Hamilton Pereira (Pedro Tierra)*
Inconformadas
com a celebração da “Missa Negra”, coisa de satanás, aquela profanação do
culto sagrado promovida por Hélder Câmara, o bispo dos comunistas”, estamparam
os jornais. Foto: Reprodução
Daquela noite de 1981, a Missa
dos Quilombos lançava uma luz sobre as raízes do racismo e sobre a resistência
dos mais explorados entre os trabalhadores, os trabalhadores e as trabalhadoras
negras
Ecoou a
voz de Milton Nascimento, capaz de comover até as pedras que vibravam sob
nossos pés no Largo do Carmo, no Recife, naquela noite:
“Em nome
do Deus de todos os nomes:/ Javé, Obatalá, Olorum, Oió...”
Ecoou a
percussão de Robertinho Silva e seus companheiros como se o couro dos atabaques
golpeados pelas as palmas das mãos, até minutos antes cobrisse nosso próprio
coração, agora exposto. O coração vulnerável de milhares de homens e mulheres
de todas as cores, reunidos em frente à Igreja do Carmo, naquele 22 de
novembro, há 40 anos.
Há
testemunhos que por si sós justificam a ousadia daquela celebração: “E vi
meu corpo sair dançando, embalado pelos tambores. Como se meu corpo soubesse
aquela música desde antes de eu nascer, sem que eu própria tivesse conhecimento
dela...”
Ao sul da
razão, aqui ao sul da linha do Equador, a consciência nasce de dentro da
tempestade e da comoção... dito de outro modo: conheço aquilo que me comove.
Naquele sentido de mover com. Quando a consciência se converte em ação
transformadora.
Os fiéis
assistiram ali um rito romano, que obedecia rigorosamente ao cânone católico.
Não fora concebido como um espetáculo. Mas, como uma confissão pública de
cumplicidade com o massacre de uma raça, em nome da exploração colonial. Com
todos os seus momentos e componentes, tratava-se de uma missa.
A
celebração foi presidida por um dos poucos bispos negros do Brasil, naquele
momento. O mineiro Dom José Maria Pires, arcebispo da Paraíba. A seu lado, o
anfitrião, D. Hélder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife, que nos propôs o
desafio de realiza-la, D. Tomás Balduíno, bispo de Goiás, D. Marcelo
Carvalheira, bispo de Campina Grande, D. José Brandão, bispo de Propriá e Pedro
Casaldáliga, bispo de S. Félix do Araguaia.
Com ela,
no ambiente opressivo da ditadura militar, já em declínio, um negro – uma das
mais elevadas expressões do talento, sensibilidade, criatividade e da voz na
história da música brasileira –, um catalão errante que fez do Araguaia sua
pátria e um sertanejo recém-saído dos cárceres, ofereciam sua contribuição e
seu verso para introduzir em espaços sociais e culturais mais amplos um tema
interditado na sociedade brasileira: o combate ao racismo.
Nesse
país votado ao absurdo, aquela ousadia chegava pelas mãos de uma instituição
conservadora, a Igreja Católica que historicamente, como afirmou D. José Maria
Pires em sua homilia, “frequentou mais a Casa Grande do que a Senzala”.
Causou
impacto e foi perseguida “no Templo e no Pretório”, como diria Pedro
Casaldáliga. Como tudo que, neste país, se aproxime com o desejo de desvelar o
estigma da escravidão, a violenta matriz que modelou o perfil das desigualdades
econômicas, sociais e culturais que nos acompanham há cinco séculos.
A Missa dos Quilombos foi alcançada sem demora pela
interdição ditada pelo cânone da Sagrada Congregação da Doutrina da Fé –
ex-Santo Ofício – dirigida pelo Cardeal Joseph Ratzinger. Foi proibida
sumariamente como celebração da Eucaristia.
O decreto
da Cúria secundava, em alguma medida, a reação irada das oligarquias
pernambucanas, inconformadas com a celebração da “Missa Negra”, coisa de
satanás, aquela profanação do culto sagrado promovida por Hélder Câmara, o
bispo dos comunistas”, estamparam os jornais.
A reação
da oligarquia e o decreto da Cúria chegaram tarde. A gente humilde das
comunidades, os movimentos de juventude que se constituíram nos Grupos União e
Consciência Negra – Grucon, no âmbito da própria Igreja Católica e mesmo em
movimentos laicos, mais avançados como o Movimento Negro Unificado (MNU) que se
constituía em diversas regiões do país, se apropriaram do texto e souberam
extrair de sua força, de sua capacidade de comover, elementos para formação de
consciência, no trabalho de base que caracterizou aquele período.
Realizaram,
a seu modo, o sonho dos criadores: multiplicaram o alcance, fizeram chegar aos
olhos, aos ouvidos e aos corações daqueles que buscavam se agregar nas
organizações populares que nasciam ou renasciam na resistência à ditadura.
Cumpriam, assim, o propósito anunciado no Canto de Abertura, quando os negros
invadem a Igreja:
“Estamos
chegando do fundo da terra,/ estamos chegando do ventre da noite,/ da carne do
açoite nós somos,/ viemos lembrar.
Estamos
chegando da morte nos mares,/ estamos chegando dos turvos porões,/ herdeiros do
banzo nós somos,/ viemos chorar.
Estamos
chegando dos pretos rosários,/ estamos chegando dos nossos terreiros,/ dos
santos malditos nós somos,/ viemos rezar.
Estamos
chegando do chão da oficina,/ estamos chegando do som e das formas,/ da arte
negada que somos, viemos criar.
Estamos
chegando do fundo do medo,/ estamos chegando das surdas correntes,/ um longo
lamento nós somos,/ viemos louvar.
(...)
Estamos
chegando dos ricos fogões,/ estamos chegando dos pobres bordéis,/ da carne
vendida nós somos,/ viemos amar.
Estamos
chegando das velhas senzalas,/ estamos chegando das novas favelas,/ das margens
do mundo nós somos,/ viemos dançar.
Estamos
chegando dos trens dos subúrbios,/ estamos chegando nos loucos pingentes,/ com
a vida entre os dentes chegamos,/ viemos cantar.
Estamos
chegando dos grandes estádios,/ estamos chegando da escola de samba,/ sambando
a revolta chegamos,/ viemos gingar.
(...)
Estamos
chegando do ventre das Minas,/ estamos chegando dos tristes mocambos,/ dos
gritos calados nós somos,/ viemos cobrar.
Estamos
chegando da cruz dos Engenhos, estamos sangrando a cruz do Batismo, marcados a
ferro nós fomos,/ viemos gritar.
Estamos
chegando do alto dos morros,/ estamos chegando da Lei da Baixada,/ das covas
sem nome chegamos,/ viemos clamar.
Estamos
chegando do chão dos Palmares,/ estamos chegando do som dos tambores, dos Novos
Palmares nós somos, viemos lutar.” (Boletim do CIMI, no 76, Goiânia, 1981)
A Missa
dos Quilombos, sem dúvida, contribuiu para consolidar o 20 de Novembro como Dia
Nacional da Consciência Negra, instituído pelo Movimento Negro Unificado em 7
de julho de 1978, em Salvador, como contraposição ao 13 de maio, data oficial
da Abolição.
Cumpriu,
desse modo, no espaço que lhe é próprio, portanto, no campo dos valores e da
cultura, a afirmação da palavra Quilombo reconhecida como espaço de
liberdade e emblema maior das lutas históricas contra a escravidão. E projetou
sua influência simbólica para definir o caráter libertário dos movimentos
étnicos que se somavam às lutas populares para resistir à ditadura naquele
momento. Ao abordar de forma afirmativa o conteúdo das lutas dos povos
afro-brasileiros escravizados e seus descendentes, a Missa dos Quilombos
lançava uma luz sobre as raízes do racismo e sobre a resistência dos mais
explorados entre os trabalhadores. Os trabalhadores e as trabalhadoras negras.
O partido
que nascia das grandes mobilizações operárias do ABC buscava conferir voz
própria aos trabalhadores. Sem intermediários. Levaria ainda algum tempo para
incorporar a percepção profunda do significado do racismo que permeia
estruturalmente as relações sociais, políticas e culturais do país. E, em
consequência, para incorporar a dimensão de raça à sua estrutura organizativa
interna, à sua pauta e ao seu programa.
O tempo
necessário para nos darmos conta de que o país mudou e com ele o perfil das
classes trabalhadoras que desafiam a imaginação política das esquerdas. E
compreendermos duas fecundas lições do mestre Florestan Fernandes, referência
maior do pensamento das esquerdas brasileiras sobre a inserção do negro na
sociedade de classes:
A
primeira:“A revolução da qual ele (o negro) foi o motivo não se
concluiu porque ele não se converteu em seu agente – e, por isso, não podia
leva-la até o fim e até o fundo. Hoje, a oportunidade ressurge e o enigma que
nos fascina consiste em verificar se o negro poderá abraçar esse destino
histórico, redimindo a sociedade que o escravizou e contribuindo para libertar
a Nação que voltou as costas à sua desgraça coletiva e seu opróbio.” (Significado
do Protesto Negro, pág. 35, Expressão Popular e Fundação Perseu Abramo, S.
Paulo, 2017).
E, na
segunda, conclui: “Nada de isolar raça e classe. Na sociedade brasileira, as
categorias raciais não contêm, em si e por si mesmas, uma potencialidade
revolucionária. De onde vinha o temor dos brancos, nos vários períodos
escravistas? Do entroncamento entre a escravidão e estoques raciais dos quais
eram retirados os contingentes que alimentavam o trabalho escravo. Essa
superposição ou paralelismo (como escreveu Caio Prado Júnior) ou essa estrutura
simultaneamente racial e social conferia ao escravo a condição do “vulcão que
ameaçava a sociedade.” (idem).
Quarenta
anos depois, daquela noite de 1981, no Largo do Carmo, no Recife, a Missa dos
Quilombos guarda uma dolorosa atualidade. Paraisópolis, Jacarezinho,
Varginha... nos confirmam que no país que mais mata jovens, negros, pobres, das
periferias dos grandes centros urbanos, mais do que nunca é necessária a
compreensão de que a revolução social brasileira do século 21, ou será negra,
ou não será revolução.
Pedro
Tierra é poeta.
Escreveu com Pedro Casaldáliga e Milton Nascimento a “Missa dos Quilombos”.
Revista Teoria e Debate - EDIÇÃO
214 - 18/11/2021 -
Fonte: https://teoriaedebate.org.br/2021/11/18/a-missa-dos-quilombos-40-anos-depois/