segunda-feira, 22 de novembro de 2021

‘A origem do homem’, 150 anos depois

Agustín Fuentes

Em recente artigo publicado na Science, antropólogo de Princeton argumenta que a obra de Charles Darwin deve ser reanalisada à luz de seus preconceitos
Foto: Wikimedia Commons
Página de título do lviro "The descent of man"

Em 1871, Charles Darwin abordou o “maior e mais interessante problema para o naturalista... a descendência do homem”. Desafiando o status quo, Darwin apresentou as ideias de seleção natural e sexual – além da “sobrevivência do mais apto”, que ganhou popularidade mais recentemente –, produzindo, assim, cenários para explicar o surgimento da humanidade. Ele explorou histórias evolutivas, anatomia, habilidades mentais, capacidades culturais, raça e diferenças entre os sexos. Algumas conclusões foram inovadoras e perspicazes. Seu reconhecimento de que as diferenças entre humanos e outros animais eram de grau, não de tipo, foi pioneiro. Seu foco em cooperação, aprendizado social e cultura cumulativa continua sendo central para os estudos evolutivos humanos. No entanto, algumas das outras afirmações de Darwin foram tristes e perigosamente erradas. “A origem” 1 é um texto para aprender, mas não para venerar.

Darwin via os humanos como parte do mundo natural, animais que evoluíram (descendiam) de primatas ancestrais seguindo processos e padrões semelhantes para toda a vida. Segundo Darwin, para conhecer o corpo e a mente humanos, deveríamos conhecer outros animais e sua (nossa) descendência, bem como suas modificações através das linhagens e do tempo. Mas apesar desses quadros ideais e de algumas inferências inovadoras, “A origem” é muitas vezes problemático, preconceituoso e injurioso. Darwin pensou que estava se baseando em dados, objetividade e pensamento científico ao descrever os resultados da evolução humana. Mas durante grande parte do livro, não estava. “A origem”, como muitos dos tomos científicos da época de Darwin, oferece uma visão racista e sexista da humanidade.

Hoje, pode-se olhar para dados que demonstram inequivocamente que raça não é uma descrição válida da variação biológica humana

Darwin retratou os povos indígenas das Américas e da Austrália como inferiores aos europeus em capacidade e comportamento. Os povos do continente africano foram invariavelmente referidos como cognitivamente depauperados, menos capazes, e de uma posição inferior do que outras raças 2. Essas afirmações geram confusão porque em “A origem” Darwin refutou a seleção natural como o processo de diferenciação das raças, observando que os traços usados para caracterizá-las pareciam não funcionais em relação à capacidade de sucesso. Como cientista, Darwin deveria ter refletido criticamente sobre isso. Contudo, ele acabou afirmando, sem fundamento, que existiriam diferenças evolucionárias entre raças. Ele foi além de simples classificações raciais, oferecendo justificativa para o imperialismo, o colonialismo e o genocídio por meio da “sobrevivência do mais apto”. Isso também gera confusão, dada a postura robusta de Darwin contra a escravidão.

Em A origem, Darwin classificou as mulheres como menos capazes que os homens (brancos), muitas vezes semelhantes às raças inferiores. Recorrendo à seleção natural e sexual como justificativa, ainda que sem dados concretos e avaliação biológica, descreveu o homem como mais corajoso, enérgico, inventivo e inteligente. Suas afirmações inflexíveis sobre a centralidade da agência masculina e a passividade da mulher nos processos evolutivos, para humanos e em todo o mundo animal, ressoam tanto com a misoginia vitoriana quanto com a contemporânea.

Em sua própria vida, Darwin aprendeu com um naturalista sul-americano descendente de africanos, John Edmonstone, em Edimburgo, e teve relações substantivas com os fueguinos 3 a bordo do HMS Beagle. Sua filha Henrietta foi uma das principais editoras de A origem. Darwin foi um cientista perspicaz cujas visões sobre raça e sexo deveriam ter sido mais influenciadas por dados e por sua própria experiência de vida. Mas as crenças racistas e sexistas de Darwin, ecoando as visões de colegas cientistas e de sua sociedade, foram poderosos mediadores de sua percepção da realidade.

A comunidade científica pode rejeitar o legado de preconceitos e danos nas ciências evolutivas, reconhecendo e agindo sobre a necessidade de vozes diversas e tornando as práticas inclusivas centrais para a investigação evolucionária

Hoje, estudantes aprendem que Darwin é o “pai da teoria da evolução”, um cientista genial. Eles e elas também deveriam aprender que Darwin foi um homem inglês com ultrajantes e infundados preconceitos, os quais distorceram sua visão dos dados e da experiência. Racistas, sexistas e supremacistas brancos, alguns deles acadêmicos, usam conceitos e afirmações “validadas” pela sua presença em “A origem” como suporte para crenças errôneas, e o público aceita muito disso sem crítica.

“A origem do homem” é um dos livros mais influentes na história da ciência evolutiva humana. Nós podemos reconhecer Darwin pelos seus importantes insights, mas devemos lutar contra suas afirmações infundadas e nocivas. Refletindo sobre A origem hoje, pode-se olhar para dados que demonstram inequivocamente que raça não é uma descrição válida da variação biológica humana, que não há coerência biológica para distinção entre cérebros masculino e feminino ou qualquer simplicidade nos padrões biológicos relacionados a gênero e sexo, e que a “sobrevivência do mais apto” não representa com precisão a dinâmica dos processos evolutivos. A comunidade científica pode rejeitar o legado de preconceitos e danos nas ciências evolutivas, reconhecendo e agindo sobre a necessidade de vozes diversas e tornando as práticas inclusivas centrais para a investigação evolucionária. No final, aprender com A origem ilumina o maior e mais interessante problema para os estudos evolutivos humanos hoje: mover-se em direção a uma ciência evolucionária dos humanos em vez do homem.

Artigo original

“The Descent of Man”, 150 years on

Science, vol. 372, ed. 6544, p.769

Doi: 10.1126/science.abj4606

21 de maio de 2021

Autoria: Agustín Fuentes

Tradução: Rodrigo Simon e Lucas Prates

Agustín Fuentes é professor titular no Departamento de Antropologia da Universidade de Princeton e professor associado ao Brazil LAB. Tem PhD em antropologia pela University of California, Berkeley, e estuda evolução humana, questões raciais e de gênero, e abordagens multiespécie. Foi eleito para a American Academy of Arts and Sciences, e é autor, dentre outros, do livro premiado “Race, Monogamy and Other Lies They Told You: Busting Myths About Human Nature”.

Este texto foi traduzido e republicado com permissão da AAAS. Esta não é uma tradução oficial da AAAS. Para assuntos cruciais, consultar a versão oficial em inglês, originalmente publicada pela AAAS.

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