sábado, 8 de janeiro de 2022

Com Xi Jinping, Confúcio volta com tudo para legitimar o poder comunista

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Com trajes de época, estudantes circulam no monumental Centro Mundial de Estudos Confucianos, inaugurado em 2018 em Nishan, nas cercanias da terra natal de Confúcio, Qufu Foto: Marcelo Ninio / Agência O Globo

 

O monumental Centro Mundial de Estudos Confucianos, em Qufu, mostra como pensamento do filósofo se consolidou como parte do discurso oficial, criando o que especialista chama de "Estado leninista confucionista"

Marcelo Ninio, especial para O Globo

02/01/2022 -

QUFU, China — “Qual a importância de Confúcio?” A estudante Wang Weixin fica surpresa ao ouvir a pergunta, como se ela questionasse uma lei da natureza. Vestida com um traje da época em que viveu o filósofo mais importante da China, ela ensaiava com colegas da universidade uma cerimônia para celebrar o aniversário de Confúcio na cidade de Qufu, onde ele nasceu há 2.572 anos.

— Confúcio é o pai da cultura chinesa — resume.

A resposta parece óbvia. Afinal, grande parte da arquitetura social e política da China se sustentou sobre os pilares do confucionismo. Mas, se para jovens como Wang tornou-se normal homenagear o filósofo, como fizeram os imperadores da China por séculos, é porque há um movimento de reabilitação de Confúcio, iniciado há alguns anos e intensificado sob o governo atual, do presidente Xi Jinping.

O pensamento do filósofo agora é parte do discurso oficial, assumindo a fusão de ideologias que de certa forma sempre caracterizou o sistema político implantado pelo Partido Comunista da China (PCC). O resultado dessa alquimia é um Estado “leninista confucionista” na definição do influente sinólogo americano Lucian Pye, marcado pela tensão entre o revolucionário e o conservador, o passado e o futuro, uma versão do materialismo dialético de Karl Marx com características chinesas.

Confúcio de volta à cena na China

Os luxuosos salões do Centro Mundial de Estudos Confucianos, em Nishan, nas cercanias de Qufu, na China, envolvem visitantes em uma atmosfera de glória do passado Foto: Marcelo Ninio / Agência O Globo

Os luxuosos salões do Centro Mundial de Estudos Confucianos, em Nishan, nas cercanias de Qufu, na China, envolvem visitantes em uma atmosfera de glória do passado Foto: Marcelo Ninio / Agência O Globo

Estudantes ensaiam para a cerimônia de celebração do aniversário de Confúcio em Qufu, na província de Shandong, em setembro Foto: Marcelo Ninio / Agência O Globo

Estudantes ensaiam para a cerimônia de celebração do aniversário de Confúcio em Qufu, na província de Shandong, em setembro Foto: Marcelo Ninio / Agência O Globo

Estudantes ensaiam para a cerimônia de celebração do aniversário de Confúcio em Qufu Foto: Marcelo Ninio / Agência O Globo

Estudantes ensaiam para a cerimônia de celebração do aniversário de Confúcio em Qufu, na província de Shandong, em setembro Foto: Marcelo Ninio / Agência O Globo

Monumental, o Centro Mundial de Estudos Confucianos foi inaugurado em 2018 Foto: Marcelo Ninio / Agência O Globo

Monumental, o Centro Mundial de Estudos Confucianos foi inaugurado em 2018 Foto: Marcelo Ninio / Agência O Globo

Estátua de 72 metros de Confúcio em Qufu Foto: Marcelo Ninio / Agência O Globo

Estátua de 72 metros de Confúcio em Qufu Foto: Marcelo Ninio / Agência O Globo

Chineses diante do túmulo de Confúcio, que chegou a ser dinamitado pela Guarda Vermelha de Mao Tsé-tung durante a Revolução Cultural Foto: Marcelo Ninio / Agência O Globo

Chineses diante do túmulo de Confúcio, que chegou a ser dinamitado pela Guarda Vermelha de Mao Tsé-tung durante a Revolução Cultural Foto: Marcelo Ninio / Agência O Globo

Estátua de 72 metros no Centro Mundial de Estudos Confucianos, na região de Nishan, nas cercanias de Qufu Foto: Marcelo Ninio / Agência O Globo

Estátua de 72 metros no Centro Mundial de Estudos Confucianos, na região de Nishan, nas cercanias de Qufu Foto: Marcelo Ninio / Agência O Globo

Obstáculo ao progresso

Por séculos, a civilização chinesa se organizou em torno de princípios confucionistas, como ética, respeito aos ancestrais, meritocracia e governo virtuoso, que também moldaram outros países da Ásia. A partir da dinastia Han (206 a.C. a 220 d.C.), o discurso do confucionismo dava aos imperadores legitimidade e regulava sua relação com os súditos. A entrada no serviço público era condicionada à aprovação em exames baseados no “Sishu”, os quatro livros de ensinamentos de Confúcio. Foi assim até o início do século XX, no crepúsculo da dinastia Qing, a última da era imperial.

Humilhada por invasões estrangeiras e revoltas internas, a China entrou num período de turbulência que duraria anos, até a guerra civil que terminou com a vitória comunista, em 1949. Surgiu um movimento de repulsa entre intelectuais e revolucionários às tradições, e o confucionismo passou a ser visto como um obstáculo ao progresso.

Mas o pior momento para o confucionismo ainda estava por vir. Sob a inspiração de Mao Tsé-tung, o filosofo virou um dos principais alvos da Revolução Cultural (1966-1976). Seus livros foram queimados e a Guarda Vermelha fiel a Mao dinamitou seu túmulo, em Qufu. Hoje, o enorme cemitério da família Kong, dos descendentes de Confúcio, voltou a ser ponto de peregrinação. Após uma longa reverência ao túmulo do filósofo, o agricultor Liu, 77, refletia sobre aquela pergunta, sobre a inescapável importância do sábio de Qufu.

— Para onde vai Confúcio vai a cultura chinesa.

De fato, apesar de anos na geladeira (e de momentos na fogueira), séculos de tradição confucionista não são facilmente apagados. Nascido em 1956, o professor de filosofia Lin Chenyang cresceu com os avós numa área montanhosa remota e lembra que os ensinamentos de Confúcio estiveram muito presentes em sua educação, embora aqueles fossem anos de intensa doutrinação revolucionária. Com a morte de Mao, em 1976, teve início um lento processo de reabilitação de Confúcio. O filósofo deu nome ao instituto criado em 2004 para difundir a cultura e o idioma do país. Hoje há 550 espalhados pelo mundo, que são  uma das principais ferramentas de "soft power" do governo chinês (além de seus pandas).

A volta à cena não foi livre de percalços. Em 2011, uma estátua de oito metros de Confúcio foi inaugurada na Praça da Paz Celestial, o coração de Pequim. A homenagem gerou controvérsia: de um lado, críticos do filósofo que ainda o consideram um símbolo do reacionarismo burguês; de outro, membros da família Kong, que não gostaram de ver a imagem de seu antepassado a poucos metros do túmulo de Mao. A estátua acabou sendo removida para um canto pouco visível do Museu Nacional da China. Em 2019, foi transferida para uma ala de personagens influentes da história. Sob o governo de Xi, a reabilitação que havia sido iniciada por seus antecessores tem ficado cada vez mais explícita.

Glória do passado

Na cidade de Qufu, na província costeira de Shandong, tudo gira em torno de Confúcio. Destruído na Revolução Cultural, o templo principal dedicado ao filósofo foi cenário em setembro da maior homenagem em décadas, com transmissão pela CGTN, o canal internacional da TV estatal. Nas cercanias da cidade, foi inaugurado em 2018 o Centro Mundial de Estudos Confucianos, que funciona mais como um museu monumental, que projeta a ambição do governo.

Tudo ali é grandioso, da maior estátua de Confúcio do mundo, com 72 metros de altura, aos luxuosos salões que pouco contam a história do filósofo, mas envolvem o visitante numa atmosfera de glória do passado, com música antiga e ensinamentos célebres do filósofo. Embora o Estado chinês seja oficialmente ateu, há um tom religioso, de uma fé sem Deus. A região de Nishan, onde fica o centro de estudos, é chamada de “terra santa”. Para o governo, reviver a história tem a ver com o papel que o país ambiciona retomar no mundo. Se no período de Mao a harmonia social pregada pelo confucionismo era uma traição burguesa à revolução, hoje ela se encaixa na estabilidade que o governo quer manter.

O que antes era politicamente incorreto agora é politicamente conveniente. Considerado um dos mais respeitados sinólogos em atividade, David Shambaugh começou a visitar a China nos anos 1980. Ele vê uma semelhança entre as antigas dinastias e o centralismo do atual governo, tanto que em seu mais recente livro com perfis dos líderes chineses desde 1949 (“From Mao to Now”), Xi é chamado de “imperador moderno”. Mas a intensa promoção de Confúcio que o presidente lidera é algo que ainda o deixa intrigado.

— Xi vê a China como uma longa civilização. Ele não quer dissociar o passado do presente, ao contrário de Mao, para quem o passado da China era exatamente o problema do presente. Xi quer continuidade com o passado histórico. O confucionismo é um atalho para isso — diz Shambaugh, professor da Universidade George Washington.

Xi chegou a dizer que os comunistas chineses sempre foram “herdeiros e defensores” da filosofia de Confúcio. “Mao Tsé-tung não acreditaria em seus ouvidos se estivesse vivo para ouvir o discurso de Xi”, comenta Jiang em um artigo. A conclusão é de que Mao mantém sua importância no panteão comunista, mas Confúcio é valioso para o PCC como forma de legitimar seu poder, diz Li Chenyang, professor de filosofia chinesa da Universidade Tecnológica Nanyang, em Cingapura.

— O governo usa o confucionismo para se legitimar. Não tem a ver com o bem e o mal. Política é poder. Os filósofos antigos como Confúcio estavam preocupados com a virtude humana e com uma sociedade harmoniosa, não pensavam no poder político. Há um conflito entre o que é correto moralmente e o poder político. Algo bom pode sair dessa reabilitação de Confúcio, mas em última instância não se pode confiar nos políticos. O objetivo deles é manter o poder.

*O repórter viajou a Qufu a convite do jornal China Daily

Fonte: https://oglobo.globo.com/mundo/com-xi-jinping-confucio-volta-com-tudo-para-legitimar-poder-comunista-25336451?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newssemana

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