A percepção negativa de Fernando
Henrique sobre Lula vai mudando, mostram os “Diários”:
“Se o Lula ganhar, nós vamos ter
que apoiá-lo, por causa do Brasil” — Foto: Eraldo Peres/AP
Nos “Diários” sobre dois últimos anos de seu
governo, Fernando Henrique reflete sobre turbulências,
cansaço e ascensão do PT
Por Matías M. Molina — Para o Valor, de São
Paulo
O quarto e último volume dos “Diários da
Presidência”, que cobre os dois últimos anos do mandato de Fernando Henrique
Cardoso, retrata o ocaso de seu governo. Nesse período, perdeu popularidade
pelos efeitos de uma desvalorização atabalhoada do real, da crise de energia,
da derrota de seu partido nas eleições presidenciais, da ascensão do Partido dos
Trabalhadores. E teve que enfrentar a turbulência externa.
Os “Diários” refletem o peso da idade e o cansaço
no exercício no cargo. FHC registra a “solidão do poder”, a “fadiga de
material” e menciona: “É a primeira vez em oito anos que me sinto assim, meio
alquebrado”. E “é curioso, estava pensando: tenho setenta anos, a Ruth
[Cardoso, 1930-2008 ] também, e a gente vai ficando um pouco vegetal, depois
mineral, não no sentido físico, no sentido espiritual, porque a gente já não
tem as aflições que tinha antes, das coisas que vão acontecer, que não vão
acontecer, mesmo quanto às pessoas. Acho que há certo ceticismo bem temperado,
sem grandes expectativas”. Essa fadiga, observa, passa para o povo, e reconhece
que “a população se cansa da gente”.
Reunião sobre crise de energia com os então
presidente do
BC Arminio Fraga e ministro Pedro Malan — Foto: Ruy Baron/Valor
Apesar desse cansaço, FHC se manteve atento e
ativo até o fim da Presidência. Nos “Diários”, registra como reagiu às pressões
do cotidiano, como julgava amigos e inimigos, sem omitir vacilações, dúvidas e
contradições. E há frases curiosas: “De manhã, apenas nadei, ou melhor, nem
nadei, fiz exercícios, porque não quis entrar na água”.
O autor reconhece que atenuou expressões. Mas
o que foi publicado deve ter machucado muitos egos da República. Usa expressões
extremamente duras, ditadas para depois da morte, mas cuja divulgação decidiu
antecipar. FHC não poupa o Congresso, os políticos, a imprensa, os
procuradores, as elites, os mercados, os bancos.
O Congresso, diz, uma instituição forte com
partidos fracos, está se desmoralizando; é cada vez mais uma reunião de
vereadores federais que não se preocupam com o conjunto do país; “só votam
contra o Tesouro, só votam benesses”. Projetos estratégicos, os deputados não
se preocupam com eles. “É uma coisa entristecedora, e eu não posso sequer
denunciar, porque se o fizer nada mais passará no Congresso”.
FHC não denunciou, mas negociou. Diz que
dedicou a Presidência a transformar práticas enraizadas como corporativismo,
clientelismo e personalismo e que, para avançar, em lugar de bater de frente
contra interesses arraigados, precisou contorná-los e, mesmo, ceder. Quis
modernizar o Brasil com o que tinha nas mãos, “e nas mãos tenho a força do
atraso”. Na base aliada havia “podridão”: “os mais espertos, dominam parte
importante da maioria, e eles são partes do jogo brasileiro”. FHC jogou esse
jogo.
Quando uma jornalista escreveu que, em lugar
de romper com as oligarquias, ele escondia sua “sujeira”, reagiu: “Escondendo
nada, eu quero apenas que se vote (...) É chantagem do PFL, eu sei. (...)Antônio
Carlos [Magalhães, ACM, 1927-2007] levou a vida inteira chantageando, o Jader
[Barbalho] não deixou de chantagear. Isso é política”. Houve momentos de
angústia: “se o Congresso quiser brigar comigo, que brigue. Eu já cansei,
cansei de ser civilizado, cansei de aguentar desaforo, cansei de engolir sapo,
cansei de engolir gente de quem eu não gosto, cansei de fazer concessão em nome
da pátria”. No fim, esse mesmo Congresso “aprovou tudo o que quisemos, tudo,
sem exceção”. Esqueceu, porém, que não conseguiu passar a reforma da
Previdência.
Aprendeu que, se você anuncia o que vai fazer,
você já não faz, porque as forças atuam contra. Ele vê focos de corrupção na
Sudam, onde a roubalheira existe há 40 anos, e na Sudene e diz que Banco do
Brasil, Caixa Econômica, Basa e Banco do Nordeste estão todos apodrecidos.
Sobre os políticos faz observações ferinas. O
ex-governador do Rio Anthony Garotinho: “Ou é irresponsável, ou idiota ou um
falsário”. Dos dois principais líderes do Senado, ACM e Barbalho, “estertores
do arcaico”, diz que, a rigor, poderiam ser cassados e que querem ver o circo
pegar fogo. Jader Barbalho por desespero, Antônio Carlos Magalhães por astúcia.
De Barbalho, afirma que participou de
roubalheira, “mas ele é presidente do Senado e me ajudou em outros momentos”. É
contundente com ACM, que “tem uma inveja infinita de mim e que gostaria mesmo é
de ser presidente”. Diz que é patético, matreiro; um espertalhão que faz
canalhices, desatinos, joga lama em todo mundo, tem doença patológica, está
desorientado e, quando fala em moralidade, teria que botar luva muito grossa
para esconder as marcas de alguém que sustentou o regime militar e posa de
vestal. Destruiu o PFL e tentou destruir o presidente da República. É um
farsante que “lê um discurso (...) cheio de frases de autores que ele nunca leu,
Kant, Voltaire. (...) uma peça cínica. Um discurso de ódio, de vingança pura”.
Lamenta, porém, o fascínio que ACM exerce sobre a mídia, porque a mídia precisa
de gente histriônica e de fanfarronice antiga e arcaica e assim dá projeção a
tudo que ele faz.
Leonel Brizola (1922-2004) é um velho caudilho
que perdeu o rumo. Ciro Gomes é um descabeçado sem rumo, uma sublegenda de ACM;
um oportunista que vive da imprensa; um desbocado, um “colorido” sem recatos,
oportunista e perigoso. FHC suaviza as críticas depois que Ciro falou bem dele.
Do senador Pedro Simon diz que gosta de
histrionismo, é cupim da dignidade alheia, um destemperado, quer ser presidente
da República e não consegue. No ex-presidente Itamar Franco (1930-2011), de
quem foi ministro das Relações Exteriores e da Fazenda, vê um homem frágil e
pequeno, dado a chiliques, mas hábil ao passar-se por desavisado e distraído sem
ser; um pândego, sem compromisso com nada a não ser com ele mesmo
De Paulo Maluf, antigo prefeito e governador
de São Paulo, ouviu que “continua o mesmo, continua roubando”. Do ex-presidente
e ex-prefeito de São Paulo Jânio Quadros (1917-1992), soube que ficava com uma
parte dos aumentos das tarifas de ônibus. José Sarney, em sua opinião, foi um
presidente razoável na transição democrática, ruim na gerência, mas manteve a
liberdade, “e eu sempre tive uma relação considerada com ele”. Evita comentar a
“sujeirada” de que foi acusado.
Sobre Luiz Inácio Lula da Silva, diz que é boa
pessoa e intuitivo, mas sem preparo para ser presidente; que não aprendeu nada
em 30 anos de militância; que é decepcionante e tem dito muita bobagem, com uma
visão equivocada do mundo. “Não estudou nada, não trabalhou, não se aperfeiçoou
e não pode ser bom presidente.”
A percepção vai mudando. “Gosto do Lula,
suponho que ele goste de mim também. Achei o Lula melhor. Capaz de falar melhor
o português, com conceitos, com elaboração.” Admite que “se o Lula ganhar, nós
vamos ter que apoiá-lo, por causa do Brasil”. Registra que Lula beijou a cruz e
que, ao dizer que vai respeitar contratos, vai respeitar as metas, o PT é
obrigado a dizer que acredita no que não acredita. Eleito Lula, FHC não vê nada
errado nos setores-chave do ministério: Economia, Forças Armadas, Itamaraty. “O
resto é uma mixórdia.”
Numa conversa, Lula “muito esperto”, observou
que o PSDB perdeu Mário Covas (1930-2001) e pergunta se ele, FHC, ficaria dando
conferências ou entraria na briga política, uma vez que José Serra, o candidato
derrotado, não servia para presidente do partido e Aécio Neves era fogo de
palha; o melhor era Geraldo Alckmin. Lula reconheceu que teve medo de Tasso
Jereissati ser candidato à Presidência da República: ele é “nordestino de
‘zoinho’ azul, e é mais fácil passar um nordestino de olhinho azul no Sul do
que um paulista no Nordeste”. Segundo FHC, “curiosamente, ele quer que eu fique
na política.”
Numa entrevista à imprensa durante o
lançamento dos “Diários”, FHC reconheceu que errara em sua avaliação de Lula
como presidente: formou uma maioria e explicou ao país para onde ia. Mas Lula,
depois de assumir a Presidência, não perdeu tempo em dizer que recebera uma
“herança maldita” de seu antecessor. De José Dirceu observa que falava com a pronúncia
muito menos acaipirada e o elogia, pois “raciocina como um de nós, como um
tucano, com conhecimento da situação” e mostrou que é um homem dedicado,
competente.
Em Guido Mantega vê um rapaz de capacidade
intelectual limitada e de conhecimentos mais limitados ainda, que não sabe o
que acontece no Brasil. Colocado no Ministério do Planejamento, comenta que ele
não tem a menor ideia de orçamento, de Congresso, de nada disso. FHC preferia
Paulo Bernardo na pasta porque “esse é competente”. De Dilma Rousseff diz que a
moça tinha uma visão favorável a subsídio, não sei o quê, subsídio para isso,
subsídio para aquilo, enfim, como se o Tesouro fosse o Papai Noel.
Sobre a economia, FHC menciona o ímpeto do
mercado para substituir o Estado, mas reconhece que o mercado não resolve as
questões de uma nação. “Eles não leram Marx, o capitalismo é assim mesmo,
centralizador, tem tendência monopolista; é racionalizador, exclui os mais
fracos. Sobra o Estado, por isso sou favorável a fortalecer o Estado, para se
contrapor à tendência monopólica do capitalismo. Não dá para quebrar o
capitalismo; quem o quebraria seria a classe operária revolucionária, que
desapareceu, foi para o paraíso.”
Um dia, observou que “os mercados estão
nervosos, esses malditos mercados”. Outro dia: “Esses banqueiros fazem sempre a
mesma coisa. Não há banqueiro amigo, eles são amigos do dinheiro”; alguns
“fazem sujeira contra o país, contra os interesses econômicos, contra quem quer
seja”. Diz que o ultracapitalismo financeiro é imperialista. Mas reconhece que
o Brasil precisa de mercado. Afirma que falta audácia aos empresários e que
eles se queixam, “mas quando a gente vai mudar não querem, porque a fórmula
atual é boa, até lhes dá subsídio”.
Arremete contra a elite, que não aceita a
normalidade democrática e a cidadania ou a ideia de sermos todos iguais perante
a lei. “A elite dominante brasileira, sobretudo essa mais do Norte e Nordeste,
não aceita a quebra de privilégio.” Essa elite não quer pagar impostos. “O
grosso da classe média está pagando e não está reclamando; quem está eclamando,
como sempre no Brasil, são os mais ricos.” Seu desejo é que se arrebente a base
oligárquica.
No entanto, se ele é cáustico quando escreve
sobre os políticos individualmente, as críticas à oligarquia são genéricas;
menções nominais a empresários estão, quase sempre, acompanhadas de elogios.
FHC elogia a elite do setor público: “Esses
burocratas qualificados que o Brasil tem são de tirar o chapéu, e eles são
muitos, é uma gente que se dedica, que é competente, inteligente, que tem amor
ao serviço público”. Das Forças Armadas diz que é gente correta e importante.
Do Itamaraty escreve que é competente, mas tem um sabor de Império. “Muita etiqueta,
muito formalismo, muita pretensão até, o que incomoda os políticos. A sociedade
brasileira, que é republicana e não monárquica e muito pouco formal, não gosta
dessas coisas.” Mas o Itamaraty é necessário e sem esse formalismo o Brasil não
se mantém como Estado.
Para FHC a diplomacia e as Forças Armadas têm
uma visão estratégica do país, do Estado, para a classe política ainda falta
muito, alguns empresários tem essa visão, embora “no conjunto... meu Deus, dá
pena”, e pouquíssimos jornalistas a têm.
Sobre o “apagão” de energia, “o maior abacaxi
de toda a minha gestão”, diz que o grande responsável por ela, o ministro do
setor, Rodolpho Tourinho (1941-2015), do PFL, lhe dizia que não havia risco de
apagão e chegou a proibir que se falasse em racionamento no ministério. Mas FHC
reconhece que foi ele quem o colocara lá.
Onde se sente mais seguro e confiante é nas
relações internacionais. Afirma ter seguido o Barão do Rio Branco (1845-1912):
bom relacionamento com os Estados Unidos e olho no Prata. Agora, o nosso Prata
é a América do Sul, e não bastam boas relações com os EUA, necessárias também
com a Europa, China e o Japão.
“A Argentina”, escreve, “continua a ser o meu
objeto de preocupação”; “o Brasil tem que estar presente lá”. FHC cultiva as
relações também com Cuba - se dá bem com Fidel Castro (1926-2016) - e com a
Venezuela. De seu presidente, Hugo Chávez (1954-2013), relata que é sempre
simpático, brincalhão, “muito correto comigo”, e gosta dele; tem impulsos que
não são racionais, mas até agora, diz, nunca quebrou a regra democrática.
Ele enfatiza as relações estreitas com os
líderes ocidentais. “Talvez nunca tenha havido na história um momento em que um
presidente do Brasil tenha tido contatos tão diretos(...) de tanta liberdade,
pelo modo como falamos um com o outro (...) sem reservas.”
E não se inibe em registrar os aplausos e elogios
que recebeu. “Fiz um discurso forte, foi extremamente aplaudido.” “Eles
ficaram, acho eu, impressionados com o domínio que eu tinha das questões.” “Fiz
uma exposição que foi aplaudida fortemente.” “Fui saudado com palmas não só na
entrada.” “Resultado: no final fui aplaudido em pé por mais de um minuto.”
Registra que “Eu e Ruth dormimos no quarto onde Churchill ficava.” E que “O
Olavo (Setúbal) serviu um vinho Barca Velha que eu reconheci, ele ficou
contentíssimo, os outros não conheciam, é um vinho português muito bom, o
melhor de Portugal.”
Perguntado se valeu a pena o segundo mandato:
“Para mim, certamente não (...); para o Brasil, talvez, porque quem iria domar
essas confusões que estamos vivendo?”.
Sobre sua Presidência: “(...) depois do
Getúlio, quem fez alguma coisa de mais significativo foram o Juscelino, o
Geisel e, agora, o nosso governo”. Diz que o que fez é quase milagroso, fazer o
país andar, mudar as instituições e a cultura, com uma base política de lascar.
É inegável que ele deixou a seu sucessor um
Brasil melhor do que encontrou. No entanto, de seus “Diários” é possível
concluir que, se foi perspicaz nas observações sobre pessoas e problemas, ele
deixou de agir com a ênfase necessária. O intelectual prevaleceu sobre o homem
de ação.
Sobre a questão do câmbio, por exemplo, ele
percebera a necessidade de desvalorizar o real, mas agiu tarde, arrastado pelo
mercado. Na crise energética, diz ter sentido que havia alguma coisa errada,
mas não interferiu até a crise estourar.
Ele coloca o dedo sobre uma chaga do sistema
político ao afirmar “que a mancha do voto proporcional no Brasil é a
desproporção entre o número de eleitores e as representações nos vários
Estados”. Realmente, esse processo, ignora o princípio democrático de “um
cidadão, um voto”. No entanto, FHC prefere omitir-se: “Todo mundo sabe que isso
é quase impossível de se modificar”, escreve, sem sequer tentar apagar a
mancha.
Instalou as agências reguladoras e introduziu
o tripé macroeconômico - câmbio flutuante, meta fiscal e meta da inflação -,
mas não tentou uma reforma profunda da máquina pública e da burocracia oficial,
bases para uma reforma duradoura do Estado.
Reconhece que a oposição ganhou a batalha
ideológica acusando o governo de neoliberal, de não fazer nada pelo social e de
estar submetido ao FMI. Atribui essa visão ao “baixo clero” que domina a
universidade e a mídia. “Mas a culpa é nossa - diz - que não fomos capazes de
brigar”. FHC deixou o decreto que garante o sigilo eterno de alguns documentos
oficiais, uma herança maldita para os historiadores.
Últimas palavras do último “Diário”: “Fiz
algo, houve coisas que não consegui, mas trabalhei bastante e acredito que o Brasil
seja outro. Acho que o Brasil mudou”. Mas as ervas daninhas que tentou extirpar
- corporativismo, clientelismo e personalismo - têm raízes muito profundas.
“Diários da Presidência 2001-2002 (Volume 4)”
Fernando Henrique Cardoso. Companhia das Letras, 1.024 págs., R$ 129,90.
Matías M. Molina é autor dos Livros “Os
Melhores Jornais do Mundo” (Editora Globo) e “História dos Jornais do Brasil”
(Companhia das Letras). E-mail: matias.molina@terra.com.br