domingo, 21 de novembro de 2021

Um espelho que me deixava bonito

DAVID COIMBRA*

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Tinha, lá em casa, um espelho que me deixava bonito. Ficava no meu antigo apartamento. Eu era solteiro e livre, livre, LIIIIVREEEEE...

Bem, melhor não me empolgar muito. O que importa é que, antes de sair para a noite, eu me admirava naquele espelho. Gostava do que via. Às vezes me elogiava:

- Cara bonito, esse aí.

E ia para a guerra cheio de confiança.

Nunca mais fui bonito como naquele espelho. Por onde ele andará? A gente se muda e deixa coisas importantes no caminho.

Mudei-me muitas vezes na minha vida. Já morei em umas 20 residências diferentes e sempre deixei algo para trás, como se os objetos caíssem do caminhão da mudança ou voltassem correndo para a casa velha, como gatos abandonados.

Numa dessas, perdi minha coleção de moedas antigas. Era uma coleção que eu fazia desde guri, estimulado pelo meu avô. Tinha moedas bem antigas mesmo, inclusive algumas do século 19 e até uma do século 18. Pois sumiram todas e nem sei exatamente quando foi. Que tristeza.

Perdi livros, livros à mancheia, estatuetas de prêmios de literatura ou de jornalismo, uma jaqueta branca de que gostava, relógios de pulso, do tempo em que usava relógio de pulso, e uma caixa com cartas, do tempo em que a gente trocava cartas.

Como lamento ter perdido as minhas cartas. Quer dizer: não eram minhas, eram cartas que outras pessoas haviam me enviado. Hoje ninguém mais sabe o que é receber uma carta, aquele sentimento de expectativa quando você abre a caixa de correspondência, a ânsia de ler logo o que está escrito. Tive namoradas em outras cidades, então fui um missivista ativo. Dava para perceber, pela maneira que ela escrevia, se ela estava mais ou menos apaixonada, se o amor florescera ou se estava, melancolicamente, sumindo. E vou dizer algo para vocês, jovens dos tempos do WhatsApp, embora já saiba que não acreditarão: uma carta bem escrita podia conquistar um coraçãozinho serelepe.

Uma vez, estava apaixonado por uma moça de Cachoeira do Sul. Pouco nos encontrávamos, eu ia a Cachoeira uma vez a cada dois ou três meses. Também não falávamos ao telefone, porque as ligações interurbanas eram caríssimas naquela época. Assim, nosso namoro era mais por correspondência mesmo. Mas eu gostava dela, ah, como gostava.

Certo fim de semana, fui a Cachoeira só para vê-la, mas, ao chegar lá, brigamos por algum motivo. Depois da discussão e antes de eu embarcar no ônibus para Porto Alegre disse a ela, a voz tremendo de indignação:

- Não me manda carta nunca mais!

E ela obedeceu!

Durante meses me frustrei abrindo aquela caixa de correspondência vazia. Ou pior: cheia de contas a pagar.

Hoje sei por que aquela moça deixou de gostar de mim, depois te termos usufruído de um amor tão belo. É porque ela não me via como se estivesse refletido pelo meu velho espelho. Se ela soubesse como tive momentos de máscula beleza na intimidade do meu banheiro, não teria me abandonado com aquela insidiosa indiferença. Espelho, espelho meu, onde andarás, espelho meu?

*Jornalista.

Fonte:  https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=20d9c6548847572929100f2cc0f297a2  Imagem da Internet

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