ou ao misticismo, mas, por definição, a meditação consiste em qualquer método que permita ao próprio observar a sua mente. De facto, muitas religiões fizeram um grande uso de várias técnicas de meditação, mas isto não significa que a meditação seja necessariamente religiosa. Muitas religiões também fizeram um grande uso de livros, mas isso não significa que usar livros seja uma prática religiosa. Ao longo dos milénios, os seres humanos desenvolveram centenas de técnicas de meditação, que diferem entre si nos seus princípios e na sua eficácia. Pessoalmente, experimentei apenas uma técnica - Vipassana -, pelo que é a única acerca da qual posso falar com alguma autoridade. Tal como muitas outras técnicas de meditação, diz ‑se que a Vipassana foi descoberta na antiga Índia por Buda. Ao longo dos séculos, atribuíram ‑se a Buda várias teorias e histórias, muitas vezes sem qualquer prova. Mas, para meditarmos, não temos de acre‑ ditar em nenhuma delas. O professor com quem aprendi Vipassana, Goenka, era um mestre muito pragmático. Dizia repetidamente aos alunos que, quando observassem a mente, pusessem de lado todas as descrições, todos os dogmas religiosos e todas as conjeturas filosóficas em segunda mão e se concentrassem na sua própria experiência e na realidade com que eles mesmos se deparassem. Todos os dias vários alunos iam até aos seus aposentos em busca de orientação, fazendo perguntas. À entrada do seu quarto havia um letreiro que dizia: "Por favor, evite as discussões teóricas e filosóficas e faça apenas perguntas sobre questões relacionadas com a sua prática concreta." A prática concreta consiste em observar as sensações corporais e as reações mentais às sensações de uma forma metódica, contínua e objetiva, revelando assim os padrões básicos da mente. Muitas vezes, as pessoas transformam a meditação numa busca por experiências de plenitude e êxtase. Porém, na verdade, a consciência é o maior mistério do universo, e os sentimentos mundanos de calor e comichão são tão misteriosos como sentimentos de arrebatamento e união cósmica.

Aos praticantes de meditação Vipassana aconselha‑se que não embarquem numa demanda por experiências especiais, concentrando‑se antes na compreensão da realidade da sua mente, seja esta qual for. Nos últimos anos, os estudiosos tanto da mente quanto do cérebro têm mostrado cada vez mais interesse nas técnicas de meditação, mas, até agora, a maioria dos investigadores tem usado esta ferramenta de forma indireta. O cientista típico não costuma praticar meditação. Em vez disso, convida meditadores experientes a irem ao seu laboratório, cobre‑lhes a cabeça de elétrodos, pede‑lhes que meditem e observa a atividade cerebral que daí resulta. Isso pode mostrar‑nos muitas coisas interessantes sobre o cérebro, mas se o objetivo é compreender a mente, então, estamos a deixar de fora algumas das conclusões mais importantes. É como alguém tentar compreender a estrutura da matéria observando uma pedra à lupa. Vamos ter com essa pessoa, entregamos lhe um microscópio e dizemos: "Experimenta isto. Vais ver muito melhor." Essa pessoa pega no microscópio, observa‑o à lupa e analisa cuidadosamente a matéria de que é feito o microscópio...

A consciência é o maior mistério do universo, e os sentimentos mundanos de calor e comichão são tão misteriosos 
como sentimentos de arrebatamento 
e união cósmica
A meditação é uma ferramenta para se observar a mente de forma direta. Não aproveitamos todo o seu potencial se, em vez de meditarmos, medirmos a atividade cerebral de outro meditador. Não estou, de todo, a sugerir que se abandonem as atuais ferramentas e práticas de investigação cerebral. A meditação não as substitui, mas pode complementá‑las. É um pouco como engenheiros a escavarem um túnel de ambos os lados de uma enorme montanha. Porquê escavar apenas de um só lado? O melhor é escavar de ambos os lados ao mesmo tempo. Se o cérebro e a mente forem, de facto, um só, os dois túneis acabarão por se encontrar. E se o cérebro e a mente não forem unos? Algumas universidades e laboratórios já começaram a usar a meditação como ferramenta de investigação e não como um mero objeto de estudo do cérebro. Porém, este processo ainda está a dar os primeiros passos, em parte porque requer um enorme investimento por parte dos investigadores. A meditação levada a sério exige uma disciplina tremenda. Se tentarmos observar objetivamente as nossas emoções, a primeira coisa em que reparamos é no quão indisciplinada e impaciente é a nossa mente.

Mesmo que nos concentremos na observação de uma qualquer sensação relativamente isolada, como o ar a entrar e a sair das nossas narinas, a nossa mente só costuma conseguir fazê‑lo durante uns poucos segundos antes de perder a concentração e se deixar levar por pensamentos divagantes, memórias e sonhos. Quando um microscópio perde a focagem, basta‑nos ajustar um pouco o regulador. Se o regulador estiver partido, chamamos um técnico para o reparar. Mas quando a mente perde a concentração, não conseguimos repô‑la assim tão facilmente. Em geral, é preciso muito treino para serenar e concentrar a mente para que ela comece a observar‑se a si mesma metódica e objetivamente. Talvez no futuro possamos tomar um comprimido e atingir essa concentração de forma instantânea. Porém, uma vez que o intuito da meditação é explorar a mente e não apenas a observação concentrada, um atalho desse tipo pode revelar‑se contraproducente. O comprimido pode deixar‑nos muito alerta e concentrados, mas ao mesmo tempo também pode impedir‑nos de explorar todo o espectro da nossa mente. Afinal, conseguimos concentrar a nossa mente ao ver um bom thriller na televisão - mas a mente está tão concentrada no filme que não é capaz de observar a sua própria dinâmica. Contudo, mesmo que não consigamos recorrer a essas ferramentas tecnológicas, não devemos desistir. Devemos olhar para os antropólogos, os zoólogos e os astronautas em busca de inspiração.

É preciso muito treino para serenar e concentrar a mente para que ela comece a observar‑se a si mesma metódica e objetivamente. Talvez no futuro possamos tomar um 
comprimido e atingir essa concentração 
de forma instantânea
Os antropólogos e os zoólogos passam anos em ilhas distantes, expostos a uma série de enfermidades e perigos. Os astronautas dedicam vários anos a regimes de treino difíceis, preparando‑se para as suas arriscadas excursões no espaço. Se estamos dispostos a fazer esses esforços para compreender culturas estrangeiras, espécies desconhecidas e planetas distantes, pode valer a pena esforçarmo‑nos na mesma medida para compreendermos a nossa própria mente. E é melhor compreendermos as nossas mentes antes que os algoritmos as compreendam por nós. A auto‑observação nunca foi uma coisa fácil, mas pode tornar‑se mais difícil com o passar do tempo. À medida que a história se desenrolava, os humanos criaram mais e mais histórias complicadas sobre eles mesmos, o que fez que se tornasse muito mais difícil saber quem realmente somos. Estas histórias existiam para unir grandes números de pessoas, para acumular poder e preservar a harmonia social. Eram fundamentais para que se pudessem alimentar milhares de milhões de pessoas com fome, e saber que essas pessoas não iam começar a matar‑se umas às outras de um momento para o outro. Quando as pessoas tentaram observar‑se a si próprias, aquilo que geralmente descobriam eram estas histórias prefabricadas. Uma exploração sem limites era demasiado perigosa. Era uma ameaça à ordem social. Com o desenvolvimento da tecnologia, ocorreram duas coisas. Primeiro, e à medida que as facas de sílex se transformaram em mísseis nucleares, tornou‑se mais perigoso desestabilizar a ordem social. Depois, e à medida que as pinturas rupestres se transformaram em emissões de televisão, tornou‑se mais fácil iludir as pessoas. No futuro próximo, os algoritmos poderão finalizar este processo, tornando praticamente impossível as pessoas conseguirem observar a realidade sobre si mesmas. Serão os algoritmos a decidir por nós quem nós somos e o que deveremos saber acerca de nós mesmos. Durante mais alguns anos ou décadas, ainda teremos escolha.

Se fizermos o esforço, ainda conseguimos investigar quem realmente somos. Mas se queremos aproveitar esta oportunidade, o melhor é fazê‑lo já.
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Fonte:  https://www.dn.pt/edicao-do-dia/19-ago-2018/interior/yuval-noah-harari-quando-fores-grande-talvez-nao-tenhas-profissao-9681932.html?utm_term=O+que+fazer+com+a+extrema-direita%3A+ouvir+ou+silenciar%3F&utm_campaign=Editorial&utm_source=e-goi&utm_medium=email

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