segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Breve nota sobre a futilidade do sucesso


Imagem: John Holcroft

Primo-irmão da ganância, ele é a gasolina que alimenta o individualismo, o desejo de ser superior, a compulsão por valores e poderes. Ergue obeliscos e dissolve consciências. Tornou-se obsoleto; exige glória eterna. Como fazer sua eutanásia?

A maldade desta gente é uma arte”
(Ataúlfo Alves)

Todos temos direito a um pouco de filosofia, ainda que hoje para tudo se exija diploma. Mas somos filósofos na intimidade. É uma questão de sobrevivência. A partir de certa idade, você não pode deixar de se questionar: qual é o sentido de tudo isso? Para onde estamos todos correndo? Wim Wenders teve esse momento de lucidez: “Humanity is craving for meaning.” É preciso dar sentido à vida.

Venderam-nos a ideia de que precisamos entrar na corrida pelo sucesso. Saia na frente dos outros, esse é o objetivo geral. Mas à frente dos outros para quê? Ao cruzar com um professor esbaforido no corredor da PUC, outro dia, não pude deixar de questioná-lo: para onde estamos correndo? Ele sorriu, e encolheu os ombros: quem sabe? Nós apenas corremos. Corra, cara, corra. Um filme que assisti em 1962, The Loneliness of the Long Distance Runner, está muito presente para mim hoje, passados mais de cinquenta anos. O herói do filme, interpretado por Tom Courtenay, decide que ficar à frente de todos não é o seu negócio.

Bem, se você correr mais rápido, deixará os outros para trás, você está na frente, você é um sucesso. Você terá uma coroa de louros, um mausoléu, ou construirão um enorme obelisco em sua homenagem, na Place de la Concorde ou em qualquer lugar surgirá um enorme monumento, mais alto que os outros. No Rio de Janeiro também temos um obelisco na parte central da cidade. Quem se lembra em honra de quem? O importante é que fique bem visível.

Décadas atrás, com o HIV em todos os lugares, havia uma luta para que fossem autorizadas campanhas publicitárias pelo uso de preservativos, contra todos os protestos chocados dos conservadores de sempre. Carlos Minc, então secretário do Meio Ambiente no Rio, teve uma ótima ideia: pediu para o pessoal de escola de samba costurar uma gigantesca camisinha, e em plena luz do dia, um helicóptero alugado foi baixando a camisinha sobre o obelisco no centro da cidade. Não há mídia que resista à visão da gloriosa ereção recebendo o preservativo, sensibilizando milhões de brasileiros para o não menos gigantesco problema da AIDS no Brasil. Ninguém mais achava absurdo discutir AIDS e preservativo. Com que rapidez o sentido do sucesso pode mudar: contribuir para uma coisa útil.

Frans de Waal, em seus estudos apurados sobre Our Inner Ape (O primata dentro de nós) comenta uma notícia de jornal norte-americano, sobre uma mulher presa por amamentar um bebê em um supermercado. Como os americanos podem ficar tão chocados ao ver um seio, pergunta de Waal, quando você pode vê-los aos pares em qualquer praia da Europa? Os americanos consideram armas algo natural, mas a visão de um seio assusta, rompe com as normas sociais. É tudo uma questão de normas sociais, muitas vezes ridículas ou divertidas, mas é mais importante nos preocuparmos com direitos humanos.

As normas podem mudar, os humores sociais podem mudar, mesmo que pareçam tão rígidos e até sejam eternos frente ao curto prazo das nossas vidas. A escravidão há pouco mais de um século era considerada algo natural, da mesma forma o colonialismo nos tempos do meu pai e mesmo na minha juventude. O apartheid na África do Sul foi ontem. Na Palestina, continua. Conseguimos avançar nesses dramas, mas devemos considerar os novos desafios, que envolvem uma profunda mudança cultural, uma abordagem civilizada e solidária de como nos organizamos como sociedade.

Sabemos tudo sobre as dinâmicas desastrosas que enfrentamos, cabem em um parágrafo. Estamos destruindo a vida neste planeta, embora tenhamos toda a tecnologia necessária para reverter a tendência. Estamos mantendo mais da metade da população mundial na pobreza, em condições humilhantes, embora o que produzimos em todo o mundo seja equivalente a 20 mil reais em bens e serviços por mês por família de quatro pessoas. Bastaria uma moderada redução da desigualdade para assegurar a todos uma vida digna e confortável. Isso vale também para o Brasil, com o equivalente de 11 mil reais. E destruir a Amazônia faz algum sentido?

Os recursos financeiros necessários para consertar tanto o meio ambiente quanto os dramas da desigualdade correm livremente em investimentos especulativos, embora saibamos muito bem o que fazer para torná-los produtivos. No mundo morrem anualmente de fome cerca de 6 milhões de crianças. No Brasil temos 20 milhões de pessoas passando fome, num país que produz o equivalente a 3,2 quilos de grãos por dia por pessoa. Para os traders que negociam os grãos, é mais rentável o mercado externo. É preciso ser mais claro?

Temos o dinheiro, temos a tecnologia, temos estatísticas detalhadas sobre cada drama, em cada canto da terra. Temos até instruções passo a passo nos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU para 2030. Mesmo assim, apenas olhamos e balançamos a cabeça. Nossos problemas não são econômicos, são uma questão de organização social e política. É uma questão de mudança cultural. Sentimo-nos institucionalmente desamparados. E a ética tem muito a ver com os desafios.

Peter Drucker tinha uma compreensão profunda do desafio quando escreveu, que “não haverá negócios saudáveis ​​em uma sociedade doente”. Podemos levar essa compreensão para a nossa vida cotidiana: não haverá vida digna em um planeta doente. Por quanto tempo o homo sapiens que temos dentro de nós seguirá repetindo o “the business of business is business”, idiotice de Milton Friedman que livrava as corporações da responsabilidade social e ambiental. O sucesso de Friedman se deveu essencialmente ao fato de ele trazer lustro acadêmico àquilo que as corporações querem, que é pegar qualquer coisa, a qualquer custo, sem qualquer regulação e isso parecer legítimo. Vemos nos noticiários de TV homens adultos pulando como primatas, e entoando Greed is Good (ganância é bom), no fechamento do dia em Wall Street. Não, Greed is not Good. Nós temos que construir um novo normal.

Temos nos alimentado, e certamente fomos alimentados, com uma simplificação cultural: é preciso correr e alcançar “o sucesso”. E sucesso é medido na quantidade de dinheiro que você ganha, mas dinheiro é riqueza individual, não é bem comum. Não é melhoria para a comunidade na qual você se insere e com a qual contribui, tampouco para a construção de um planeta saudável. Tenho na minha mesa a edição brasileira da revista Forbes, apresentando os 315 bilionários que temos no país. Os escolhidos para a capa estão sorrindo: é um sucesso para um bilionário estar na capa da Forbes. Antes de pensar em maldade, precisamos dar uma boa chance à ignorância.

Ter sucesso por meio do acúmulo de riqueza tende a significar que foi “uma conquista”. A implicação é que é “merecida”. Em um livro inspirador, Gar Alperovitz e Lew Daly chamaram a moderna acumulação de riqueza de Apropriação Indébita. É o título do livro inclusive, em que eles mostram que todo o progresso que tivemos resultou basicamente do progresso tecnológico, que em si é resultado de construções sociais, da eletricidade à eletrônica ao DNA, à biologia moderna e à internet. Mariana Mazzucato deu mais força ainda a essa compreensão em seu O Estado Empreendedor, mostrando a dimensão social e generalizada dos avanços.

Joseph Stiglitz mostra que atualmente as fortunas são essencialmente construídas a partir de atividades especulativas, juros, dividendos e organização de monopólios, ao invés do lucro resultante da contribuição produtiva para a sociedade. Marjorie Kelly e Ted Howard chamam isso de extractive capitalism, mostrando que a riqueza extraída é muito maior do que a contribuição produtiva, gerando um resultado líquido de extração. Thomas Piketty enterrou o que restou da aparência de legitimidade do capitalismo, em seu estilo, sob montes de páginas, mas também com um raciocínio muito sólido: a contribuição produtiva para a sociedade e o acúmulo de riqueza tornaram-se rodas separadas. E rodas separadas no veículo econômico não funcionam. Não é apenas ilegítimo, simplesmente não está funcionando. O PIB mundial cresce a um ritmo médio de 2% a 2,5% ao ano, mas a especulação financeira rende cerca de 7% a 9% nas últimas décadas. O dinheiro obviamente tem ido para onde paga mais. O Brasil está se desindustrializando.

A chave para as novas tendências reside na compreensão de como vinha funcionando o progresso econômico e social até há algumas décadas atrás, e como está sendo transformado. O principal insumo produtivo, ou fator de produção, hoje é o conhecimento e a tecnologia incorporados aos processos produtivos. A agricultura e o controle da terra eram o principal fator de produção séculos atrás. Depois, com revolução industrial, vieram a máquina e a propriedade da fábrica. Hoje, com a revolução digital, é o insumo imaterial, o conhecimento, a informação, o dinheiro virtual e as diversas dimensões da tecnologia, que se tornaram o motor propulsor da economia. Isso muda as regras do jogo, abre novas oportunidades: Se uma pessoa tem uma ideia inovadora, essa ideia pode se espalhar pelo mundo sem nenhum custo adicional. O conhecimento é um bem comum. O dinheiro que está nos bancos é de quem?

Se você produz bicicletas, produzir para mais pessoas envolve custos adicionais. A ideia é diferente. Depois de cobrir os custos de gerá-la, é muito mais produtivo para a sociedade deixar a ideia fluir do que multiplicar patentes e gerar escassez artificial. Em tempos de pandemia, milhões morrem enquanto a Big Pharma mantém suas patentes pré-históricas de 20 anos. A inovação deve certamente ser recompensada, mas na devida proporção dos insumos e no respeito ao fato de que o conhecimento livremente acessível tem um enorme efeito multiplicador. Colocar pedágios sobre o acesso às ideias resulta em fortunas para poucos, enquanto a colaboração gera um progresso generalizado de enriquecimento coletivo. Tim Berners-Lee não patenteou a World-Wide-Web, não fez fortuna individualmente, com seu www. Permitiu que bilhões aumentassem sua produtividade pelo mundo afora. Precisamos de inteligência social e ambiental, não apenas da capacidade de superar os outros. Sucesso pela contribuição, mais do que do que truculência e esperteza.

Podemos ver isso de outra maneira. Temos grande número de pesquisas e estudos sobre a felicidade humana. Você pode pensar que ter dinheiro é uma boa medida: não é. Ou melhor, se você é muito pobre, ter algumas centenas de reais a mais acrescenta muito ao seu sentimento de felicidade. Mas depois que você atinge um limite relativamente modesto, da ordem de menos de 100 mil reais por ano, acumular dinheiro continua enquanto ilusão, mas o sentimento de felicidade estagna. Passam a ter mais importância o enriquecimento social e cultural, as relações familiares, é uma variedade de objetivos que tendem a predominar. Um milhão a mais nas mãos de um milionário? Isso pode levantar seu obelisco – e ele vai batalhar por sempre mais – mas não o deixará mais feliz. Os poucos recursos suplementares colocados na base da pirâmide geram não apenas muito mais felicidade: eles reduzem drasticamente o sofrimento. Os mesmos recursos que já temos, mas melhor distribuídos, aumentariam radicalmente a sua produtividade social. Tornar um planeta menos desigual não é apenas uma questão de justiça, é também uma questão de inteligência social e econômica.

Então, do que se trata? Fazer alguns obeliscos a mais e mais altos, ou gerar sustentabilidade e bem-estar geral? Lutar contra rivais, derrotar concorrentes, poderia eventualmente fazer algum sentido quando você competia para produzir mais e melhores bens e serviços para a sociedade, mas na era da revolução digital, quando a colaboração é muito mais produtiva do que a competição, o que resta é a obsessão pelo sucesso individual, mostrar mais dinheiro, se mandar para o espaço. “S’envoyer en l’air”, como os franceses chamariam, com um objetivo mais sábio e melhores resultados. Cada um de nós contribuiu com a viagem do Bezos, ao realizarmos compras com a Amazon.

A lição básica é simples: seja qual for o seu sucesso individual, se não for acompanhado do sucesso ou do bem-estar da sociedade como um todo, bem como da restauração do planeta, você é apenas um oportunista. Possivelmente bem-sucedido, mas ainda oportunista. O importante não é correr mais rápido, mas entender para onde estamos indo. Não apenas sendo inteligente em termos dos meios que você usa, mas inteligente em termos de resultado sistêmico.

Sucesso individual não faz sentido se prejudica o bem-estar social.

Quanto ao obelisco, eu teria algumas ideias.

* Economista brasileiro, de origem polonesa. É professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Fonte:  https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/breve-nota-sobrea-futilidade-do-sucesso/



A árvore de Natal

 Gilberto Amendola*

Árvore de Natal

 Imagem ilustrativa de árvore de Natal ao lado de presentes Foto: Pixabay

Era um grande evento apagar a luz da sala e admirar o funcionamento daquele xing ling

29 de novembro de 2021

Quatro semanas antes do Natal, às vezes um pouco antes, minha mãe tirava a árvore da caixa. Lembro do cantinho da sala em que ela era montada. Na época, ninguém falava em feng shui, mas os efeitos positivos daquele elemento no nosso ambiente eram visíveis.

Na montagem, enfeites de outros natais se desmanchavam nas minhas mãos. Quantas bolas vermelhas eu não quebrei por pura falta de coordenação motora? Para cada desastre, a promessa de um passeio no centro da cidade. Uma tarde na Rua 25 de Março, comprando pisca-piscas e outros adereços natalinos, era a minha ideia de felicidade.

Os pisca-piscas merecem um capítulo à parte. Era um grande evento apagar a luz da sala e admirar o funcionamento daquele xing ling. Nem sempre os pisca-piscas correspondiam à nossa expectativa. Na maioria das vezes, as luzinhas já vinham queimadas ou funcionavam apenas por dois ou três dias. Na véspera do Natal, e isso era uma regra, nada mais piscava na nossa árvore.

A gente pendurava tantos badulaques que ela sempre ficava torta. Então, eram horas tentando equilibrar o peso de bolas, trenós, anjinhos e laços. O esforço nunca resolveu a questão da “tortice” da árvore – simplesmente nos acostumamos com a ideia de ela ter nascido assim. 

Tínhamos também um pequeno presépio. Além de Jesus na manjedoura, recordo de uma ovelhinha que, originalmente, não fazia parte daquele contexto religioso. Se não me engano, era de um brinquedo, uma “fazendinha” que ganhei quando tinha 4 ou 5 anos.

Lembro de um Natal, eu já não era mais criança, em que transformei três minicraques (bonequinhos de jogadores de futebol) em reis magos. Em 1998, meu presépio teve Ronaldo, Romário e Dunga. 

Pois é, tudo isso para dizer que estou pensando em comprar uma árvore de Natal. Sei lá, me bateu essa vontade. Moro sozinho, não tenho filhos, mas ando apegado à ideia de uma árvore. 

Não uma árvore como aquela da minha infância. Acho que não consigo mais reproduzir a beleza inocente daqueles momentos com a minha mãe. 

Hoje, penso em uma árvore pequena, discreta, agnóstica, quase cínica. Uma árvore que fique bonita ao lado de umas garrafas de uísque.

Essa árvore, creio, seria o meu comentário irônico sobre o espírito natalino (que chatice, eu sei). Quero de novo apagar as luzes e ver o pisca-pisca da 25 Março cumprir o seu destino inescapável de me frustrar. No mais, é esperar que o Papai Noel não seja negacionista e já tenha tomado sua terceira dose de vacina.

*Jornalista

Fonte:  https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,a-arvore-de-natal,70003911463

A discórdia divina

 Leandro Karnal*

Páris escolhe a deus mais bela, em tela do alemão Lucas Cranach: conflito criado por Éris, a discórdia 

Páris escolhe a deus mais bela, em tela do alemão Lucas Cranach: conflito criado por Éris, a discórdia Foto: Reprodução/Meropolitan Museum

Achar-se superior aos outros é atitude que agitava o mundo e o Olimpo ainda antes da internet

28 de novembro de 2021

Ela era rancorosa. Adorava semear intrigas. Amarga ao extremo, fazia detrações contínuas. Todas passaram a evitar Éris, a encarnação da discórdia. Deixou de ser convidada e ficou ainda mais amarga. Pior, houve uma disputada festa de casamento e ela desejava muito ter recebido a cartinha com seu nome. O envelope nunca chegou. Vingou-se com um plano maligno que provocaria uma guerra longa e mudaria toda a literatura ocidental. 

“Não me queriam com os noivos? Sem problema. Vou estragar o banquete deles!” Éris mandou forjar uma belíssima fruta de ouro. Era uma obra de arte, um troféu. A deusa das dissensões sabia muito sobre a natureza de todos e apostou na vaidade como mecanismo de desforra da sua dor social. Para aumentar, ela cunhou sobre a peça: “Para a mais bela”. Viraria um prêmio disputado pela soberba das deusas. Daria confusão saber quem obteria a peça e era, exatamente, o que Éris desejava. 

O plano foi executado com perfeição. Ao perceberem a fruta dourada sobre a mesa, instalou-se ruidosa discussão. Afrodite/Vênus (registro os nomes grego e romano) pegou-a com natural homenagem: ela era a deusa do amor e da beleza. Palas Atena/Minerva era igualmente cheia de ideias elevadas sobre si. A esposa do chefe, Hera/Juno, achou que o posto lhe dava a vitória no certame indireto que o plano malévolo de Éris engendrava. Zeus/Júpiter tinha um grave problema pela frente: indispor-se com qual das três mulheres? Tema delicado. 

O caminho é conhecido por quem lê mitologia. O poder olímpico mais alto encarregou um pastor-príncipe, Páris, de escolher o destino do fruto da discórdia. O juiz escolheu Vênus como a vencedora, por ela ter lhe oferecido o amor de Helena, a mais bela das mortais. As outras deusas ficaram muito irritadas e todo o conflito está na origem da Guerra de Troia. Achar-se superior aos outros e querer o reconhecimento de tal desnível agitava o mundo ainda antes da internet. 

Meu objetivo não é o choque registrado na Ilíada de Homero. Quero falar de Éris. Ela era filha da rainha do Olimpo. Sua mãe a rejeitara. Motivo? Não era muito bonita. Os romanos a batizaram, mais latinamente, de Discórdia. Rejeição da mãe, falta de beleza? Fica compreensível que ela tivesse o gênio difícil. Em outra fonte, Hesíodo, o escritor associa a deusa à noite (Nix) e a torna mãe de entidades tristes como Hisminas (deusa das discussões), Disnomia (deusa do desrespeito) e o triste Ponos, entidade do desânimo e da fadiga. 

Deusa amarga, rejeitada e geradora de sérios atritos entre homens e deuses. Sempre admirei quem atribuísse seus maus bofes, seu azedume a uma entidade externa. Você tende a brigar muito? Não, responderia um grego piedoso, foi a deusa Éris que falou por mim. Bebe demais? Não. São espíritos alcoólicos que me induzem para que eu me encharque no vício. Deusas, deuses, espíritos, almas perdidas, demônios, entidades malévolas seriam os verdadeiros causadores do mal. As vozes me ordenaram que atacasse você. Obsessores fizeram com que eu postasse este ataque. 

A questão central é óbvia: a omissão do sujeito e o ato de delegar suas escolhas a terceiros, visíveis ou invisíveis. Não compartilho dessa crença consoladora. Meus ressentimentos brotam de mim. Sou minha Éris quando, por falta de autoconhecimento, sou controlado pela dor ou pelo veneno da inveja. Eu crio o veneno, elaboro e destilo o fel, bebo, cuspo e vomito sobre o mundo. O ódio é meu. O desânimo me pertence. Provocar discórdia pode ser um prazer Karnal. Meus defeitos possuem meu nome e sobrenome. Creio que alguma virtude que eu possa ter, igualmente, apresente minha rubrica autoral. Mesmo que houvesse espíritos malignos ou benignos, entidades inspiradoras ou destruidoras da paz, eu teria de dar ouvido a elas. Assim como a lei brasileira não vai me livrar da cadeia se eu ceder à “lábia” de um criminoso e participar de um ato vil, ouvindo santos ou bandidos eu serei Leandro sempre. Sempre acreditei nisto: a absoluta responsabilidade dos meus atos. 

Não interpreto essa ideia (em parte elaborada com a leitura de Sartre) como vaidade de me achar importante. Não! Considero uma espécie de prisão que encerra minha consciência e que me leva a aceitar ou rejeitar influências. 

Como Hamlet, posso dizer a algum Laertes ofendido que, se a loucura do príncipe o ofendeu, eu também sou inimigo dela. É um excelente álibi. Pelo menos posso invocar a multiplicidade de ações que eu posso engendrar. Sou multifacetado e vivo no tempo soberano, logo, o Leandro de ontem agrediu? Lamento, era eu mesmo, integralmente, mas hoje eu percebo que fui idiota. Não foi Éris, não foi o Hamlet-louco, porém, Leandro. O Leandro mais calmo, hoje, insiste no pedido de perdão. Um dia, os deuses, contemplando as chamas de Troia e as muitas tragédias provocadas pela fruta dourada, teriam pensado: tudo isso foi culpa da deusa terrível. Os deuses poderiam fazer psicanálise? Tenho esperança. 

* Leandro Karnal é historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras e autor de A Coragem da Esperança, entre outros

Fonte:  https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,a-discordia-divina,70003910393

'Em dez anos, dinheiro em espécie deve desaparecer', diz autor do livro 'O Futuro do Dinheiro'

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Eswar Prasad, professor da Universidade Cornell e autor de 'O Futuro do Dinheiro' Foto: DIVULGAÇÃO/CORNELL UNIVERSITY

Eswar Prasad, ex-chefe da divisão de estudos financeiros do FMI, diz que o avanço do dinheiro digital vai praticamente acabar com o uso de cédulas de papel nas principais economias

Ricardo Leopoldo, O Estado de S.Paulo

29 de novembro de 2021 | 15h00

A adoção de moedas digitais de bancos centrais (CBDCs, na sigla em inglês) das maiores economias do planeta, que poderá ocorrer em 5 anos, deve impor muitas dificuldades às divisas de mercados emergentes, pois correrão o sério risco de sofrerem um processo de dolarização ou euroização digital. 

A avaliação é de Eswar Prasad, professor da Universidade Cornell e ex-chefe da divisão de estudos financeiros do Fundo Monetário Internacional (FMI). "Todos os mercados emergentes enfrentarão muito mais desafios quanto ao ingresso de capitais. A volatilidade da taxa de câmbio vai aumentar, o que poderá levar investidores no Brasil e na Índia a buscar ativos denominados em outras moedas fortes, como o euro e o dólar digital", diz, em entrevista exclusiva ao Estadão/Broadcast.

Na avaliação de Prasad, o avanço dos padrões monetários digitais tornará residual o uso do dinheiro em espécie no mundo no horizonte de 10 anos, o que é um dos temas do seu livro O Futuro do Dinheiro, que está na lista das melhores publicações de 2021 do Financial Times.

Para o acadêmico, não há o risco de um estouro de uma bolha de criptoativos impactar o sistema financeiro mundial no momento, pois a exposição de grandes instituições a estes ativos é limitada, embora destaque que o valor de capitalização já é imenso, próximo a US$ 2,46 trilhões. "Talvez a normalização das políticas monetárias de forma internacional, dado que as taxas de juros estão muito baixas, poderá levar investidores a deixarem este mercado." Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

O senhor avalia que o presidente do Federal Reserve, Jerome Powell, no seu segundo mandato implementará regulações firmes sobre criptoativos e levará o Fed a criar o dólar digital?

Acredito que o presidente Powell e outras autoridades do Fed estão preocupados com as implicações dos criptoativos sobre a estabilidade dos mercados financeiros. Há uma especial atenção ao eventual uso destes ativos para atividades ilegais, como financiamento de terrorismo e lavagem de dinheiro. Eu espero que o Congresso adote muitas regulações nesta frente, embora a tecnologia associada aos criptoativos tragam alguns benefícios como melhorar o sistema de pagamentos de varejo e atacado nos Estados Unidos. Acredito que o Fed está se movendo de forma mais devagar do que outros bancos centrais sobre o tema, mas está na direção certa. Todos os BCs são conservadores e especialmente o Federal Reserve, devido à dominância do dólar no sistema financeiro internacional e por isso será mais resistente para adotar sua moeda digital. Esta é inclusive uma decisão que deve ser tomada pelo Congresso e pelo governo dos EUA, não pelo Fed.

O senhor não avalia que o presidente Joe Biden e o Congresso aprovarão a adoção do dólar digital neste mandato do chefe de Estado?

O Fed poderá realizar alguns experimentos limitados em relação ao dólar digital nos próximos dois ou três anos. Neste período, serão iniciados projetos mais avançados de CBDCs pela China, Suécia e Japão. Todos os principais bancos centrais devem começar entre três a cinco anos experimentos com suas respectivas moedas digitais, entre eles o BCE (Banco Central Europeu) e Banco da Inglaterra. O Fed será mais lento. Contudo, há uma observação sobre a cautela do Fed em adotar a sua CBDC. A China deve implementar o yuan digital de alguma forma em 2022 ou 2023 e a tecnologia do país asiático pode estabelecer o padrão para moedas digitais de outros países. A questão é saber se os EUA querem exercer um papel de liderança na determinação destes padrões tecnológicos ou se perderão terreno para a China. Nos próximos cinco anos, o uso de dinheiro em espécie pelo mundo vai diminuir de forma substancial e, em dez anos, acredito que será muito difícil imaginar que qualquer um de nós estará ainda utilizando cédulas de dinheiro.

Nos próximos cinco anos, o uso de dinheiro em espécie pelo mundo vai diminuir de forma substancial e, em dez anos, acredito que será muito difícil imaginar que qualquer um de nós estará ainda utilizando cédulas de dinheiro - Eswar Prasad, autor de 'O Futuro do Dinheiro'

Se o Fed e o BCE não criarem suas moedas digitais em cinco anos, haverá o risco de ocorrer um crescimento preocupante do mercado de criptoativos, que hoje já está ao redor de US$ 2,46 trilhões?

Isto é verdade. Quanto mais os bancos centrais demorarem para adotar as versões digitais das suas moedas mais os criptoativos poderão crescer e ganhar fatia de mercado em transações monetárias, inclusive com a criação de novos ativos que poderiam ter outras funções.

Não seria perigoso o avanço acelerado dos criptoativos para os bancos centrais, pois o aumento expressivo deste mercado poderia limitar a capacidade dos BCs para emitir dinheiro?

Sim. Mas penso que há várias boas razões porque os BCs são conservadores sobre o tema. Uma delas é que se eles se moverem de forma muito agressiva para emitir CBDCs poderão prover um sistema de pagamentos de baixo custo, o que seria maravilhoso para a inclusão financeira, mas pode coibir a inovação no sistema de pagamentos pelo setor privado. Outro fator é que a criação de contas em CBDCs para os cidadãos pode levar à desintermediação financeira. Um elemento adicional é que, com a redução do uso do dinheiro em espécie, poderemos viver em uma realidade na qual potencialmente todas as transações financeiras poderão ser controladas por um provedor privado de pagamentos ou por BCs, o que levanta legítimas considerações sobre privacidade das pessoas. Além disso, surgirá um período que será extremamente desafiador para muitos mercados emergentes, especialmente os que têm moedas e bancos centrais que não são críveis. Se houver um volume bastante disponível pelo mundo do dólar, euro, iene e yuan digitais, ou mesmo o Diem, a stablecoin do Mega, estas moedas poderão ter maior credibilidade do que as divisas de diversos emergentes, o que poderá gerar um reordenamento do sistema monetário internacional. Muitas moedas poderão ser substituídas pelas principais divisas que serão ainda mais prevalentes. Todos os mercados emergentes enfrentarão muito mais desafios quanto ao ingresso de capitais. A volatilidade da taxa de câmbio vai aumentar, o que poderá levar investidores no Brasil e na Índia a buscar ativos denominados em outras moedas fortes, como o euro e o dólar digital.

Todos os mercados emergentes enfrentarão muito mais desafios quanto ao ingresso de capitais. A volatilidade da taxa de câmbio vai aumentar, o que poderá levar investidores no Brasil e na Índia a buscar ativos denominados em outras moedas fortes, como o euro e o dólar digital. - Eswar Prasad

Neste cenário, a única saída para os mercados emergentes evitarem os riscos de dolarização ou euroização digital é terem políticas econômicas fortes e que geram inclusão social e crescimento?

Se um país não tem boas políticas macroeconômicas ele enfrentará desafios que poderão ser grandes. No passado, puderam ser adotados controles de capitais para proteger as moedas, mas em um mundo digital tais medidas serão muito mais difíceis para funcionar. Estes países devem ter atenção especial sobre as regulações dos criptoativos e stablecoins para atuar em suas jurisdições.

O avanço da digitalização proporcionará de forma indireta uma concentração de moedas pelo mundo.

Exato. No mundo das moedas digitais oficiais, veremos este fenômeno, que ocorrerá por causa de novas tecnologias com as quais algumas divisas serão ainda mais dominantes e muitas outras terão grandes ameaças às suas existências.

Quais são os principais riscos que os criptoativos impõem à estabilidade financeira mundial e o que as autoridades governamentais, especialmente nos EUA, deveriam fazer sobre o tema?

Há dois desafios que governantes e reguladores enfrentam: um deles é como obter os benefícios das tecnologias relacionadas aos criptoativos, como blockchain, sem passar por riscos adicionais que tais ativos podem provocar. Em segundo lugar, devem ser aplicadas as atuais regulações sobre os criptoativos ou deve ser criado um arcabouço regulatório totalmente novo para normatizá-los? Não há ainda boas respostas para tais dúvidas.

O senhor considera que há uma bolha de criptoativos? Como autoridades internacionais deveriam agir para conter expressivas correções deste mercado, o que poderia atingir o sistema financeiro, sobretudo grandes bancos que emprestam recursos para plataformas de negócios de cripto ativos, como Coinbase?

Há sim esta preocupação dado que o mercado de criptoativos já é imenso. Contudo, no momento, o risco não parece ser muito grande, dado que as tradicionais instituições financeiras não estão adotando imensas posições neste mercado, o que ocorre mais com investidores individuais. 

Grandes instituições, como JP Morgan, Goldman Sachs e BlackRock, oferecem produtos financeiros relativos a criptoativos. Começa a ocorrer uma exposição do tradicional sistema financeiro aos criptoativos que pode crescer bem mais e ficar arriscada para a sua estabilidade?

As vezes eu observo criptoativos e pergunto para mim mesmo de onde vem este valor de mercado. No caso do Bitcoin, ele parece que ocorre devido à sua escassez, pois foram criadas 21 milhões de Bitcoins e 19 milhões já foram obtidas. Mas, no caso de outros criptoativos, o valor total deste mercado implica em vários riscos. Em relação aos grandes bancos, minha percepção é de que não estão tão expostos a criptoativos e atuam com empréstimos limitados a companhias deste setor. Caso ocorra uma forte correção dos criptoativos, não acredito que provocaria graves consequências para o mercados financeiros em geral na fase atual. É claro que, se o valor de mercado destes ativos aumentar cinco ou dez vezes, em pouco tempo os riscos de correção serão bem maiores. Talvez a normalização das políticas monetárias de forma internacional, dado que as taxas de juros estão muito baixas, poderá levar investidores a deixarem este mercado.

O senhor acredita que as CBDCs deveriam ter acesso restrito a quem reside no país de emissão ou poderiam ser acessíveis também pelas pessoas que vivem em outros países? O senhor defende um limite que cada cidadão pode ter de CBDCs em suas carteiras digitais para proteger os bancos comerciais?

Os bancos comerciais são muito importantes para os sistemas financeiros e eles enfrentam grandes desafios, como as fintechs e CBDCs. Há meios tecnológicos para limitar o acesso internacional de CBDCs. A China, por exemplo, já manifestou que o yuan digital não será negociado fora do país. No entanto, será uma tentação para a China empregar sua moeda digital como um meio internacional de pagamentos, especialmente para transações comerciais. As CBDCs dos principais países serão amplamente disponíveis pelo planeta e criarão vários desafios para diversas economias.

O senhor avalia que o modelo híbrido de CBDCs, emitidas pelos BCs e distribuídas pelos bancos comerciais, é a melhor solução para ter moedas digitais operando sem trazer o risco de destruição do sistema bancário?

Este é um bom modelo no qual os bancos centrais criam a infraestrutura de pagamentos e distribuem CBDCs na forma de tokens digitais, como hoje os BCs distribuem dinheiro em cédulas para os bancos comerciais. Este será um bom equilíbrio a fim de evitar a desintermediação financeira, mantendo a competição de provisões de pagamentos das instituições privadas.

Fonte:  https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,eswar-prasad-livro-futuro-dinheiro-entrevista,70003912133

domingo, 28 de novembro de 2021

Como o homem esqueceu o mais valioso tesouro, o silêncio

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O historiador francês Alain Corbin conta a genealogia do universo das emoções coletivas ligadas à ‘História do Silêncio

Elias Thomé Saliba, O Estado de S. Paulo

27 de novembro de 2021 | 16h00

Sonho
Cena com Stephanie Cumming no filme ‘Shirley: Visões da Realidade’ (2013) recria tela do pintor americano Edward Hopper Foto: JERZY PALACZ

Muitos imaginam que aquele ritual do “minuto de silêncio”, hoje quase diário em face do luto de tantas mortes causadas pela pandemia, originou-se ou da sugestão de um jornalista australiano para o dia do armistício em 1919 ou, quando, em 1912, deputados portugueses receberam a notícia da morte do Barão do Rio Branco. Tudo muito longe da verdade, pois o “minuto do silêncio” é a transposição de uma prática religiosa ancestral para fora da esfera sagrada: é preciso recuar séculos para entender este ritual, pois ele é um pálido resquício de um amplo universo mental do silêncio que praticamente desapareceu.

Tarefa difícil, pois o olhar do historiador precisa triangular entre as práticas, as paisagens sonoras e as representações do silêncio. Estas últimas são tão fortes que se tornaram onipresentes e partes da realidade. Depois, onde encontrar as fontes deste mundo acústico, intrinsecamente refratário ao registro escrito? Atualmente é difícil fazer silêncio, já que a sociedade nos impõe uma compulsória submissão aos ruídos, dificilmente perceptível, já que nossa própria personalidade sensível foi profundamente modificada. O essencial da mudança reside na hipermediatização, na compulsória obrigação de conexão digital permanente e no incessante fluxo de palavras e imagens que se impõe ao indivíduo, conduzindo-o a ter medo do silêncio. “A palavra impede o silêncio de falar”, escreveu Ionesco. Porque o silêncio não é simplesmente a ausência de ruído. Quase esquecemos o que ele é. As pistas sonoras mudaram de natureza, tornaram-se mais fracas e perderam o seu antigo significado religioso e instrospectivo. O medo, e mesmo o pavor, causado pelo silêncio se intensificou. Entre muitas reflexões surpreendentes esta é a grande contribuição de Alain Corbin, em História do Silêncio - do Renascimento aos Nossos Dias, uma inspiradíssima genealogia do universo das emoções coletivas ligadas ao silêncio.

DEUS 

A história começa com a sondagem da representação do silêncio de Deus, que provém de tempos bem mais antigos, mas ainda persiste no Renascimento, apesar do intenso processo de dessacralização. Foi esta representação que coincidiu com as práticas do silêncio nas igrejas, nos monastérios – ambientes nos quais o silêncio era um caminho para encontrar-se consigo mesmo e encontrar alguma conexão com Deus. Saboreava-se a profundidade e as qualidades do silêncio, visto como a pré-condição para a contemplação, meditação e oração. Após o Renascimento e durante o século 17, acrescentaram-se outras práticas, que, por sinal, coincidiram com a ascensão da subjetividade e do próprio romance como gênero: o silêncio, cada vez mais dessacralizado, era essencial para o devaneio e a imaginação. Até mesmo para os artistas: Corbin mobiliza uma série de exemplos, de Claesz a Caravaggio, para os quais pintar era um discurso silencioso. As naturezas-mortas foram, neste sentido, metáforas plásticas que exprimiam à sua maneira o silêncio de um luto antecipado, com as figuras em estado de repouso e tranquilidade, enfatizando a inconsistência e a nulidade das criaturas diante da finitude. “A pintura é poesia muda”, escreveu Lessing, a propósito da Montanha com a Tempestade se Aproximando, de Rembrandt, quando, antes do trovão e do relâmpago, a tempestade se anuncia por um “espessamento do silêncio”.

Claro que a paisagem sonora também marcou tal mudança de cenário na virada para a modernidade. A cidade antiga ou a aldeia rural ainda conheciam o silêncio quase completo, que aumentava a sensibilidade auditiva dos seus habitantes, tornando mais intensas as sonoridades do trovão e da chuva, dos insetos ou mamíferos, dos homens e mulheres envolvidos no trabalho, dos sinos das igrejas e capelas. Como observou Huizinga, no outono do mundo medieval o contraste entre o silêncio e o ruído, entre a luz e as trevas, assim como entre o verão e o inverno, acentuava-se muito mais fortemente do que em nossos dias.

COSTUMES

A civilização dos costumes, que se desenvolveu ao menos a partir do Renascimento, traduzia-se pelo peso crescente das injunções do silêncio ligadas a uma interiorização das normas. Depois vieram as práticas de imposição do silêncio nas instituições. Nas prisões e sistemas penitenciários criados no século 19; nas escolas, que se tornaram canônicas a partir da época napoleônica; e no exército, que ordenava o “silêncio das fileiras” através da obediência aos apitos e aos tambores que ritmavam os momentos de silêncio e de fala. Já o saber calar-se, ser discreto e prudente, transformou-se no próprio fundamento da esfera privada, em plena ascensão a partir do final do século 18. A intimidade dos lugares, da alcova, do quarto e sua mobília, como a da casa, estava profundamente ligada ao silêncio. Contudo, antes da revolução oitocentista do conforto doméstico, os cômodos eram completamente destituídos de propósitos ou funções específicas e a vida continuava mais coletiva e publicamente exposta do que hoje. Relatos de época, compilados por Corbin, mostram sanitários domésticos com vários assentos para facilitar a conversação – e muitas gravuras descrevem casais na cama ou no banho em atitudes despreocupadas, enquanto seus atendentes serviam ou amigos sentavam-se próximos, sem nenhuma preocupação com a privacidade.

Os gregos representavam o silêncio por meio do deus Harpócrates, sempre com um dedo sobre a boca. Esta figura marcou profundamente os numerosos tratados do século 17 que se dedicaram às táticas do silêncio, como o do jesuíta Baltasar Gracián, que definiu: “O soberano mais sábio é o que sabe calar-se, pois o silêncio é o único que propicia o bom governo que é o agir sem verborreia, e trocar o falar pelo fazer”. A surpreendente atualidade do conselho de Gracián fica por conta do leitor.

Corbin ainda reserva um bonito capítulo dedicado aos silêncios do amor e do ódio, explorando, sob forma de experimentos narrativos inspirados em Proust ou em poemas de Hugo e Leconte de Lisle, o fato de que no relacionamento amoroso há mais silêncio do que palavra e os amantes constituem, no fundo, dois conjurados do silêncio: transmitem pelos olhos o que eles têm no coração e se envolvem numa longa conversa amorosa, não compreendida pelos demais, pois os olhos dos apaixonados dizem as únicas palavras que importam. “Os amantes caminhavam/falavam, interrompiam-se e, durante os silêncios/Suas bocas calavam-se, suas almas cochichavam”, como tão bem poetizou Victor Hugo.

MODERNIDADE

 Já com o surgimento das grandes metrópoles do século 20 a nossa paisagem auditiva transformou-se numa enorme e variada lixeira. As metrópoles modernas dissiparam, por completo, uma cultura de referências estáveis e contínuas. Ganhamos muitas coisas importantes, mas certamente perdemos muitas outras – uma das quais foi, com certeza, esta peculiar sensibilidade humana à intensidade do som e ao ruído. O mais grave é que não nos apercebemos de ter perdido coisa alguma, porque há muito tempo concedemos à audição apenas um papel auxiliar. Esta espécie de surdez crônica incorporou-se de tal forma na vida cotidiana que desapareceu até mesmo de nossa consciência. É paradoxal, mas a capacidade contida no ato de ouvir, por ser muito mais involuntária, atinge-nos de forma muito mais intensa. Derrick de Kerckhove, sucessor intelectual de McLuhan, propôs o exercício simples de fecharmos os olhos e imaginarmos o mundo a nossa volta. Iríamos nos surpreender com o incontável número de sons, ruídos e, até, de conversas que conseguiríamos captar simultaneamente. Depois, ele sugere que todos abram os olhos e tentem continuar o mesmo exercício da escuta.

Será muito difícil, senão mesmo impossível, obter a mesma acuidade, pois nossas funções sensoriais são seletivas – para uma resposta eficiente a energia humana só pode dedicar-se a uma situação, já que nossos olhos consomem grande parte da nossa força mental. Monges tibetanos e poetas – como Verlaine ou Claudel – também recomendavam fechar os olhos, tanto como técnica de meditação quanto de tradução lírica do estímulo sinestésico. Tudo para enfrentar esta insidiosa tirania do olhar, amplamente disseminada pelo surgimento das megalópoles modernas e agravada pelo impacto do universo digital. O mais grave é que quando uma sociedade inteira sofre uma perda de audição, não sobra ninguém para contar o drama sofrido. Até um dia no qual, talvez surpresos, venhamos a redescobrir o valor do silêncio, muito além daquele minuto ritual, nossa derradeira homenagem à perda e ao luto.

Fonte:  https://alias.estadao.com.br/noticias/geral,como-o-homem-esqueceu-o-mais-valioso-tesouro-o-silencio,70003909860

Do fundo das águas secretas

LYA LUFT*

História Dentro da minha cabeça - História escrita por Hayley_catsz -  Spirit Fanfics e Histórias

"O que são essas coisas que ficam se mexendo dentro da minha cabeça?", perguntou a criança ao seu pai, que riu e disse algo como "São teus pensamentos, são as palavras. Todo mundo tem isso, todo mundo pensa".(Foi o que a criança respondeu quando a mãe mais uma vez repetiu seu refrão "criança não pensa".) Hoje muitas e muitas vezes me perguntam, a mim e a todos os que lidam com arte, de onde vêm as ideias, ou a chamada inspiração. Cada um vai dar uma resposta diferente, segundo seu jeito de ser, de viver, de trabalhar.

A minha resposta, sincera, que no curso do tempo não mudou, tem sido: tudo vem de dentro de mim, impreciso mas real. Eu só elaboro, arrumo, enfeito (ou pioro). Pois "o vento sopra quando e onde quer": posso ficar períodos sem nenhuma boa ideia, e de repente tudo começar a fluir. Não sou dos disciplinados, modelos para jovens escritores, que escrevem todos os dias. Quando nada tenho a dizer, fico quieta, que é, aliás, o que mais aprecio.

A chamada inspiração, palavra tão polêmica e questionável, é o movimento que nos leva a produzir alguma coisa. No meu caso, repito, está tudo lá dentro, no fundo das águas da mente, ou da alma, aqui a semântica pouco importa. Na verdade, tudo o que vivo, vejo, escuto, sonho, tudo o que me dizem, o que leio, o que vem em entrelinhas e no silêncio, as palavras duras e as amorosas, as alegrias e as injustiças, vai-se depositando no meu inconsciente (ou como quer que o chamemos), como aquela lamazinha no fundo de um aquário. Se ali mexo com um lápis (é só uma metáfora, gente...), esse depósito cria vida, se move, sobe à superfície. Em geral, é algo externo que de repente desperta o fundo das águas: um rosto, um telefonema, um movimento mínimo nas árvores, um sonho quando dormimos e do qual confusamente lembramos ao acordar, uma claridade na beira daquela nuvem. Move-se assim o material para a pintura, o romance, a música.

Assim são as ideias ou emoções que regem o que muitos artistas produzem: mas, embora vindo dessas águas escuras, não são necessariamente sombrias. Pois lá, junto com as pedras e perdas, estão depositados também os encantamentos que nos marcam para sempre. Não somos donos ou controladores dessa chamada inspiração: a palavra me incomoda, mas não tenho bom substituto. Por que me incomoda? Porque sugere algo caído do céu, uma luz que vem do alto, que nos faz sentar e trabalhar leves e alegrinhos. Às vezes, sim, escrevo com uma quase incontida alegria, se pudesse saía a dançar por cima dos telhados vizinhos(no meu caso, bastante improvável...). Outras vezes, me faz refletir, reescrever, desistir e deletar, andar pela casa, subir para o terraço, pensar em nunca mais escrever uma só palavra, depois voltar a este diminuto escritório e retomar a dura lida.

Assim emergem daquelas águas secretas, os primeiros pensamentos sobre o Natal: a árvore que vou enfeitar depois do feriado, as comidas a encomendar pensando nos que vão chegar, o carinho que me aquece sempre que penso neles (e nos que estão distantes e não poderão vir). Emoções como vaga-lumes luminosos que alegram os dias nada fáceis para ninguém neste planeta - que anda bem esquisito.

Texto originalmente publicado na edição de 12 e 13 de novembro de 2016

*Escritora

Fonte:  https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=a019cdc6c4974deef4d3cf92f70361c1 - Imagem da Internet

Filósosofo Yves Michaud e o “fim da arte” na Fundação EDP


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O filósofo francês Yves Michaud estará em Lisboa este sábado dia 27 para proferir uma conferência sobre arte contemporânea Eric Fougere/Corbis/ Getty Images

O filósofo e crítico de arte francês acaba de lançar um livro sobre a relação entre a hiper-estetização da vida contemporânea e a vaporização da arte.

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Exposição de Carlos Bunga na Central Tejo daniel rocha
 
 
O filósofo francês Yves Michaud estará em Lisboa esta semana para proferir uma conferência sobre arte contemporânea, uma das suas áreas de intervenção em que tem acumulado polémicas, nomeadamente com o livro que lançou este ano com um título provocador em que anuncia o fim da arte  "L'art, c'est bien fini”.Intitulada “Situação da arte contemporânea: profusão e desorientação”, a conferência, que terá lugar na Central Tejo – Fundação EDP, no sábado, é uma extensão do tema do último número da revista Electra, uma publicação bilingue (português e inglês) editada pela Fundação EDP, que organiza o seu n.º 14 em torno de um dossier dedicado à arte contemporânea.

Morreu Almudena Grandes, a escritora que deu voz aos derrotados do século XX espanhol

 

Escritora tinha 61 anos Ulf Andersen/Getty Images

Morreu na tarde deste sábado, vítima de cancro, aos 61 anos, a escritora madrilena Almudena Grandes. Autora do romance As Idades de Lulu, há muito tido como um clássico moderno da literatura erótica, Almudena Grandes empenhou-se nas últimas décadas a escavar a História do franquismo, desenterrando vários episódios desconhecidos, que parecem ter ficado escondidos sob os escombros da guerra.

Morreu na tarde deste sábado, vítima de cancro, aos 61 anos, a escritora madrilena Almudena Grandes, segundo noticiou o diário El País. Formada em História, estreou-se na literatura em 1989 com o romance As Idades de Lulu, há muito tido como um clássico moderno da literatura erótica, um enorme êxito de vendas e da crítica numa sociedade que se queria livrar de vez do moralismo e do cinzentismo franquista — romance adaptado ao cinema por Bigas Luna, em filme homónimo. Outras das suas produções literárias tiveram também adaptação cinematográfica, entre elas o romance Malena es un nombre de tango (original de 1994).

No entanto, há mais de uma década que Almudena Grandes vinha escavando a História do franquismo, desenterrando vários episódios desconhecidos, que parecem ter ficado escondidos sob os escombros da guerra, e dando voz aos perdedores, àqueles que foram propositadamente esquecidos. Partindo da ideia metafórica de que a Guerra Civil de Espanha “não terminou onde parece”, Almudena Grandes — uma das mais reconhecidas escritoras espanholas — foi dissecando acontecimentos que ficaram ocultos pela versão oficial da História espanhola do pós-guerra e do franquismo. Com esse material encontrado, começou a escrever uma série de romances a que chamou “Episódios de Uma Guerra Interminável”, que se iniciou em 2010 com a publicação de Inés y la Alegria, ao qual se seguiram El Lector de Julio Verne (2012), As Tres Bodas de Manolita (2014) e Os Doentes do Doutor García — o único traduzido em português e publicado em 2020 pela Porto Editora. Mais recentemente, foi publicado em Espanha o último desses volumes, La Madre de Frankenstein, que completa uma espécie de fresco histórico sobre a atmosfera de um país em guerra e depois, também, nos tempos do pós-guerra.

Misturando personagens reais e ficcionais, a escritora madrilena foi tecendo uma rede de ligações que ajuda a dissipar as névoas sobre as cicatrizes deixadas pela guerra. Em Os Doentes do Doutor García, por exemplo, Almudena Grandes partiu do facto da existência real de uma rede de evasão de criminosos de guerra nazis em trânsito por Espanha a caminho da Argentina de Perón. A escritora confessou que teve conhecimento desta rede por mero acaso, ao encontrar algures um pequeno livro. A sua curiosidade de historiadora, aliada ao talento dos grandes romancistas para arquitectar uma trama narrativa quase irrepreensível, deram vida literária a esta organização clandestina dirigida sabiamente por uma poderosa mulher de nacionalidades espanhola e alemã, Clara Stauffer, com ligações à elite da ditadura franquista e à elite peronista de Buenos Aires. Durante cerca de uma década foram muitos os nazis ajudados por esta personagem contraditória, que lhes arranjava novas identidades e, em muitos casos, encontrava maneira destes criminosos de guerra nazis recomeçarem a vida em Espanha ou na Argentina. As ligações de Clara Stauffer ao regime de Franco eram óbvias.

Nesta série de romances, Almudena Grandes arquitecta de maneira magistral narrativas complexas que procuram dar voz aos perdedores, aos desesperançados e aos clandestinos republicanos. Como a própria referiu em entrevista ao PÚBLICO no ano passado, com estes romances quis “agradecer o empenho e o heroísmo de umas quantas pessoas a quem o Estado espanhol ainda não agradeceu”.

Fonte: https://www.publico.pt/2021/11/27/culturaipsilon/noticia/morreu-almudena-escritora-deu-voz-derrotados-seculo-xx-espanhol-1986646

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Somos todos cavalos

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Imagem: Salman Toor

Eles eram muitos cavalos, emblemático (e polifônico) romance de Luiz Ruffato completa 20 anos. A metrópole, o trabalho e os “sem-nome” são seus personagens centrais. Em Milton Santos, Marx e George Orwell, chaves para compreendê-lo

1.

“Onde está o conteúdo senão na forma?”,i descreve Leyla Perrone-Moisés na apresentação do livro As estruturas narrativas, de Tzventan Todorov. Há vinte anos, Luiz Ruffato (1961) lançava Eles eram muitos cavalos (2001), quebrando o que poderíamos chamar das estruturas formais de um romance. No livro ambicioso e singular, cada capítulo é narrado em um único dia, 9 de maio de 2000, em São Paulo, com personagens que transitam entre o que sobrou de humano e as relações corroídas pelo cotidiano embrutecido. Os personagens são apresentados como num mosaico, forma de percepção típica das cidades, de fragmentos de vida simultâneos, de situações provisórias.

Qual seria a melhor maneira de transpor a complexidade da cidade de São Paulo para a ficção? Através de vestígios que estão ali, mas ninguém percebe que estão, de uma maneira não naturalista, de uma forma não convencional, expondo um jogo de “contaminações” de gêneros, diante dessa miséria de carências infindáveis, quase como um obituário de “homens infames”. “Aqui, é a raridade e não a prolixidade que faz com que real e ficção se equivalham. Não tendo sido nada na história, não tendo desempenhado nos acontecimentos ou entre as pessoas importantes nenhum papel apreciável, não tendo deixado em torno deles nenhum vestígio que pudesse ser referido, eles não têm e nunca terão existência senão ao abrigo precário dessas palavras”,iiescreve Michel Foucault em A vida dos homens infames.

Ruffato ordena sua ficção “cartográfica” (de cenas, narrativas e formas múltiplas arraigadas na cidade, explícita ou oculta), como algo geolocalizado, naquilo que imaginamos ser uma relação entre uma geografia física e uma geografia humana ou aquilo que Milton Santos “define como um conjunto de formas representativas de relações sociais do passado e do presente […] representada por relações sociais que estão acontecendo diante de nossos olhos”,iii nas desventuras e aventuras que juntadas em um punhado de palavras, transforma os acontecimentos do dia a dia em acontecimento estético vivo.

Ao utilizar uma estrutura polifônica, característica das cidades modernas, deixa transparecer que “a vida urbana tornou-se uma mercadoria, assim como a própria cidade”.iv Os personagens da obra nos fazem ver, em seus percursos, que as linhas se cruzam na luta encarniçada pela sobrevivência. Uma sociedade de mortos-vivos que não conseguem nem viver, nem morrer. São personagens que, na criação de significados, se permitem contornados pela normatividade. Tais figuras acordam, vão à luta e olham com receio e esperança para as engrenagens da máquina em que serão depenados.

A obra não está voltada para nenhum herói ou sujeito de destaque. Atém-se aos sujeitos despercebidos, que não desfrutam de nenhuma notoriedade, nenhum reconhecimento público e talvez por isso mesmo “ninguém mais sabe os seus nomes [ou] sua origem…”.v

2.

“A obra não é feita para o bem do mundo, mas é o mundo que existe para a subsistência da visão. […] a fúria de impor aos outros a própria visão; fúria que é simbólica da violência diariamente realizada na vida competitiva”,vi escreve Roberto Schwarz sobre o cinema em comentário sobre o filme Fellini 8½. Ao entrelaçar os vários discursos e as paisagens correlatas, sobretudo das classes médias baixas: exclusão social, vida urbana, anonimato, Eles eram muitos cavalos inscreve sua materialidade. Nesse repertório de narrativas, tempo e espaço vão aos poucos compondo essa polifonia, que exige uma atitude peculiar, um tipo de atenção quase sensorial, habitualmente reservado à música. Encontros, desencontros, violência, deslocamentos, pertencimentos e um texto estético sagaz para “não pra ficar sepultadas nas páginas […], mas pra se tornarem parte da nossa memória coletiva”.vii

Nesse “caderno de exercícios formais”, como pontua o próprio Ruffato, enxergamos uma cidade demarcada por diferentes realidades, representados por vendedores, cobradores, trombadinhas, camelôs, policiais, engravatados, miseráveis, os forjadores do mundo moderno, visualizando “a dor dos que já não veem mais saída para os seus problemas”,viiicompartilhando os dilemas crônicos de uma cidade contaminada, homens e mulheres que enfrentam as mazelas diárias, lutando para sobreviver neste “inferno provisório”.

O personagem Luciano sentencia em “tudo acaba” que “São Paulo inteira decadência e todos a abandonarão e uma cidade-fantasma como as dos filmes de faroeste preto e branco”.ix Expressa os traumas em um simulacro de cidade que “estimula a realização dos aspectos materiais da vida (mais dinheiro e prestígio)”,x as inúmeras promessas de felicidade fracassadas da civilização, de forma que, como diria Milton Santos, “o espaço é, então, um verdadeiro campo de forças cuja aceleração é desigual”.xi Os não-lugares de visibilidade, os corpos marcados, essas vidas-obras que emergem do caos da cidade se dispõe lado a lado em modulações de discurso e formas narrativas variadas.

A cidade fragmentada, nas suas múltiplas possibilidades de forma, vida e coisa, é correspondente à própria estrutura dos textos: ora narrativas organizadas de personagens – humanos, animais, coisas, ora as palavras como personagens, ora lista de livros em uma estante (como numa fotografia), ora informativo meteorológico ou horóscopo profético, ora texto poético em que a tensão da narrativa força a palavra a encontrar espaço no papel, ora forma e sujeitos que se confundem no texto (explorando sinais gráficos ordenadores do discurso de forma inesperada ou apagando-os), entre outros inúmeros arranjos formais e de recortes de indícios da realidade ou de expressão da percepção, da emoção e do pensamento.

Ao tematizar e amplificar o anonimato e mesmo a atividade urbana sem sujeito, o autor arremessa uma pedra na nossa vidraça. Como lidar com esses estilhaços? Como lidar com a memória e com o esquecimento? O personagem Claudionor indaga no episódio “táxi” que “a única coisa que resta é a memória da gente, mas o quê que é a memória da gente?”xii Para Pierre Nora “os lugares de memória, são antes de tudo, restos”,xiii o nada, os vestígios, os vácuos, exige um pouco de atenção e de veracidade ao ver a cidade.

3.

É nessa rede de ligações, rupturas e contrastes formais entre cada uma das histórias que é tecida uma reflexão contundente sobre o Brasil dos anos 2000, realçando os fenômenos da cidade, tendo o centro e a periferia de São Paulo como flexões fundamentais, quebradas em pedaços variados, de tamanho, forma, ocupação do espaço, opacidade e brilho diferentes, embaralhados, constituídos a partir da trama de sentidos e relações e não como espacialidades geográficas delimitadas. É nessa gramática de nosso espaço urbano e tempo que se confirma o lugar único do autor na literatura contemporânea nas últimas décadas.

“A entrevista às duas horas, esquina da avenida Ipiranga com a rua da Consolação, Tem tempo, vasculha as lojas da Galeria do Rock, Cada cedê!, uma tentação, mas, nem um nada no bolso, a conta de voltar para casa, desanima, bate perna, rua Conselheiro Crispiniano, rua Xavier de Toledo, rua Bráulio Gomes, praça Dom José Gaspar, avenida São Luís, avenida Ipiranga”,xivescreve em “a espera”.

Milton Santos aponta em Por uma geografia cidadã “que cada um de nós são dois, oscilando entre a necessidade e a liberdade, entre o que somos e o que queremos ser, entre a dificuldade de afirmação diante das situações e a crença de que podemos ser outra coisa e de que podemos construir outra coisa. Esse duplo homem e esse duplo cotidiano nos remetem de volta às relações de corporeidade, individualidade, sociabilidade e espacialidade”.xv

No Brasil ano 2000, reduzira-se a cerca de 19% o contingente de brasileiros vivendo na zona rural, que havia sido maioria, em torno de 55%, no censo de 1960. Em um país eminentemente urbano, essas novas configurações da estrutura social vieram acompanhadas por grandes desafios, com ameaças à apropriação do espaço público e ao sentimento de pertencimento dos cidadãos, a persistente desigualdade social e distanciamentos cada vez maiores, simbólicos, espaciais, de experiência no âmbito da vida nas cidades. De uma hora para outra, milhões de pessoas empurradas para a nova Zeitgeist.

4.

“Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado”xvi – frase do celebre livro 1984 de George Orwell. O domínio do presente ajuda a entender o passado e pode se alastrar, freando a destruição da nossa memória popular, buscando olhar um futuro mais possível. Passado e presente rompem de forma brusca na ficção de Ruffato e se reencontram nos estilhaços.

“Ela entreabre o basculhante da janela que dá para a rua e observa, resguardados pela luz anêmica do poste, os primeiros passageiros do ônibus que daqui a pouco começa a circular. Mastiga o pedaço de pão, empurra-o com o resto do café”, narra sobre uma das personagens o capítulo (ou fragmento) “o que quer uma mulher”.xviiO território em que vivemos não é apenas delimitado por espaços de atividades e suas coisas, onde moramos, trabalhamos, estudamos e circulamos, mas é um espaço também de construção da dimensão do simbólico. O desafio e o desejo de traduzir o campo de significados em torno dos cruzamentos de memórias privadas, suas temporalidades e naturezas, é que trazem à tona uma experiência comum popular, de São Paulo e do Brasil.

O retrato desse trabalhador e trabalhadora, bem como de suas coisas, cenas, paisagens, visões, deslocamentos, vai ganhando espaço, não mais como símbolo da pureza divina, idealizado, mas como personagem com múltiplas facetas. Fazendo um paralelo com a observação de Vera Telles em Mutações do trabalho e experiência urbana, o que“esses personagens […] nos fazem ver em seus percursos é que essas linhas perpassam as fortalezas globalizadas da cidade, transbordam seus muros ou vazam pelos poros dessas muralhas, e tal como outros tantos fluxos urbanos vão também redesenhando os territórios e seus circuitos”.xviii Na literatura sobre a qual estamos falando, essas narrativas não caminham para uma grande redenção, não temos uma vitória do oprimido, não há salvação.

Na trama, ressalta-se a relação entre a trajetória dos personagens e a vivência deles no espaço urbano através das múltiplas formas, majoritariamente precárias, de se fazerem conhecer no livro. A cidade não só como palco da trama, mas também uma de suas personagens. São Paulo é a história, em seus endereços reais especificados e seus trajetos nos quais personagens se deslocam, o próprio deslocamento como lugar. Há muitas histórias ocultas na cidade, desde migrantes e imigrantes que ofuscam seu passado para tentar uma nova chance, procurando se reinventar em uma nova vida.

“A velha, esbugalhada, tenaz grudada na poltrona número 3 da linha Garanhuns-São Paulo, não dorme, quarenta e oito horas já, suspensa, a velocidade do ônibus, Meu Deus, pra que tanta correria?”xixquestiona a personagem do capitulo “mãe”. São dessas histórias que emergem Luciano, Claudionor, Maria, Brabeza, Crânio, entre outros. O livro se constrói principalmente na relação entre os personagens e deles com o meio, um lugar da falência da modernização, da eficácia violenta do capitalismo, com um vasto exército de trabalhadores autônomos e do trabalho precário sendo destruídos aos poucos.

5.

“Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha”,xxdescreve Karl Marx em O 18 brumário de Luís Bonaparte. A produção de literatura ficcional brasileira nas últimas décadas, coloca poucos personagens desempenhando alguma atividade de trabalho.

“Todo dia às cinco horas da tarde toma rumo de casa, no Boi Malhado, a pé, porque nem trocado pra passagem do ônibus tem”, como descreve um dos personagens no episodio “trabalho”.xxi

José de Souza Martins questiona, em 1997, no contexto de um forte neoliberalismo mundial e discussão sobre a desigualdade, a forma de aplicação do binômio inclusão e exclusão social. O questionamento segue atual: “existem vítimas de processos sociais, políticos e econômicos excludentes; existe o conflito pelo qual a vítima dos processos excludentes proclamam seu inconformismo, seu mal-estar, sua revolta, sua esperança […] Essas reações, porque não se trata estritamente de exclusão, não se dão fora dos sistemas econômicos e dos sistemas de poder. Elas constituem o imponderável de tais sistemas, fazem parte deles ainda que os negando. As reações não ocorrem de fora para dentro; elas ocorrem no interior da realidade problemática, ‘dentro’ da realidade que produziu os problemas que as causam”.xxii

A questão do trabalho ocupa um lugar de destaque em Eles eram muitos cavalos. São raros os escritores brasileiros conhecedores das trajetórias das classes médias baixas. O autormira seu olhar sobre os sem-nomes, onde as vozes do mundo do trabalho e do banal rangem, compondo um painel poderoso do mundo laboral em uma cidade que não dorme. Ao revelar o cotidiano, a história de um projeto de país fracassado, frustrando as expectativas pessoais, a própria ideia de nação que naufraga.

O autor, capta os personagens, grava seus rostos ou suas coisas, tira ou mantém no anonimato a que foram rebaixados, sendo que a elaboração desse espaço se faz através de uma perfeita simbiose, cuja construção narrativa aponta para as dinâmicas sociais e para compreensão de seu tempo.

O escritor é inquieto do ponto de vista formal, adotando um viés crítico da realidade em forma de percepção, com implicações estéticas, incluindo sua vinculação a diversos campos da arte e que pode ser notado durante todo o percurso da obra. Ao tentar capturar a precariedade da existência, da estrutura e do olhar, debruçado sobre a história dos trabalhadores e trabalhadoras na cidade, Eles eram muitos cavalos constrói sua narrativa sem reducionismo, sem afetação, sem “flores artificiais”.

Tendo uma expressão própria, capaz de traduzir a realidade incômoda, em sua inconstância e consistência imperfeita, não de forma banal, mas aproximando o leitor dos elementos da realidade que se pretende projetar e projeta, o autor transforma episódios e ingredientes cotidianos em oportunidade para falar de seu país e de sua sociedade, quase como um “estive em São Paulo e lembrei de você”. Eles eram muitos cavalos é a latência de vida à margem na grande metrópole. Os espaços, imprecisos, são, na clave urbana, a resposta à nossa estranheza ante o mundo, ante a nossa cidade, ante a nós mesmos.

Passado vinte anos, Luiz Ruffato nos releva na São Paulo inteira decadência que os “esqueletos de colunas, lajes por acabar, pipas singrando o céu cinza, fedor de esgoto, um comichão na pálpebra superior esquerda, a solidão e o desespero” imprimem como algo momentâneo e permanente, a partir do que outrora foi vivido pelo personagem no capítulo “13”. O autor no fundo vai tentando reatar os fios soltos de um Brasil que parece ir do projeto de nação à ruína a todo momento. Sonhar de olhos abertos tentando achar o horizonte é algo muito incerto. Somos todos cavalos e “de mim já nem se lembra”.

Até quando julgareis injustamente, sustentando a causa dos ímpios?
Salmo 82.

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Notas

iTODOROV, Tzventan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 10.

iiFOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In MOTTA, Manoel Barros da. (org.) Estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 207.

iiiSANTOS, Milton. Por uma Geografia Nova: da critica da geografia a uma geografia crítica. São Paulo: Hucitec, Edusp, 1978, p. 122.

iv HARVEY, David. O direito à cidade. São Paulo: Lutas Sociais, n. 29, p. 73-89, jul./dez. 2012, p. 81.

vRUFFATO, Luiz. Eles eram muitos cavalos. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 5.

vi SCHWARZ,Roberto. O menino perdido e a indústria. Suplemento literário do O Estado de S. Paulo, 1964.

viiRUFFATO, Luiz. op. cit., p. 96.

viiiRUFFATO, Luiz. op. cit., p. 50.

ixIbidem, p. 61.

xIbidem, p. 17.

xiSANTOS, Milton. op. cit., p. 122.

xiiRUFFATO, Luiz. op. cit., p. 72.

xiiiNORA, Pierre. Entre memória e história: A problemática dos lugares. São Paulo: Projeto História. (10), dez. p. 12.

xivRUFFATO, Luiz. op. cit., p. 35.

xvSANTOS, Milton.Abertura do XVI Encontro Estadual de Professores de Geografia. Porto Alegre: Boletim Gaúcho de Geografia (UFRGS), nº 21, 1996, p.10.

xvi ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

xviiRUFFATO, Luiz. op. cit., p. 22.

xviiiTELLES, Vera. Mutações do trabalho e experiência urbana. São Paulo: Tempo Social, v. 18, n. 1, 2006, p. 191.

xixRUFFATO, Luiz. op. cit., p. 15.

xx MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Centauro Editora, 2003, p. 7.

xxiRUFFATO, Luiz. op. cit., p. 77.

xxiiMARTINS, José de Souza. Exclusão social e a nova desigualdade. São Paulo: Paulus, 1997, p. 14.

* Wilq Vicente é pesquisador de audiovisual popular, doutorando em Ciências Humanas e Sociais (UFABC) e mestre em Estudos Culturais (USP). É organizador do livro Quebrada? Cinema, vídeo e lutas sociais (2014).

Fonte: https://outraspalavras.net/poeticas/ensaio-somos-todos-cavalos/#sdendnote6anc