quarta-feira, 10 de julho de 2019

O liberalismo vai perdurar, mas precisa ser renovado

Martin Wolf*

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É uma obra em progresso, não um projeto utópico

Financial Times
 
"Há também a chamada ideia liberal, que sobreviveu ao seu propósito. Nossos parceiros ocidentais admitiram que alguns elementos da ideia liberal, como o multiculturalismo, já não são sustentáveis". Foi o que Vladimir Putin disse ao explicar que está do lado certo da História, em uma entrevista notável ao Financial Times.

Mas como Mark Twain poderia ter dito, as notícias sobre a morte do liberalismo foram um tanto exageradas; Sociedades baseadas em um cerne de ideias liberais provaram ser as mais bem sucedidas da história. É preciso defendê-las contra seus inimigos.
O que é "liberalismo"?

Para responder a essa pergunta, eu primeiro pedirei aos leitores americanos que esqueçam o que liberalismo significa para eles, ou seja, o oposto de conservadorismo. Esse é um significado unicamente americano, que faz sentido em um contexto singularmente americano: imigrantes que fundaram seu novo Estado com base em um conjunto de ideias liberais —liberais no sentido europeu do termo, de oposição a ideias autoritárias.

Quando Thomas Jefferson escreveu sobre "vida, liberdade e a busca da felicidade", na declaração de independência dos Estados Unidos, ele tomou por base um dos grandes pensadores liberais, John Locke, mas substituiu "propriedade" por "felicidade".
A palavra que serve de raiz a "liberal" é "liber", o adjetivo latino que denota uma pessoa livre, em contraposição a um escravo. O liberalismo não é uma filosofia precisa, mas sim uma atitude.

Todos os liberais compartilham da crença na agência humana individual. Confiam na capacidade dos seres humanos para decidir coisas por si. Essa crença tem implicações radicais. Implica o direito de fazer planos pessoais, expressar opiniões pessoais, e participar da vida pública. Essas atitudes foram realizadas no sistema a que chamamos de "democracia liberal".
 
Os liberais compartilham da crença em que agência depende de possuir direitos econômicos e políticos. Instituições são necessárias para proteger esses direitos —acima de tudo, sistemas legais independentes.

Mas a agência também depende dos mercados para coordenar agentes econômicos independentes, da imprensa livre para permitir a difusão de opiniões, e dos partidos políticos para organizar a política.
Por trás dessas instituições, há valores e comportamentos: a distinção entre ganho privado e propósito público necessária para conter a corrupção; um senso de cidadania; e uma crença na tolerância.
O liberalismo, assim, requer um balanço entre bens conflitantes. Alguns liberais acreditam mais em liberdade econômica, e com isso se opõem a um Estado ativo. Outros acreditam mais na igualdade entre os cidadãos, e temem a plutocracia. Esses dois lados podem ser liberais, em uma definição ampla. Mas Putin é inimigo do liberalismo.

A tradição da qual ele provém é a da autocracia czarista. Como argumenta Anders Aslund em "Russia’s Crony Capitalism" [capitalismo de compadres na Rússia], Putin "meticulosamente aniquilou as instituições incipientes do capitalismo, democracia e Estado de Direito que emergiram na Rússia na década de 1990.

Em lugar delas, ele formou uma forte vertical do poder controlada por seus compadres, que se opõem ao Estado de Direito e consideram que seus poderes ilimitados se sobrepõem aos do Estado".
Para medir o sucesso do liberalismo, combinamos o indicador de "voz e prestação de contas" do Banco Mundial ao "índice de liberdade econômica" da Heritage Foundation.

Liberdades econômicas e políticas tendem a andar de mãos dadas, em parte porque ambas dependem do Estado de Direito. O liberalismo, medido dessa forma, apresenta correlação com a prosperidade: sociedades liberais tendem a ser ricas, e sociedades ricas tendem a ser liberais.

Sob Putin, a Rússia se afastou do liberalismo. Em larga medida como resultado disso, a economia russa vai mal. Ainda que a renda per capita do país seja mais de 50% inferior à dos Estados Unidos, o crescimento médio da renda per capita russa entre 2009 e 2018 foi de apenas 1,8% ao ano. A convergência se desacelerou muito. Pouca gente espera que isso melhore.

As poses assumidas por Putin no cenário mundial são uma maneira de desviar a atenção do público russo, afastando seu olhar da corrupção do regime de seu fracasso em propiciar aos cidadãos uma vida melhor. Mesmo no caso da economia chinesa, mais bem sucedida, se pode especular que a virada do presidente Xi Jinping rumo a um maior controle pelo Estado e repressão política mais firme solapará o dinamismo.

Mas Putin está certo quanto a uma coisa: as democracias liberais encontraram dificuldades, especialmente quanto à capacidade de absorver imigrantes e administrar a desigualdade. As sociedades liberais precisam de valores e identidade compartilhados. Isso é perfeitamente compatível com a imigração e com diferenças culturais duradouras. Mas as duas coisas precisam ser administrados.

De outra forma, o descontentamento popular conduzirá ao poder homens que desprezam as normas da democracia liberal. O equilíbrio frágil existente desabaria, nesse caso.

Muito do que o presidente americano Donald Trump diz e faz indica seu desprezo por essas normas, especialmente a imprensa livre e o Judiciário independente. O risco, assim, é de que a democracia liberal se torne uma "democracia iliberal", que na verdade não é nem liberal e nem democrática.

No relatório "Freedom in the World 2019", a organização de fiscalização independente americana Freedom House reportou o 13º ano consecutivo de deterioração na saúde mundial da democracia. Vale apontar que esse declínio aconteceu nas democracias ocidentais e que os Estados Unidos —o mais influente sustentáculo dos valores democráticos - registraram a maior deterioração.

É um desdobramento preocupante, de fato. Ainda que o liberalismo seja, por larga margem, a abordagem mais bem sucedida, em muitas democracias liberais as pessoas, especialmente a elite, vêm ignorando o balanço que precisa ser encontrado entre o indivíduo e sociedade, o mundial e o nacional, e a liberdade e a responsabilidade.

O liberalismo não é um projeto utópico, e sim uma obra em perpétuo progresso. É uma abordagem quanto a vivermos juntos que começa pela primazia da agência humana. Mas esse é só o ponto de partida.
Fazer com que essa abordagem funcione requer adaptação e ajuste constantes.

Putin não faz ideia do que isso significa; ele é incapaz de conceber uma ordem social que não dependa da força e da fraude. Já nós sabemos melhor. Mas também precisamos fazer melhor. Muito melhor.

Financial Times, tradução de Paulo Migliacci
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* Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics. 
Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/martinwolf/2019/07/o-liberalismo-vai-perdurar-mas-precisa-ser-renovado.shtml 
 Imagem da Internet
 

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