sábado, 12 de outubro de 2019

Jaume Funes: “Educar um adolescente é dar-lhe autonomia e fazê-lo aprender a gerir riscos”

Jaume Funes, psicólogo espanhol especialista em adolescência e autor do livro "Ama-me quando menos mereço, porque é quando mais preciso".

Jaume Funes é psicólogo, educador e jornalista. Trabalha há mais de 40 anos com adolescentes e jovens, na área da educação. Não acredita em receitas para lidar com adolescentes, mas considera que pode ajudar pais e professores a saber como relacionarem-se com eles. Nos seus 40 anos de experiência, conheceu várias gerações, de A a Z, e descobriu que, além de quilos de paciência e uma dose equilibrada de autonomia, eles precisam sobretudo de amor, mesmo que 
nem sob tortura o admitam.
Entrevista de Catarina Pires

 

Ama-me quando menos mereço, porque é quando mais preciso. Ajude-nos a decifrar este título. Porque é que um adolescente merece menos e precisa mais?
Normalmente, ter um adolescente em casa significa ter uma vida ocupada. Dito de outra forma, ele ou ela está a afirmar-se, entrando em conflito com os seus adultos, questionando as ideias destes. Acabam por ser encantadoramente insuportáveis.

No meio de toda esta batalha, podemos ter a sensação de que eles já não precisam de nós ou que é melhor deixá-los sozinhos com as suas impertinências. Mas a verdade é que eles ainda precisam de nós, só que de maneira diferente.

Precisam de beijos, mas ai de nós se nos atrevermos a pensar em dar-lhes um. Precisam saber que estamos sempre lá, mas ai de nós se tentarmos intrometer-nos na sua vida. Eles precisam de sentir a segurança de saber que os amamos, mas não demonstram que precisam de nós.

Uma das primeiras coisas que recomenda é que os pais esqueçam os manuais de autoajuda. Porquê?
A educação de um adolescente é sempre presidida por uma palavra: “DEPENDE”. Não há receitas a aplicar. Sim, existem critérios educacionais a serem aplicados, mas não consigo escrever um livro dizendo o que fazer. O livro que escrevi é sobre como fazê-lo, sobre as respostas que criam problemas, sobre quais são as características inevitáveis dos adolescentes e quais são as dificuldades.

O amor, quando falamos de adolescentes, é saber estar ao seu lado, saber acompanhar um caminho que dará 
muitas voltas, parará, perder-se-á e voltará 
a encontrar-se.

Este seu livro é um guia. Seria bom que os adolescentes viessem com um manual de instruções?
Os rapazes e as raparigas adolescentes precisam de descobrir que os seus adultos, em casa ou na escola, olham para eles de maneira positiva, que não são apenas olhos que investigam possíveis problemas.

No meio do inesperado sucesso editorial deste livro, há alguns meses, escrevi um pequeno diário adolescente, que o resume (“Fiz-te sofrer… mas amaste-me”). Nele, um filho faz a sua mãe morder o anzol no Instagram e vá lá ler um texto com sua versão da adolescência.

É um “guia” no sentido de ajudar a não nos sentirmos perdidos, a gerir as perplexidades e a saber como ser-lhes úteis, lado a lado com eles.

O amor tem um efeito protetor? Como?
Em todas as etapas da infância, todas as crianças precisam de sentir, de maneira estável e intensa, que são importantes para alguém, que alguém se preocupa com elas, e que as suas vidas estão vinculadas a outras pessoas.

Em cada etapa, a experiência de sentir-se amado assume formas diferentes. Para alguns, os abraços são essenciais; para outros, trata-se de saber que não estão sozinhos, que há adultos que respondem. O amor, quando falamos de adolescentes, é saber estar ao seu lado, saber acompanhar um caminho que dará muitas voltas, parará, perder-se-á e voltará a encontrar-se.

A adolescência é um tempo de descobertas e experiências. Como equilibrar a importância de lhes dar liberdade com o medo de que algo de mal lhes aconteça (ou com a necessidade de prevenir problemas graves)?
Quando se tem filhos adolescentes, é inevitável ficar angustiado, pensar que eles podem destruir-se. Quando se trabalha com adolescentes, também é inevitável querer evitar que tenham problemas, tentar fazer prevenção. Mas confunde-se os riscos com os problemas, queremos impedi-los de fazer coisas para impedir que imprevistos aconteçam… e não pode ser.

Ser adolescente significa explorar, descobrir, experimentar (um dia um adolescente disse-me que era “um explorador reprimido”). A educação, a atenção dos adultos, deve ser no sentido de garantir que eles aprendam a proteger-se e saibam como gerir os riscos. A nossa obrigação não é criar controlos, mas dificultar algumas experiências e, principalmente, capacitá-los para aprenderem com as suas experiências.

Se nos lembrássemos da nossa adolescência, entenderíamos melhor os seus entusiasmos e as suas angústias, 
seríamos capazes de contextualizar as dificuldades.

Diz que a adolescência é uma invenção social. Em que sentido?
Pelo menos no sul da Europa, a adolescência “universal e obrigatória” só começou no fim dos anos 70 do século passado. Antes, apenas os filhos e filhas das classes altas é que podiam passar um tempo da sua vida a ler poemas, a contemplar as estrelas e a viver. A adolescência dos filhos dos trabalhadores era passada como aprendizes, a varrer uma oficina, na linha de montagem de uma fábrica ou assumindo as responsabilidades do lar.

Sempre existiu puberdade, mas dispor de quatro ou cinco anos de vida para ser adolescente é uma realidade com apenas quatro décadas. Isso só acontece quando o sistema produtivo já não precisa da força de trabalho de pessoas com 14 anos. O problema é que os adultos continuam a não perceber para que serve esta nova etapa evolutiva da vida.

Para lidar com adolescentes, e educá-los, é importante lembrarmo-nos da nossa própria adolescência ou é melhor esquecê-la?
Tendemos a esquecê-la, mas seria bom lembrá-la. Eu costumo lembrar aos pais e mães que também já foram adolescentes, que também fizeram muitos cabelos brancos aos seus pais, mas que agora são mães e pais razoáveis. Convido-os a acreditar que os seus filhos podem mudar e a não perder a esperança.

Se nos lembrássemos da nossa adolescência, entenderíamos melhor os seus entusiasmos e as suas angústias, seríamos capazes de contextualizar as dificuldades.

Exigimos muito do ponto de vista do sucesso académico ou social e muito pouco naquilo que implica permitir que assumam responsabilidade nas suas decisões e na sua vida.

Trabalha há 40 anos com adolescentes. Quais são as grandes diferenças e transformações a que tem vindo a assistir?
As várias adolescências foram e são especialmente adaptadas a uma sociedade que muda rapidamente. Portanto, têm sido continuamente diferentes. O âmago do seu mundo interior, das contradições e desafios a resolver, permanece mais ou menos o mesmo, mas as suas expressões, estilos de vida, influências e pressões sociais é que têm vindo a mudar muito. Daí que os sociólogos da juventude e os media falem em gerações (já esgotaram o alfabeto, já vão agora na “geração Z”).

Comecei a trabalhar com “bandos” de jovens num mundo em que eles já não podiam ir trabalhar, como tinha acontecido com os seus pais, e acabei a dar conselhos sobre como educar entre ecrãs. Pelo meio, vivi a geração de heroína, as “tribos” urbanas, a escolaridade obrigatória, as adolescências das novas famílias… Todos os dias tenho que pensar em novas maneiras de ser útil nas suas vidas.

 

Exigimos de mais dos adolescentes?
Exigimos muito do ponto de vista do sucesso académico ou social e muito pouco naquilo que implica permitir que assumam responsabilidade nas suas decisões e na sua vida. Grande pressão social e pouca autonomia. Não aceitamos que o bom adolescente seja aquele que toma decisões, erra e a quem ajudamos a fazer-se responsável.

Os rapazes têm que aprender mais com as raparigas (especialmente no que respeita a emoções e afetos) e elas têm que ser um pouco mais como eles (menos responsáveis, 
mais autónomos, mais “loucos”)

Devemos lidar de forma diferente com rapazes e raparigas ou isso deixou de ser uma questão?
As adolescências são muito diversas, não existe apenas uma. Além disso, as adolescências masculinas e femininas, em geral, têm diferenças importantes. Costumo dizer (e trabalhar para isso) que os rapazes têm que imitar uma parte da adolescência das raparigas (especialmente o que tem a ver com emoções e afetos) e que estas têm que ser um pouco mais como eles (menos responsáveis, mais autónomos, mais “loucos”). A igualdade teórica já foi assumida, a prática da igualdade nos seus relacionamentos não.

Nesse meio tempo, mistura-se a grande questão da descoberta e prática da sexualidade adolescente com as condicionantes externas, como as séries ou a pornografia, que não vivem da mesma forma e precisam de nossa atenção educacional diferenciada.

Diz que há três grandes razões para intervir nas vidas adolescentes. Quais são?
Defendo que é uma etapa educativa em que é preciso os pais continuarem a educar, mas de forma diferente. A vida deles não será a mesma se não criarmos oportunidades educacionais (é por isso que, por exemplo, tornámos a escolaridade universal e obrigatória). Eles não evoluem automaticamente.

Precisam de fazer experiências, mas devemos garantir que haja adultos ao seu lado dispostos a ajudá-los a aprender com suas experiências. Como têm que viver num mundo complexo e em mudança, devemos cuidar para que tenham capacidade de adaptação, de resiliência, para gerir as angústias e problemas que enfrentarão pelo caminho.

Qualquer bom castigo para um adolescente é sempre uma pena pesada para os seus adultos. Podemos proibi-lo de sair de casa no fim de semana, mas teremos que ficar a vigiá-lo 
(com provisões de diazepan).

O que é que é “normal” esperar de um adolescente e o que pode e deve fazer soar alarmes?
No livro, sugiro uma lista do que podemos e não podemos esperar de um adolescente. Não podemos esperar, por exemplo, que deixe de nos fazer oposição (viver com adolescentes e ter conflitos é inevitável). Mas também sugiro não confundir conflitos com problemas ou não etiquetar todas as suas angústias, mal estares e dificuldades como doenças mentais. Por isso, proponho aprender a conjugar verbos como ver, observar, ouvir, perguntar…

Os castigos não funcionam na adolescência? Qual é a melhor forma de educar criaturas que estão em fase de rutura e questionamento constante?
Qualquer bom castigo para um adolescente é sempre uma pena pesada para os seus adultos. Podemos proibi-lo de sair de casa no fim de semana, mas teremos que ficar a vigiá-lo (com provisões de diazepan).

Há uma longa lista de sugestões para saber quando e como responder, para tratar de aguentar uma certa pedagogia dos pactos. É preciso responder ao seu comportamento, mas nem sempre da mesma maneira nem de imediato. Pensar castigos pressupõe ter acumulado antes algumas toneladas de paciência.

É mais importante ouvir do que falar? E quando falamos, eles, mesmo que não pareça, estão a ouvir-nos? É mais importante o que fazemos (o exemplo que damos) do que o que dizemos?
Qualquer adulto que esteja perto de um adolescente é sempre um educador. Representamos modelos de mulheres e homens, cidadãos, comportamentos aceitáveis, valores, etc. Falar significa aproveitar diferentes momentos (raramente num lugar e horário programado) em situações imprevistas. Também significa ir deixando cair opiniões, dúvidas, perguntas para que descubram como pensamos.

Às vezes, levantam dúvidas e, mesmo que não seja no momento certo, hão de ligá-las a alguma possibilidade de resposta (no momento ou mais tarde). Mas não podemos explicar sem mais as nossas experiências (batalhões de adultos) ou distribuir conselhos. Voltaríamos aos verbos a conjugar que referi acima…

A escola secundária é um verdadeiro símbolo da distância entre os adolescentes e o mundo adulto. Uma parte das dificuldades tem a ver com uma crise do ensino, com a forma 
como se ensina e se aprende hoje.

“Conviver com adolescentes é como estar dentro de um duche escocês”. O que quer dizer com isto?
Não há meteorologista capaz de prever os seus estados emocionais, eles vivem numa espécie de panela de pressão emocional e, além disso, passam de um estado para outro em frações de segundos. 

Nós, adultos, ficamos desconcertados com o exagero das suas reações e não é fácil para nós acompanhar o ritmo das suas mudanças.

Quando pensamos que está tudo bem, surge uma discussão, quando ainda não nos recuperámos de um confronto, acalmam-se e dizem-nos que “não era caso para tanto”. Passamos de um calor de 40 graus para a imersão em zero graus… e já não temos a energia e flexibilidade deles.

As escolhas que fazem e decisões que tomam nestas idades podem ser decisivas para o resto da vida. Condicionar essas escolhas é uma tentação. Até que ponto podemos deixá-los decidir sozinhos?
Apesar do nosso pânico, na adolescência tudo é provisório, embora tudo possa ter o seu impacto. Salvo algumas experiências, por que passam apenas alguns e que devemos tentar impedir, a chave é saber esperar, descobrir o momento oportuno, garantindo que tem ao seu lado outros adultos em quem confia (um bom tutor na escola, um bom explicador, um bom treinador, um bom pediatra…).

A construção da identidade é particularmente desafiante na adolescência. Hoje é ainda mais complexo? Que questões é importante ter em conta?
Ser adolescente significa sentir a necessidade (afetiva, racional) de perceber quem se é e o que quer fazer com a vida. Muitos de seus comportamentos têm subjacente esse objetivo.

No livro, insisto que educar sobre identidade tem pelo menos três dimensões. Por um lado, eles devem descobrir que têm e devem ter identidades diferentes (evite que superem as suas dificuldades identificando-se apenas com uma bandeira, uma pátria, um dogma, um grupo).

Por outro lado, insisto em educá-los para que possam mudar as suas identidades sem se sentir mal (ancorar em vários lugares seguros, não enraizar num ponto imóvel).

Finalmente, é essencial que construam identidades com os outros, decidam o que querem ser juntos, não aceitem identidades para as quais alguém tenha de lhes conceder um cartão prévio de pertença.

 

Como estimular uma relação saudável e equilibrada com a escola?
A escola secundária é um verdadeiro símbolo da distância entre os adolescentes e o mundo adulto. 

Uma parte das dificuldades tem a ver com uma crise do ensino, com a forma como se ensina e se aprende hoje na sociedade da informação (por exemplo, o papel do adulto já não é apenas transmitir, mas ajudar a integrar; não faz sentido dividir as aprendizagens por temas em vez de áreas do conhecimento).

A outra parte tem que ver com metodologias e técnicas didáticas desadequadas para a adolescência (por exemplo, ter que memorizar em vez de investigar). Os desafios são, por exemplo, estimular o desejo de saber, manter a vontade de fazer perguntas, não se contentar com qualquer resposta…

Por fim, a grande dificuldade é que o adolescente percebe que a escola não está interessada no seu mundo, que este não tem espaço na sala de aula, poucas vezes os professores se tornam próximos e cúmplices, atentos aos adolescentes que têm à frente e aos processos por que passam.

Nem a escola pode esquecer que a última coisa que eles fazem antes de entrar na sala de aula é postar uma foto no Instagram, nem os pais podem pensar que tudo se resume a controlo 
quando estamos num mundo em que não se pode ser 
adolescente sem ter um smartphone.

A sexualidade desperta nesta altura. Como devem os pais lidar com isso?
Já aflorei esta questão quando falei na diferença entre rapazes e raparigas. De qualquer forma, temos que pensar que são tempos de “primeiras vezes”, de descoberta também no território da nova sexualidade (desejos, atrações, emoções, etc., desconhecidos).

Eles devem aprender a proteger-se, a gerir riscos (é um direito deles), mas não podemos focar a sexualidade nisso. De uma maneira esquemática, temos que pensar em como levar em consideração o universo de influências externas (pornografia), em como assegurar que seguem seu próprio ritmo pessoal sem serem apressados pelos amigos ou pelo mercado, em como conseguir que não se queimem etapas que passam por desejar e sentirem-se desejados.

(Embora tenha prometido que este era o meu último livro sobre adolescência, estou a escrever agora, por causa da confusão que parece dominar-nos, uma espécie de “sequela” sobre a educação para a sexualidade em tempos de pornografia e outras questões aparentemente complexas, como os ecrãs).

O desafio é que não se perca a descoberta dos abraços e dos beijos, que experimentem uma sexualidade saudável, humanizadora e feliz.

Quais são os sinais de alerta a que os pais devem estar atentos no que respeita a saúde mental?
No livro, dediquei um capítulo aos adolescentes que sofrem e fazem sofrer, enfatizando que quando as situações são complicadas, o sistema de atenção à saúde mental geralmente é muito pouco útil e adequado aos adolescentes.

Às vezes, o problema é que não sabemos e não temos recursos para ajudá-los. Não vão, sem mais, consultar psicólogos ou psiquiatras. Além disso, ninguém no seu ambiente quotidiano (da escola aos pontos de encontro) educa as suas emoções e sentimentos.

Na maioria das vezes, encontramo-nos, como já disse, com problemas que podem tornar-se dificuldades sérias e de longo prazo se não existir acompanhamento para os resolver. Exceto em casos extremos, os “sintomas” têm que ver com a perceção de que não estão felizes, que andam perdidos sem encontrar saídas.

Deixamos para outra ocasião a questão da educação em tempos de ecrãs. Nem a escola pode esquecer que a última coisa que eles fazem antes de entrar na sala de aula é postar uma foto no Instagram, que os alunos que tem à sua frente são alunos virtuais, nem os pais podem pensar que tudo se resume a estabelecer controlo quando estamos num mundo em que não se pode ser adolescente sem ter um smartphone.
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OBS.: Português de Portugal.

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