domingo, 20 de outubro de 2019

PETER FRY: PESQUISADORES PRECISAM CONHECER BRASIL REAL, diz antropólogo.


 “Até hoje não entendi como conseguiram ir tão longe e fizeram tanto sucesso sem sofrer nas mãos da ditadura”, diz Peter Fry sobre o grupo musical Secos & Molhados — Foto: Agência O Globo

Para antropólogo Peter Fry, é necessário imergir em comunidades para entender o país real, e não o imaginado

Por Laura Greenhalgh — Para o Valor, de São Paulo

18/10/2019

Peter Fry nasceu em tempos de guerra, na Inglaterra dos anos 40. Cresceu em uma sociedade conservadora que criminalizava as relações homossexuais até 1967 e onde a palavra “queer” era usada para rotular, de forma pejorativa, gente fora dos padrões. Por sua orientação sexual e pelos códigos ingleses da época, Fry era um criminoso aos 26 anos. Não chegou a usufruir dos benefícios da nova lei porque logo fez as malas rumo ao Brasil, onde vive ainda hoje, já naturalizado e reconhecido como um dos grandes nomes da antropologia nacional. Aqui assumiu a homossexualidade. Quanto ao seu país de origem, o Parlamento britânico trabalha para eliminar os registros criminais imputados aos “indecentes” e exigir o perdão oficial a eles.

Convidado a analisar por que tantas vozes bradam contra os perigos da “ideologia de gênero”, eis que Fry, prestes a completar 78 anos, invoca o seu lado mais sereno ao falar como permanente pesquisador. Não se insurge contra o discurso inflamado dos que creditam o que há de ruim no país - da crise na família às queimadas amazônicas - a essa ideologia. Com percepção aguçada e algum senso de humor, procura decifrar que discurso é esse, dizendo saber de onde o vozerio parte: “Emana dos palácios de Brasília”. 


Já a sua análise emana da longa experiência. Nos anos 60, agitados tempos da contracultura, Fry formava-se em antropologia na tradicional Universidade de Cambridge. Pouco depois, partiria para a antiga Rodésia, hoje Zimbábue, a fim de estudar as relações entre religiosidade e resistência política. Voltou da imersão africana apto a defender o doutorado na Universidade de Londres - sua tese deu origem ao livro “Spirits of Protest” (Espíritos de Protesto), sem edição no Brasil. Até que, em 1969, já decretado o AI-5 no país, atendeu ao convite da Universidade Estadual de Campinas para dar aulas e estruturar o departamento de antropologia.

Os rigores da ditadura fizeram dele alvo da polícia política da época, por ter sido fundador do jornal “Lampião da Esquina”. Contestador e ousado, o tabloide circulou entre 1978 e 1981, reunindo intelectuais homossexuais que marcaram a cultura brasileira - entre eles, o artista plástico Darcy Penteado (1926-1987), o escritor João Silvério Trevisan, o crítico de cinema Jean-Claude Bernardet, o dramaturgo Aguinaldo Silva e o próprio Fry. Uma intelligentsia que acabaria azucrinando o então ministro da Justiça, Armando Falcão (1919-2010), para quem o pasquim de capas provocadoras atentava contra a moral.


Nesta entrevista, o antropólogo volta aos tempos do “Lampião”, assim como dos grupos Dzi Croquettes e Secos & Molhados, mostrando como todo aquele ativismo libertário levou a manifestações artísticas fortes, ao mesmo tempo em que grupos de direita saíam às ruas. “As contradições são mesmo a cara do Brasil”, diz. Entre o ministro do passado, que perseguiu o jornal dos homossexuais, e o prefeito de hoje, que manda recolher revista com beijo gay, Fry prefere seguir a trilha do conhecimento. Pede aos institutos de opinião que incorporem a pauta de costumes em suas pesquisas, anima os antropólogos a voltarem aos trabalhos de campo e preconiza: o Brasil, país tão tolerante, não pode ter se transformado, de repente, num grande templo puritano.

Valor: Existe o conceito “ideologia de gênero”?

Peter Fry: Existe o conceito, em inglês, “gender ideology”. Não é invenção brasileira. Em 1997, publicou-se um livro chamado “The Gender Agenda”, da jornalista americana Dale O’Leary, que tratava desse tema na perspectiva conservadora. O mais correto seria dizer que ideologia de gênero é um conceito importado, hoje em voga no Brasil. Talvez porque a flexibilidade de gênero, que cresce na sociedade, ainda assuste muita gente. Como reação, tenta-se trabalhar com esse conceito em tom negativo.

Valor: Em qual termo recai o tom negativo: em ideologia ou gênero?

Fry: Em ideologia, no sentido de que serviria para enganar as pessoas. Comumente ouvimos críticas a alguma coisa inconsistente, ou questionável, como sendo “pura ideologia”. Daí junta-se a ideia de gênero para reforçar que toda discussão nesse campo é enganação. Esse é um fenômeno muito interessante de ser analisado.

Valor: Por quê?

Fry: Porque o mundo mudou dramaticamente. Vou contar um caso que se passou comigo: em 1968, antes de chegar ao Brasil, conheci amigos em Lisboa e juntos subimos num barco para navegar o rio Tejo. No meio do rio, um desses amigos anunciou que iria mudar de sexo. Fiquei chocado, nunca tinha ouvido tal afirmação. Perguntei: “Por que você não vive como homossexual, sem ter que passar por uma cirurgia?”. Na época, ainda nem se usava o termo gay. “Porque não sou homossexual. Sou mulher e vou viver como mulher”, ele reagiu. Ao voltar para a Inglaterra, esse amigo me deu um daqueles pratos portugueses de porcelana. Mais tarde, escrevi com meu português uma carta de agradecimento “pela linda prata”. E tive como resposta: “Se você vai chamar o seu prato de ‘linda prata’, então posso mudar o meu sexo”. Conto essa história porque, nos anos 1960, ainda era rara a mudança de sexo, embora travestis existissem há muito tempo, como homens vestidos de mulher, presentes no teatro de Shakespeare. De lá para cá, muita coisa mudou. 

 
“Eu me pergunto como manifestações que hoje seriam rotuladas de ‘ideologia de gênero’ [como o grupo Dzi Croquettes] aconteceram na ditadura”, diz Fry — Foto: Agência O Globo

Valor: Naquele momento, como a antropologia via essa questão?

Fry: A antropologia já vinha fazendo a distinção entre sexo biológico e os papéis sociais relacionados ao sexo. Ao começar a escrever sobre esse tema, no início dos anos 1980, eu usava a expressão papéis sexuais. Só mais tarde incorporamos a ideia de gênero, passando a distinguir os dois níveis, um biológico, outro social. A coisa complicou quando as pessoas passaram a questionar a existência de apenas dois sexos. O binarismo sexual foi colocado em xeque, tornando esse campo mais complexo. Hoje um jovem olha para o mundo e entende que teve um sexo ao nascer, mas não necessariamente precisa se sentir bem dentro de determinado gênero. Na minha adolescência na Inglaterra, havia três opções: ser heterossexual, homossexual vivendo no armário ou me tornar uma “b... louca” marginalizada. Hoje o jovem pode recusar a visão binária, pode não querer ser hétero, pode misturar masculino e feminino, enfim, tudo isso não existia há 50, 60 anos.

Valor: Como foi descobrir-se homossexual na Inglaterra?

Fry: Até 1967, atos homossexuais eram crime em meu país. Ou seja, aos 26 anos, eu era um criminoso por definição legal. Pouco depois vim para o Brasil com sentimento de alívio, afinal não tinha leis restritivas. Aqui assumi minha orientação sexual. Toda a luta na Inglaterra se deu pela descriminalização, conseguida parcialmente - a lei passou a tolerar atos homossexuais consentidos entre pessoas acima de 21 anos. Meus amigos ingleses, gays como eu, viviam num mundo paralelo - nossos guetos, nossas boates etc. E havia no meio universitário um etos crítico ao mundo heterossexual, colocando em xeque aquela família-modelo, chata e puritana. Nós nos assumíamos como pessoas diferentes, mas nem por isso inferiores. No Brasil, meus amigos gays eram quase sempre socialistas que falavam mal da propriedade privada, vivendo em lugares onde não havia sofás, tudo era deixado no chão e comia-se muito arroz integral. A gente ria disso. Creio que o sarcasmo era nossa sobrevivência, nossa saúde mental.

Valor: Foi complicado ser militante gay na ditadura militar no Brasil?

Fry: Fácil não foi, mas houve situações curiosas. Quando “Lampião”, nosso jornalzinho gay, começou a circular, em 1978, a mensagem que passávamos para a sociedade era: “Deixem-nos em paz”. Queríamos que as pessoas saíssem do armário sem ter vergonha da sua sexualidade. Queríamos desfrutar de cidadania plena. Nossa luta era contra o preconceito, e a palavra homofobia não havia entrado em cena. Foi um tempo de manifestações artísticas interessantíssimas, como a trupe de teatro Dzi Croquettes, liderada pelo [coreógrafo americano] Lennie Dale [1934-1994]. No palco, eram homens barbudos vestidos de forma ousada, misturando gêneros. A peça começava assim: “Nós não somos homens. Tampouco mulheres. Somos gente computada. Iguais a vocês”. Além de temperar com malícia o termo “computada”, invocava essa ideia de tecnologia quando nem havia os PCs! 

Vídeo

Valor: “Lampião” reforçou a imprensa contrária ao regime com seu time de intelectuais gays, gente de grande força intelectual. Vocês ficaram no gueto ou permearam a sociedade?

Fry: Para ser franco, nem “Lampião”, nem as Dzi Croquettes permearam a sociedade. Quem permeou, de fato, foram os Secos & Molhados, grupo musical estrelado por Ney Matogrosso. Até hoje não entendi como conseguiram ir tão longe e como fizeram tanto sucesso sem sofrer nas mãos da ditadura.

“Os pesquisadores não estão ouvindo. Fala-se em ‘lugar da fala’, mas o que está faltando à antropologia é o ‘lugar da escuta’”, afirma Peter Fry

Valor: Mas Lennie Dale chegou a dançar no programa da apresentadora Hebe Camargo (1929-2012). Nada mais família do que isso.

Fry: Lennie dançava no programa da Hebe, e o Brasil se deleitava! Eu me pergunto como manifestações que hoje seriam rotuladas de “ideologia de gênero” aconteceram na ditadura, contando com a simpatia de amplas camadas da sociedade. A meu ver, por alguma razão que ainda precisamos investigar, a ditadura deixou rolar as Dzi Croquettes e os Secos & Molhados. Mas quis enquadrar o “Lampião”, talvez porque nos visse como subversivos. Esta foi uma operação que partiu do então ministro da Justiça do governo Geisel [1974-1979], Armando Falcão, sob a alegação de que o jornal violava a moral e os bons costumes. Fomos fichados, depois envolvidos num inquérito que acabou engavetado pelo próprio regime. Naqueles mesmos anos 1970, se de um lado havia Dzi Croquettes, de outro havia a TFP - Tradição, Família e Propriedade -, organização ultraconservadora, que saía às ruas com estandartes. Foi um período contrastado.

Valor: Na sua opinião, a ditadura militar fez vistas grossas para aquele ativismo libertário?

Fry: Pode até ser, mas, de fato, contradições são a cara do Brasil. Quando me mudei para cá, sabia que iria viver num país muito católico. Em conversas, as pessoas manifestavam curiosidade por homens que tinham sinais afeminados. Perguntavam se era ou não era. Descobri que a região dos gays ficava no centro de São Paulo, nos arredores da avenida São Luís. E me impressionei com a tranquilidade da área. Caminhava por lá, não tinha medo. Na Unicamp, já com “Lampião” nas bancas, senti que ser gay oferecia mais vantagem do que desvantagem. As pessoas poderiam até falar mal de mim pelas costas, mas nunca me afrontaram. Aquele ativismo me possibilitou uma forma de atuação política, porque, como estrangeiro, não entendia as várias facções de oposição ao regime e o que elas representavam. Tudo para dizer que o Brasil dos anos 60, 70, me surpreendeu. Parecia bem menos machista e convencional do que a minha velha Inglaterra. Havia menos puritanismo por um lado, mas muita hipocrisia por outro, pois as pessoas casadas levavam a vida com seus amantes. Eu tinha amigas que me diziam: “Peter, não é fácil ter um namorado fora do casamento, temos culpa...”. E eu ria: aquilo era nada perto da culpa protestante inglesa.

Valor: Como vocês, primeiros ativistas gays, eram vistos pelos militantes marxistas?

Fry: Tanto os gays, quanto as feministas e as lideranças negras, acabamos mostrando aos marxistas que as nossas causas não eram menores e nem tudo se limitava à luta de classes. Também não éramos diversionistas ou burgueses. O movimento gay queria acabar com o preconceito e deixar as pessoas confortáveis em sua sexualidade. O movimento feminista lutava pela emancipação das mulheres, tanto que precisou remover obstáculos legais, contando com formidáveis advogadas. E o movimento negro veio com ênfase no racismo, na discriminação, na injustiça. Esses três movimentos se aproximaram no combate à inferiorização social. Tanto que “Lampião” era muito lido fora da comunidade gay. Mais adiante, isso tudo ficaria explícito com o livro do [Fernando] Gabeira. 

 Vídeo
https://www.youtube.com/watch?v=vDvjecJOpa4 - Secos e Molhados – O vira

Valor: O senhor fala de “O que É Isso, Companheiro?” (1979). Foi um divisor de águas?

Fry: Foi um livro importante. Revelou as dificuldades internas da esquerda em lidar com questões identitárias, no campo da sexualidade. O que vejo hoje é um processo inverso: agora as pessoas prestam mais atenção à pauta identitária do que aos problemas de classe tout court, como a terrível desigualdade brasileira. No Rio estamos convivendo com uma polícia que se diz disposta a eliminar o tráfico. Mas o tráfico mora onde? Nas favelas. Quem mora nas favelas? Pessoas pobres, em geral, trabalhadores. Virou moda falar em genocídio negro e até entendo o movimento negro abraçar essa ideia, mas algo precisa ser esclarecido. Genocídio é luta contra um “genos”, um povo, uma raça, uma tribo, uma etnia. Hitler foi atrás dos judeus, de seus filhos, netos, ricos ou pobres, atrás de todos. Foi um genocídio. Em Ruanda, os tutsis foram atacados pelos hutus em tudo quanto era lugar. Foi um genocídio. Aqui se trata de ações policiais focalizadas nas áreas de maior pobreza, onde a grande maioria é negra.

Valor: De toda forma, estamos diante de uma necropolítica. Concorda?

Fry: Sem dúvida. Isso acontece porque o Brasil não legaliza a maconha. Se legalizasse, não haveria esse tráfico, nem essa matança, e a polícia poderia se envolver com a segurança dos cidadãos sem precisar invadir favelas. Inclusive a polícia morreria menos.

Valor:  O senhor acredita que o discurso oficial contra a “ideologia de gênero” está ganhando força no seio da sociedade?

Fry: O que está sendo dito emana dos palácios de Brasília. Lá as pessoas pregam a volta a um mundo que não existe mais. Não sei, de fato, quanto apoio a população brasileira dá a esse tipo de discurso. Gostaria, ou melhor, pediria que institutos de opinião pública incorporem perguntas dessa natureza em suas pesquisas. Inclusive porque parece haver uma desconexão entre o mundo em que vivemos e o que ecoa dos palácios de Brasília. Tomo por mim: não vivo me deparando com homofóbicos. Nem os encontro. Me sento na praia e fico me perguntando se toda aquela gente é contra mim porque sou gay. Claro que não! Não posso imaginar que o Brasil, que sempre foi tolerante, de repente tenha se convertido em templo puritano.

Valor: Qual o melhor caminho para o país: seguir travando batalhas no campo moral ou assegurar direitos já conquistados?

Fry: Essa resposta não é simples. Volto à Inglaterra: foi David Cameron, primeiro-ministro conservador, quem colocou na pauta do Parlamento uma lei autorizando o casamento entre pessoas do mesmo sexo, depois aprovada por ampla maioria. Quer dizer, o país que criminalizara a homossexualidade até a década de 1960, meio século depois legalizava o “same-sex marriage”. Esse processo passou pelo Parlamento, dando à lei legitimidade. Com ela a Inglaterra mudou da água para o vinho. Eu mesmo, que criticara a luta pelo casamento gay por achar que reproduzia modelos antigos, mudei ao ver que meus amigos ingleses casaram-se e se sentiam bem. A Inglaterra é um dos lugares mais tolerantes que conheço, onde a homossexualidade deixou de ser assunto! No Brasil o casamento gay não passou pelo Congresso. Houve decisão ex cathedra do Supremo Tribunal Federal em 2011, assim como para a criminalização da homofobia em 2019. Nas duas situações, a Suprema Corte, cuja missão é defender a Constituição, precisou legislar. Isso faz diferença! Esses temas deveriam passar por amplo debate no país, ao longo do qual cada deputado teria que falar com eleitores do
seu reduto, depois voltar ao parlamento e, ao final do processo, a decisão teria uma legitimidade e uma adesão muito mais explícitas. São questões importantes demais para ficar circunscritas a movimentos sociais em geral pequenos, redes de advogados e um grupo de 11 ministros. Por isso, espero que um dia o Brasil venha a ter o voto distrital.
Valor: A guinada conservadora no Brasil é essencialmente religiosa?

Fry: Não diria isso. A Igreja Anglicana no Brasil desde o ano passado celebra o casamento de pessoas do mesmo sexo. Precisamos saber o que vêm fazendo os batistas, os metodistas, enfim, conhecer as diferentes denominações. Mesmo entre os pentecostais há igrejas inclusivas, acolhendo gays. Claro, as vozes mais estridentes desse mundo são as de líderes de igrejas evangélicas. Mas não sei se as visões desses senhores refletem o sentimento da maior parte da sociedade. Insisto: precisamos analisar melhor os dados. Ataques aos terreiros de umbanda e candomblé, onde gays sempre tiveram espaço, não são todos de responsabilidade dos pentecostais. Claro, os homofóbicos devem estar se sentindo mais fortes, afinal, hoje nem é preciso arquitetar grandes protestos. Basta ouvir as falas que emanam dos palácios de Brasília para que as pessoas liberem seus velhos ódios. O enfrentamento no campo político-religioso, no Brasil, não deverá ser contra o mundo LGBT, mas contra o aborto.

Valor: Por quê?

Fry: Há um ponto de intersecção das religiões cristãs nesse tema, e as feministas não conseguiram encontrar as palavras certas para ampliar o debate. Elas se dizem “a favor do aborto”, mas são palavras erradas, porque ninguém é a favor do aborto. Ele é um último recurso. Enquanto isso, mulheres pobres continuam abortando de forma insegura e continuam morrendo.

Valor: A crítica à ideologia de gênero tem a ver com o avanço do fundamentalismo no mundo?

Fry: O problema no plano internacional chama-se populismo. Ele deságua nessa onda ultranacionalista, fazendo com que os países se fechem e não queiram construir projetos comuns. É a Inglaterra do Brexit. Sintomático que o governo brasileiro tenha se aproximado não dos EUA, mas de Trump. Uma aproximação direta, quase em caráter pessoal. Trump é um hipernacionalista. Suas batalhas maiores serão contra os imigrantes e também contra o aborto.

Valor: O senhor repete que é preciso estudar mais. Vêm novos desafios para a antropologia?

Fry: A antropologia precisa saber o que acontece. Pesquisadores devem imergir em comunidades, viver dentro delas, como fazia a velha antropologia, pois não adianta só colher dados em pequenas entrevistas. A questão é que os pesquisadores não estão ouvindo. Fala-se em “lugar da fala”, mas o que está faltando à antropologia é o “lugar da escuta”. Há anos, Vincent Crapanzano, antropólogo americano, fez pesquisa numa aldeia de bôeres na África do Sul. Os bôeres eram descendentes de colonos brancos calvinistas e formaram a base social do apartheid. Crapanzano fez um livro fantástico chamado “Waiting”, onde explicou a vida daquelas pessoas, ideias, costumes, cotidiano. Foi criticado, afinal, por que ouvir gente que alimenta o apartheid? Graças a trabalhos como o dele foi possível saber como aquele sistema terrível funcionava. Hoje precisamos mergulhar nos bolsões do bolsonarismo, é fundamental para entender o que se passa no Brasil. Quando cheguei aqui tive o prazer e a honra de me tornar amigo de duas antropólogas da USP, as professoras Ruth Cardoso [1930-2008] e Eunice Durham. Elas me influenciaram muito. E me diziam: “Peter, a nossa esquerda leu mal o Brasil”. Verdade. Agora precisamos entender o Brasil real, não o imaginado. Em vez de ficar discordando e lamentando, hora de sair em campo.
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