sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Nos últimos ‘Diários’, Fernando Henrique reflete sobre cansaço e ascensão do PT


A percepção negativa de Fernando Henrique sobre Lula vai mudando, mostram os “Diários”:
“Se o Lula ganhar, nós vamos ter que apoiá-lo, por causa do Brasil” — Foto: Eraldo Peres/AP

Nos “Diários” sobre dois últimos anos de seu governo, Fernando Henrique reflete sobre turbulências, 
cansaço e ascensão do PT

Por Matías M. Molina — Para o Valor, de São Paulo

O quarto e último volume dos “Diários da Presidência”, que cobre os dois últimos anos do mandato de Fernando Henrique Cardoso, retrata o ocaso de seu governo. Nesse período, perdeu popularidade pelos efeitos de uma desvalorização atabalhoada do real, da crise de energia, da derrota de seu partido nas eleições presidenciais, da ascensão do Partido dos Trabalhadores. E teve que enfrentar a turbulência externa.

Os “Diários” refletem o peso da idade e o cansaço no exercício no cargo. FHC registra a “solidão do poder”, a “fadiga de material” e menciona: “É a primeira vez em oito anos que me sinto assim, meio alquebrado”. E “é curioso, estava pensando: tenho setenta anos, a Ruth [Cardoso, 1930-2008 ] também, e a gente vai ficando um pouco vegetal, depois mineral, não no sentido físico, no sentido espiritual, porque a gente já não tem as aflições que tinha antes, das coisas que vão acontecer, que não vão acontecer, mesmo quanto às pessoas. Acho que há certo ceticismo bem temperado, sem grandes expectativas”. Essa fadiga, observa, passa para o povo, e reconhece que “a população se cansa da gente”.

 
Reunião sobre crise de energia com os então presidente do 
BC Arminio Fraga e ministro Pedro Malan — Foto: Ruy Baron/Valor

Apesar desse cansaço, FHC se manteve atento e ativo até o fim da Presidência. Nos “Diários”, registra como reagiu às pressões do cotidiano, como julgava amigos e inimigos, sem omitir vacilações, dúvidas e contradições. E há frases curiosas: “De manhã, apenas nadei, ou melhor, nem nadei, fiz exercícios, porque não quis entrar na água”.

O autor reconhece que atenuou expressões. Mas o que foi publicado deve ter machucado muitos egos da República. Usa expressões extremamente duras, ditadas para depois da morte, mas cuja divulgação decidiu antecipar. FHC não poupa o Congresso, os políticos, a imprensa, os procuradores, as elites, os mercados, os bancos.

O Congresso, diz, uma instituição forte com partidos fracos, está se desmoralizando; é cada vez mais uma reunião de vereadores federais que não se preocupam com o conjunto do país; “só votam contra o Tesouro, só votam benesses”. Projetos estratégicos, os deputados não se preocupam com eles. “É uma coisa entristecedora, e eu não posso sequer denunciar, porque se o fizer nada mais passará no Congresso”.

FHC não denunciou, mas negociou. Diz que dedicou a Presidência a transformar práticas enraizadas como corporativismo, clientelismo e personalismo e que, para avançar, em lugar de bater de frente contra interesses arraigados, precisou contorná-los e, mesmo, ceder. Quis modernizar o Brasil com o que tinha nas mãos, “e nas mãos tenho a força do atraso”. Na base aliada havia “podridão”: “os mais espertos, dominam parte importante da maioria, e eles são partes do jogo brasileiro”. FHC jogou esse jogo.

Quando uma jornalista escreveu que, em lugar de romper com as oligarquias, ele escondia sua “sujeira”, reagiu: “Escondendo nada, eu quero apenas que se vote (...) É chantagem do PFL, eu sei. (...)Antônio Carlos [Magalhães, ACM, 1927-2007] levou a vida inteira chantageando, o Jader [Barbalho] não deixou de chantagear. Isso é política”. Houve momentos de angústia: “se o Congresso quiser brigar comigo, que brigue. Eu já cansei, cansei de ser civilizado, cansei de aguentar desaforo, cansei de engolir sapo, cansei de engolir gente de quem eu não gosto, cansei de fazer concessão em nome da pátria”. No fim, esse mesmo Congresso “aprovou tudo o que quisemos, tudo, sem exceção”. Esqueceu, porém, que não conseguiu passar a reforma da Previdência.

Aprendeu que, se você anuncia o que vai fazer, você já não faz, porque as forças atuam contra. Ele vê focos de corrupção na Sudam, onde a roubalheira existe há 40 anos, e na Sudene e diz que Banco do Brasil, Caixa Econômica, Basa e Banco do Nordeste estão todos apodrecidos.

Sobre os políticos faz observações ferinas. O ex-governador do Rio Anthony Garotinho: “Ou é irresponsável, ou idiota ou um falsário”. Dos dois principais líderes do Senado, ACM e Barbalho, “estertores do arcaico”, diz que, a rigor, poderiam ser cassados e que querem ver o circo pegar fogo. Jader Barbalho por desespero, Antônio Carlos Magalhães por astúcia.

De Barbalho, afirma que participou de roubalheira, “mas ele é presidente do Senado e me ajudou em outros momentos”. É contundente com ACM, que “tem uma inveja infinita de mim e que gostaria mesmo é de ser presidente”. Diz que é patético, matreiro; um espertalhão que faz canalhices, desatinos, joga lama em todo mundo, tem doença patológica, está desorientado e, quando fala em moralidade, teria que botar luva muito grossa para esconder as marcas de alguém que sustentou o regime militar e posa de vestal. Destruiu o PFL e tentou destruir o presidente da República. É um farsante que “lê um discurso (...) cheio de frases de autores que ele nunca leu, Kant, Voltaire. (...) uma peça cínica. Um discurso de ódio, de vingança pura”. Lamenta, porém, o fascínio que ACM exerce sobre a mídia, porque a mídia precisa de gente histriônica e de fanfarronice antiga e arcaica e assim dá projeção a tudo que ele faz.

Leonel Brizola (1922-2004) é um velho caudilho que perdeu o rumo. Ciro Gomes é um descabeçado sem rumo, uma sublegenda de ACM; um oportunista que vive da imprensa; um desbocado, um “colorido” sem recatos, oportunista e perigoso. FHC suaviza as críticas depois que Ciro falou bem dele.

Do senador Pedro Simon diz que gosta de histrionismo, é cupim da dignidade alheia, um destemperado, quer ser presidente da República e não consegue. No ex-presidente Itamar Franco (1930-2011), de quem foi ministro das Relações Exteriores e da Fazenda, vê um homem frágil e pequeno, dado a chiliques, mas hábil ao passar-se por desavisado e distraído sem ser; um pândego, sem compromisso com nada a não ser com ele mesmo

De Paulo Maluf, antigo prefeito e governador de São Paulo, ouviu que “continua o mesmo, continua roubando”. Do ex-presidente e ex-prefeito de São Paulo Jânio Quadros (1917-1992), soube que ficava com uma parte dos aumentos das tarifas de ônibus. José Sarney, em sua opinião, foi um presidente razoável na transição democrática, ruim na gerência, mas manteve a liberdade, “e eu sempre tive uma relação considerada com ele”. Evita comentar a “sujeirada” de que foi acusado.

Sobre Luiz Inácio Lula da Silva, diz que é boa pessoa e intuitivo, mas sem preparo para ser presidente; que não aprendeu nada em 30 anos de militância; que é decepcionante e tem dito muita bobagem, com uma visão equivocada do mundo. “Não estudou nada, não trabalhou, não se aperfeiçoou e não pode ser bom presidente.”

A percepção vai mudando. “Gosto do Lula, suponho que ele goste de mim também. Achei o Lula melhor. Capaz de falar melhor o português, com conceitos, com elaboração.” Admite que “se o Lula ganhar, nós vamos ter que apoiá-lo, por causa do Brasil”. Registra que Lula beijou a cruz e que, ao dizer que vai respeitar contratos, vai respeitar as metas, o PT é obrigado a dizer que acredita no que não acredita. Eleito Lula, FHC não vê nada errado nos setores-chave do ministério: Economia, Forças Armadas, Itamaraty. “O resto é uma mixórdia.”

Numa conversa, Lula “muito esperto”, observou que o PSDB perdeu Mário Covas (1930-2001) e pergunta se ele, FHC, ficaria dando conferências ou entraria na briga política, uma vez que José Serra, o candidato derrotado, não servia para presidente do partido e Aécio Neves era fogo de palha; o melhor era Geraldo Alckmin. Lula reconheceu que teve medo de Tasso Jereissati ser candidato à Presidência da República: ele é “nordestino de ‘zoinho’ azul, e é mais fácil passar um nordestino de olhinho azul no Sul do que um paulista no Nordeste”. Segundo FHC, “curiosamente, ele quer que eu fique na política.”

Numa entrevista à imprensa durante o lançamento dos “Diários”, FHC reconheceu que errara em sua avaliação de Lula como presidente: formou uma maioria e explicou ao país para onde ia. Mas Lula, depois de assumir a Presidência, não perdeu tempo em dizer que recebera uma “herança maldita” de seu antecessor. De José Dirceu observa que falava com a pronúncia muito menos acaipirada e o elogia, pois “raciocina como um de nós, como um tucano, com conhecimento da situação” e mostrou que é um homem dedicado, competente.

Em Guido Mantega vê um rapaz de capacidade intelectual limitada e de conhecimentos mais limitados ainda, que não sabe o que acontece no Brasil. Colocado no Ministério do Planejamento, comenta que ele não tem a menor ideia de orçamento, de Congresso, de nada disso. FHC preferia Paulo Bernardo na pasta porque “esse é competente”. De Dilma Rousseff diz que a moça tinha uma visão favorável a subsídio, não sei o quê, subsídio para isso, subsídio para aquilo, enfim, como se o Tesouro fosse o Papai Noel.

Sobre a economia, FHC menciona o ímpeto do mercado para substituir o Estado, mas reconhece que o mercado não resolve as questões de uma nação. “Eles não leram Marx, o capitalismo é assim mesmo, centralizador, tem tendência monopolista; é racionalizador, exclui os mais fracos. Sobra o Estado, por isso sou favorável a fortalecer o Estado, para se contrapor à tendência monopólica do capitalismo. Não dá para quebrar o capitalismo; quem o quebraria seria a classe operária revolucionária, que desapareceu, foi para o paraíso.”

Um dia, observou que “os mercados estão nervosos, esses malditos mercados”. Outro dia: “Esses banqueiros fazem sempre a mesma coisa. Não há banqueiro amigo, eles são amigos do dinheiro”; alguns “fazem sujeira contra o país, contra os interesses econômicos, contra quem quer seja”. Diz que o ultracapitalismo financeiro é imperialista. Mas reconhece que o Brasil precisa de mercado. Afirma que falta audácia aos empresários e que eles se queixam, “mas quando a gente vai mudar não querem, porque a fórmula atual é boa, até lhes dá subsídio”.

Arremete contra a elite, que não aceita a normalidade democrática e a cidadania ou a ideia de sermos todos iguais perante a lei. “A elite dominante brasileira, sobretudo essa mais do Norte e Nordeste, não aceita a quebra de privilégio.” Essa elite não quer pagar impostos. “O grosso da classe média está pagando e não está reclamando; quem está eclamando, como sempre no Brasil, são os mais ricos.” Seu desejo é que se arrebente a base oligárquica.

No entanto, se ele é cáustico quando escreve sobre os políticos individualmente, as críticas à oligarquia são genéricas; menções nominais a empresários estão, quase sempre, acompanhadas de elogios.

FHC elogia a elite do setor público: “Esses burocratas qualificados que o Brasil tem são de tirar o chapéu, e eles são muitos, é uma gente que se dedica, que é competente, inteligente, que tem amor ao serviço público”. Das Forças Armadas diz que é gente correta e importante. Do Itamaraty escreve que é competente, mas tem um sabor de Império. “Muita etiqueta, muito formalismo, muita pretensão até, o que incomoda os políticos. A sociedade brasileira, que é republicana e não monárquica e muito pouco formal, não gosta dessas coisas.” Mas o Itamaraty é necessário e sem esse formalismo o Brasil não se mantém como Estado.

Para FHC a diplomacia e as Forças Armadas têm uma visão estratégica do país, do Estado, para a classe política ainda falta muito, alguns empresários tem essa visão, embora “no conjunto... meu Deus, dá pena”, e pouquíssimos jornalistas a têm.

Sobre o “apagão” de energia, “o maior abacaxi de toda a minha gestão”, diz que o grande responsável por ela, o ministro do setor, Rodolpho Tourinho (1941-2015), do PFL, lhe dizia que não havia risco de apagão e chegou a proibir que se falasse em racionamento no ministério. Mas FHC reconhece que foi ele quem o colocara lá.

Onde se sente mais seguro e confiante é nas relações internacionais. Afirma ter seguido o Barão do Rio Branco (1845-1912): bom relacionamento com os Estados Unidos e olho no Prata. Agora, o nosso Prata é a América do Sul, e não bastam boas relações com os EUA, necessárias também com a Europa, China e o Japão.

“A Argentina”, escreve, “continua a ser o meu objeto de preocupação”; “o Brasil tem que estar presente lá”. FHC cultiva as relações também com Cuba - se dá bem com Fidel Castro (1926-2016) - e com a Venezuela. De seu presidente, Hugo Chávez (1954-2013), relata que é sempre simpático, brincalhão, “muito correto comigo”, e gosta dele; tem impulsos que não são racionais, mas até agora, diz, nunca quebrou a regra democrática.

Ele enfatiza as relações estreitas com os líderes ocidentais. “Talvez nunca tenha havido na história um momento em que um presidente do Brasil tenha tido contatos tão diretos(...) de tanta liberdade, pelo modo como falamos um com o outro (...) sem reservas.”

E não se inibe em registrar os aplausos e elogios que recebeu. “Fiz um discurso forte, foi extremamente aplaudido.” “Eles ficaram, acho eu, impressionados com o domínio que eu tinha das questões.” “Fiz uma exposição que foi aplaudida fortemente.” “Fui saudado com palmas não só na entrada.” “Resultado: no final fui aplaudido em pé por mais de um minuto.” Registra que “Eu e Ruth dormimos no quarto onde Churchill ficava.” E que “O Olavo (Setúbal) serviu um vinho Barca Velha que eu reconheci, ele ficou contentíssimo, os outros não conheciam, é um vinho português muito bom, o melhor de Portugal.”

Perguntado se valeu a pena o segundo mandato: “Para mim, certamente não (...); para o Brasil, talvez, porque quem iria domar essas confusões que estamos vivendo?”.

Sobre sua Presidência: “(...) depois do Getúlio, quem fez alguma coisa de mais significativo foram o Juscelino, o Geisel e, agora, o nosso governo”. Diz que o que fez é quase milagroso, fazer o país andar, mudar as instituições e a cultura, com uma base política de lascar.

É inegável que ele deixou a seu sucessor um Brasil melhor do que encontrou. No entanto, de seus “Diários” é possível concluir que, se foi perspicaz nas observações sobre pessoas e problemas, ele deixou de agir com a ênfase necessária. O intelectual prevaleceu sobre o homem de ação.

Sobre a questão do câmbio, por exemplo, ele percebera a necessidade de desvalorizar o real, mas agiu tarde, arrastado pelo mercado. Na crise energética, diz ter sentido que havia alguma coisa errada, mas não interferiu até a crise estourar.

Ele coloca o dedo sobre uma chaga do sistema político ao afirmar “que a mancha do voto proporcional no Brasil é a desproporção entre o número de eleitores e as representações nos vários Estados”. Realmente, esse processo, ignora o princípio democrático de “um cidadão, um voto”. No entanto, FHC prefere omitir-se: “Todo mundo sabe que isso é quase impossível de se modificar”, escreve, sem sequer tentar apagar a mancha.

Instalou as agências reguladoras e introduziu o tripé macroeconômico - câmbio flutuante, meta fiscal e meta da inflação -, mas não tentou uma reforma profunda da máquina pública e da burocracia oficial, bases para uma reforma duradoura do Estado.

Reconhece que a oposição ganhou a batalha ideológica acusando o governo de neoliberal, de não fazer nada pelo social e de estar submetido ao FMI. Atribui essa visão ao “baixo clero” que domina a universidade e a mídia. “Mas a culpa é nossa - diz - que não fomos capazes de brigar”. FHC deixou o decreto que garante o sigilo eterno de alguns documentos oficiais, uma herança maldita para os historiadores.

Últimas palavras do último “Diário”: “Fiz algo, houve coisas que não consegui, mas trabalhei bastante e acredito que o Brasil seja outro. Acho que o Brasil mudou”. Mas as ervas daninhas que tentou extirpar - corporativismo, clientelismo e personalismo - têm raízes muito profundas.

“Diários da Presidência 2001-2002 (Volume 4)” Fernando Henrique Cardoso. Companhia das Letras, 1.024 págs., R$ 129,90.

Matías M. Molina é autor dos Livros “Os Melhores Jornais do Mundo” (Editora Globo) e “História dos Jornais do Brasil” (Companhia das Letras). E-mail: matias.molina@terra.com.br