terça-feira, 16 de julho de 2019

João Gilberto:'Não sou um gênio e nem tenho voz privilegiada, é necessário trabalhar duro pelo produto final'

Em ensaio no Canecão, o sempre exigente João Gilberto queixava-se do áudio e cobrava retorno, em 1979

Uma longa entrevista com


O baiano João Gilberto tinha aversão por entrevistas. Ao longo de sua carreira, poucos jornalistas conseguiram se sentar com o pai da bossa nova para ouvi-lo responder a perguntas. A conversa que o Blog do Acervo reproduz, abaixo, é um desses momentos raros em que o cantor e compositor, morto no último sábado, aos 88 anos, aceitou dar uma entrevista, publicada na edição do GLOBO de 31 de outubro de 1979. Na ocasião, João Gilberto estava de volta ao Brasil depois de longos anos morando em Nova York. Ele não fazia um show no Rio desde 1962 e tinha uma série de apresentações marcadas no Canecão, tradicional casa de shows carioca, fechada desde 2010 (os shows foram posteriormente cancelados devido a "problemas técnicos" que só João encontrava). Quando o cantor se encontrou com o repórter Carlos Alberto Silva, após um ensaio no próprio Canecão, o músico estava disposto a falar. Explicou a razão de passar tanto tempo nos Estados Unidos, desabafou sobre a fama de seu temperamento difícil e discorreu apaixonadamente sobre uma partida de pingue-pongue com o pianista americano Chick Coreaeia a entrevista, abaixo, precedida pela introdução publicada na época.

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"Eu vi, sim. Da Janela do meu quarto. Um soldado de guarda, mosquetão e tudo, ali, no Forte de Copacabana. De repente, à luz daquela tarde ensolarada de quinta-feira, o soldado começou a dançar, gingando o corpo e sapateando. Juro que era samba. Então acreditei de vez; eu estava no Rio de Janeiro. No Brasil, afinal.

João Gilberto está, pois, no Rio, para uma série de apresentações no Canecão, sem datas definidas, ainda numa temporada que poderá ser prorrogada, dependendo da resposta do público e/ou da vontade do artista, e quanto a este último item é difícil fazer previsões. Quando ele chega — paletó preto surrado, as calças de bainhas puídas, segurando um violão encaixotado — é difícil crer tratar-se do mito João Gilberto. Mais parece um funcionário público de meia-idade (ele tem 48 anos), um tanto calvo, muito tímido e educado.
João Gilberto em apresentação no Parque do Ibirapuera, em São Paulo

Sentado num caixote, João Gilberto ensaia no Canecão. O jeitão, assim introvertido, é uma nota destoante no concerto de luzes que compõe o palco. Vê-se que ele não está à vontade, que está fora do seu elemento natural: os ambientes intimistas, à meia-luz. Assusta-o até o agrado das pessoas ao redor, uns a enxugarem-lhe o suor, outros a oferecerem-lhe um novo assento etc. O que ele quer é tocar e cantar. É o faz, afinal, quase murmurando as sílabas, a voz e o violão harmonizados.
Mas algo não andava bem:
— Quero retorno, Carlos. Aqui, nó palco.
— João, é apenas um ensaio... No dia do show você terá retorno.
— Pra mim não é apenas um ensaio. E quero o meu retorno aqui e agora. Isso. Assim. Agora tudo bem.
E então ele canta fagueiro: “Triste é viver na solidão...”; “”Canta, Brasil”; ”Rosa morena”. E para de novo - algo com o som do violão (metálico demais). Ele insiste, tenta uma, dez vezes mais, versos e acordes. E levanta-se, diz:
— Ah, Carlos... Nunca mais aquele som...
Encosta o violão, adia o ensaio — está pronto para a entrevista. Assim é João Gilberto.

Por que você ficou tanto tempo fora do Brasil?
Trabalhando, procurando fazer o melhor. Talvez preparando este momento, voltar. Talvez para não desperdiçar os outros momentos de então. Tudo tem seu tempo certo, e não há nisso nada de místico. É uma coisa prática. Eu estava lá, nos Estados Unidos, mas sempre estive aqui, no Brasil, em coração e pensamento. No momento em que senti que estava tudo bem por lá, que a música brasileira era um fato real, definitivo, então achei que podia voltar. E aqui estou. Porque agora é a hora; antes, voltar era um luxo a que eu não tinha direito. Eles, os americanos, sempre apoiaram meu trabalho. Acreditaram, reconheceram. Investiram nele. Divulgar a música brasileira foi o grande motivo. Então, o aqui era lá. Por isso fiquei.

Como você vê o Brasil, hoje?
Claro que me interesso por tudo, a abertura, os novos partidos, isso tudo. Quero que a liberdade seja um estado de fato e de direito. Sinto o ar um pouquinho mais leve, agora. Sei que estamos no final de um processo político e social e no começo de algo ainda a ser definido e construído. O quê, não sei. Mas confio. Principalmente na música brasileira, a autêntica, que vejo ressurgir em nossa terra, embora - e isto é uma triste verdade - esteja acontecendo um tanto o quanto tardiamente, quando lá fora, nos Estados Unidos, na Europa, no Japão, ela é uma realidade, tocada e cantada por todos, com amor e respeito. Influência estrangeira, aqui? Isso passa, nossa música é imortal, inconfundível, inimitável, insubstituível. Mesmo que se compre horários nas rádios (como se faz). No final, o Brasil vence.

Você, então, voltou para ficar?
Eu sou daqui. Jamais ”fui embora”. A responsabilidade de ficar ou não fica por conta do coração. Os planos são de realizar esta temporada aqui, voltar aos Estados Unidos para terminar o disco que estou fazendo lá e que só tem duas músicas prontas, e então voltar para aqui de novo, pensando em ficar de vez. Mas vamos ver como fica. De repente... Por ora, quero ouvir muito, conhecer e amar gente como Cartola e Nelson Cavaquinho, gente com quem jamais cantei ou toquei. E não porque não quisesse, mas porque fazia o meu trabalho, sem essa de me esconder do sucesso e do Brasil, mas por querer construir o meu próprio caminho. Voltar e ficar de vez no Brasil é um sonho meu, antigo, eu confesso. Aquela saudade, aquela ideia fixa... sei lá. Ficar só um pouco ou para toda a vida não importa. Só sei que estou aqui, amando tudo que vejo, me emocionando com tudo e com todos.

A página da entrevista publicada pelo GLOBO em outubro de 1979
Até com os jornalistas?
- Eu?! Ora, eu amo vocês! Respeito por demais o seu trabalho. Tanto que gostaria de ser assim como vocês, desembaraçados e fluentes. O mito João Gilberto me assusta, me deixa com medo de falar das coisas e pessoas que amo. Com medo de feri-las e assustá-las. Queria ser assim como vocês, da imprensa: igual ao trabalho que produzem. Isso, aliás, é um grande trauma meu: não ser como é a minha música. Eu tento, mas não consigo.

E o folclore a seu respeito, sobre ser você uma pessoa difícil? É verdade aquela história de que, um dia, você se negou a falar com as pessoas, a não ser pelo telefone e, assim mesmo, pelo código Morse?
Não foi nada disso. É que tive um sério problema com a voz. Pensei, até, que ficaria mudo para sempre. E então tive que fazer um tratamento delicadíssimo. Por isso, durante algum tempo, tive de poupar a minha voz e, assim, falava ao telefone com os amigos usando o Morse - e somente para as palavras que normalmente mais se repetem numa conversação: sim, não etc. Aliás, fico muito triste quando inventam histórias assim a meu respeito. Como aquela de que sou uma pessoa impossível de se trabalhar, um temperamental perfeccionista — um “chato”. A verdade é que gosto multo do meu trabalho. É a minha opção de vida, minha aproximação pessoal da felicidade. Interessa-me fazer sempre o melhor trabalho, dividir o melhor possível os acordes, a emissão conjunta e uníssona da voz e do violão. Essa preocupação, que uns chamam de exagero e preciosismo pedante, nada mais é do que amor pelo que faço. A certeza de que não sou perfeito ou um gênio, de não ter essa voz privilegiada que outros dizem — e de que é necessário trabalhar a sério e duro pelo produto final, este sim, perfeito: a música brasileira. Toco e canto “de “ouvido”’ e só trabalho com grandes músicos e arranjadores. Tudo sempre deu muito certo. O amor sempre aconteceu em meu trabalho. O mais é folclore, mesmo.

Esse tempo todo lá fora: quais foram seus grandes momentos?
Meu trabalho foi sempre com a música brasileira. Com o samba, nossa música infinita. Aquilo que as pessoas chamam de Bossa Nova e que eu chamo de samba, de música brasileira — ampla, rica, infinita, sobre a qual o artista pode criar o seu fraseado pessoal. Fazer essa música lá fora é fácil: eles nos respeitam. Vêm e vão gerações, e o amor e a admiração aumentam pela nossa música. Muito mais do que aqui, no Brasil. Esta é a verdade: o respeito maior é deles e não nosso. O Brasil ainda não se apercebeu da importância que lhe é dada lá fora, em termos de música. E por isso que eu não penso em Bossa Nova. Penso em samba. Música brasileira. E é por isso que fiquei por lá, para onde fui, eu me lembro, quase contra a minha vontade. Estava na Argentina, quando me convidaram. Eu não queria ir. Achava que não era a hora, ainda: 1962. Veio então o Jorge Amado e me disse: ”Vá, João, sem medo, que a hora é esta, sim senhor". Eu fui, e foi aquela coisa toda: muita vontade de mostrar o meu trabalho, de qualquer jeito, nem sempre bem apresentado. Mas o pessoal de lá entendeu, reconheceu o esforço - e fui ficando, eu e os demais brasileiros que lá estavam, como eu, mostrando a nossa música. E todo mundo de lá - músicos, cantores, produtores, o povo americano - reconheceu o valor da música brasileira. Meu dia a dia por lá? Todo dedicado â música, tocando para mim e para os outros; no estúdio gravando. Saindo muito pouco de casa, raras vezes, sempre ao encontro de amigos. Vivendo a minha música. Mas tive grandes momentos, por certo.

João Gilberto se diverte com lembranças da carreira em entrevista
Quais?
Uma apresentação na Alemanha, inaugurando uma TV a cores. Na ocasião, ainda estava com aquele problema na voz. Contrato assinado, pus mãos à obra, exercitando-me todos os dias, soprando velas à distância, repetindo o som do “L”, essas coisas. E deu tudo certo, fui lá e dei o meu recado. Foi uma grande lição para mim: até hoje, pela manhã e sempre que posso, estou sempre treinando, voz e violão. Quero estar sempre afiado e pronto. Nos Estados Unidos, posso citar, além do concerto no Carneggie Hall, em 1962, um outro que fiz, em 1977, no Bottom Line —um lugar dito sofisticado mas que, na verdade, pareceu-me um reduto de amantes da música brasileira. Foi ali que Jacqueline, a viúva Onassis, abandonou seu ”staff” e veio a mim, cumprimentar-me e à música brasileira, da qual se disse admiradora atenta e antiga.

E seus discos, nos Estados Unidos?
Gravo muito pouco, e, embora as companhias exijam dois discos por ano, quase nunca faço mais que um. Mas, quando gravo, o faço rápido, com tudo já montado na cabeça, ensaiado e decorado. E só ir ao estúdio. Pode parecer um comportamento estranho, esse, mas é assim que sou, um baiano que está no estrangeiro há quase 20 anos e ainda não perdeu o sotaque, nem é capaz de manter uma longa conversa em inglês.

Que nomes você destacaria na música brasileira e na americana?
Do Brasil prefiro não citar nomes, um que seja, sob pena de cometer injustiça. Ainda mais que não sou muito a ligar nomes à música. Não raro eu gravo músicas sem nem lembrar o nome e o compositor, como esta “Canta, Brasil”, que um dia, ouvindo-a, gostei e gravei. Só depois é que vim a saber que era do David Nasser e que tem mais de 30 anos. Mas dos Estados Unidos posso citar alguns, embora, por certo, esteja esquecendo vários grandes artistas. Herbie Hancock, Bill Evans, Quincy Jones - eis ai bons nomes. E Chick Corea, entre os chamados "novos". Mas sobre ele eu gostaria de falar um pouco mais.

Algum motivo especial?
É claro: uma partida de pingue-pongue. Eu e ele. Cara a cara. Dei-lhe uma tremenda surra!

João Gilberto descansa em quarto de hotel, após apresentação realizada em Buenos Aires, na Argentina, em outubro de 1962

(Então, João Gilberto se transforma, levanta-se da cadeira e começa a narrar, cheio de gestos, a "grande façanha” no pingue-pongue, sua paixão de homem comum. É um menino contando sobre suas aventuras).

Foi na casa de Stan Getz. Flora Purim e Airto Moreira são testemunhas. Eu estava para o que desse e viesse. Tinha uma cisma pessoal com aquele garoto, um dia, achara “chato” e pretensioso, desde que certa vez ele, todo fleumático, não afastou a cadeira para que eu passasse... Aquela discriminação que certos Jovens têm para com os “coroas caretas”. Jurei dar-lhe o troco. Fui ao Airto e perguntei-lhe se o Chick jogava pingue-pongue. E o Airto: “É uma fera. O verdadeiro rei da calma”. E eu: "Deixa comigo". E um dia peguei-o. No começo ele “chiou” com o meu saque, o qual, não é para me gabar, é muito bom: forte, violento e cheio de efeito. Só que um pouco fora da lei, multo afastado da mesa e da regra, também. Mas o Chick, a autoconfiança em pessoa, deixou como estava. E se deu mal; lhe dei uma -tremenda surra e me senti vingado. Hoje, somos bons amigos.

E futebol, você gosta? Qual o seu time? E a seleção brasileira?
Gosto muito, desde garoto. E sou Vasco da Gama, doente. A seleção é que não me agrada. Não gosto do Coutinho. Não o queria dirigindo a seleção. Lembram, na Argentina? O Brasil não é aquilo, jogando preso, sem alegria. Sei lá, mas sinto que há alguma coisa de proibido na seleção, com o Coutinho a dirigindo. Talvez a alegria, a criatividade. Muita fórmula, muita estatística. E estatística "furada", tentando imitar os modelos estrangeiros. Só que lá fora estatísticas são de aproveitamento real e não de hipóteses. Lá, quando o atacante está de frente para o gol ele bate sempre para dentro - o goleiro que pegue ou largue. Aqui, agora, os atacantes vêm e "buff!" (e ele se levanta, novamente), chutam longe e o locutor ainda grita que "passa rente à trave". Está errado. Sou a favor de que chamem grandes jogadores para treinar a nossa seleção. Pelé, Gerson, Tostão - estes, sim, devolveriam a alegria ao nosso futebol. Coutinho nunca jogou futebol, usa o time como um aficcionado de xadrez, movendo as peças... Uma brincadeira de adultos, exclusivamente para elites. Ora, não é nada disso! A vocês, da imprensa, peço um favor: não permitam que Coutinho permaneça na seleção!

Sinatra no Brasil, cantando no Maracanã, O que você acha?
Não sei... O som... Sei lá. Eu é que não iria. Quem sou eu? Não tenho tanto público no Brasil...

Ao despedir-se, ele falou...
Por favor, não me abracem tanto, Não que eu não goste, mas é que fica parecendo aeroporto, as pessoas despedindo-se de mim e me deixando sozinho. Não, fiquem por aqui, mesmo. O ensaio continua. Não me deixem, amigos, voltem sempre. E me deem notícias do Jobim, que ainda não vi desde que voltei. E falem muito bem do João Donato. Vou gravar um disco ao lado dele, tornando realidade um sonho antigo. E vou fazê-lo o quanto antes, enquanto estamos os dois vivos e lúcidos.

Qual é a receita do sucesso para o artista brasileiro no exterior?
- Ser brasileiro, sempre. Basta isso.
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Fonte:  https://blogs.oglobo.globo.com/blog-do-acervo/post/nao-sou-um-genio-e-nem-tenho-voz-privilegiada-e-necessario-trabalhar-duro-pelo-produto-final-uma-longa-entrevista-com-joao-gilberto.html?utm_campaign=anexo&utm_source=anexo 

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