segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Antonio Risério e o falso fundamentalismo identitário

Maria Letícia Puglisi Munhoz*

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A busca por uma sociedade mais igualitária pelas vias democráticas jamais pode ser associada ao fundamentalismo

O artigo de Antonio Risério publicado na Folha de S.Paulo, em 15 de janeiro, tem trazido muita indignação porque aborda temas sérios e importantes que merecem debates éticos e profundos, e ao tratá-los maneira superficial, inconsequente e com interpretação distorcida dos fatos, chega a conclusões bastante questionáveis, quando não reforçam a violência sistêmica — a que somos submetidos e que proporcionamos — que o próprio texto diz querer evitar.

Com efeito, o autor do artigo escreve: “ao afirmar uma identidade, não podemos deixar de distinguir, dividir, separar. Não existe identitarismo que não traga em si alguma espécie de fundamentalismo”. É verdade que ao afirmar uma identidade está se trazendo à baila a ideia de que há diferentes formas de identidade social. E que o grande número de pessoas que vivem em nossa sociedade se identifica mais com uma forma ou outra de vivenciar a experiência social. A diferenciação em si não gera necessariamente uma violência, e não podemos negar que essencialmente somos iguais e diferentes; baseando-se em Caetano Veloso, de perto, não somos iguais.

Mas essas diferentes identidades sociais não foram criadas pelos movimentos identitários. Muito pelo contrário. São fruto de uma longa história de poder e dominação de uns grupos sobre outros que, já há muito tempo, foram distinguidos, divididos e separados, e que vivem em uma guerra quase silenciada até os dias atuais. Alguém acertaria dizer que os europeus colonizadores da América não se distinguiram dos indígenas e, com base nessa diferenciação, os elegeram para serem assassinados na dominação de suas terras e culturas? Tem alguma sensatez dizer que um grupo de indígenas que vem hoje denunciar as consequências danosas dessa violência e reivindicar seus direitos estaria dividindo, separando e beirando o fundamentalismo? Se há fundamentalismo identitário nesse caso, o mais radical seria o dos europeus brancos, não? Não foram eles que severamente distinguiram-se dos africanos negros para escravizá-los? Os homens, ao proibirem as mulheres de entrar em escolas e as considerarem incapazes de votar, não estariam já as diferenciando, separando? As instituições que proíbem a entrada de homossexuais e que os assassinaram durante a história não são os primeiros a estarem distinguindo, dividindo, separando?

Definitivamente, o movimento identitário não vem distinguir, dividir, separar. Ao contrário, vem juntar, vem querer juntar-se a todos, para que vivamos juntos com dignidade.

Os protestos identitários e as políticas identitárias não ocorrem por mero deleite daqueles que os alertam. Não são meramente exercícios de exaltação ao ego, carência afetiva ou necessidades emocionais de aparecer. São formas democráticas de buscar a igualdade de acesso às riquezas da humanidade e ao exercício dos direitos fundamentais, a partir do reconhecimento pela sociedade e suas instituições da relação entre a desigualdade social e as características específicas daquele grupo. Não se está falando do reconhecimento da diferença de identidade social em si, mas do grau de desigualdade social que esse grupo vivencia na dinâmica das relações sociais, em razão dessa diferença.

As diferentes identidades sociais são fruto de uma longa história de poder e dominação de uns grupos sobre outros que, já há muito tempo, foram distinguidos, divididos e separados

Atualmente, é difícil imaginar que um grupo de homens baixinhos consiga convencer a sociedade de que essa sua característica é o fator que determina um menor nível econômico desse grupo, porque não há essa relação. Mas grupos de pessoas como mulheres, negros, negras, indígenas, LGBTI+, idosos, pessoas com deficiências, imigrantes, etc. apontam essa relação, corroborada com as estatísticas que conhecemos. É essa relação que dá fundamento aos direitos especiais e políticas afirmativas, dentro de um sistema de direitos em que todas as pessoas, independente do grupo identitário a que pertença, têm obrigações e direitos. A busca por uma sociedade mais igualitária pelas vias democráticas jamais pode ser associada ao fundamentalismo.

O autor quer nos chamar a atenção para atos violentos isoladamente praticados por indivíduos negros(as) contra a população branca, judaica e asiática. Veja, a política identitária não é um salvo-conduto para que as pessoas possam violar as normas que regulam as relações de todos os indivíduos em sociedade. Ou seja, não é porque uma pessoa é transsexual que tem impunidade para agredir um homem branco, com base no fato de que esse homem representa para ele o grupo identitário que pratica a violência sistemática que sofre. Assim, toda vez que julgamos um único indivíduo pelas características que lhes são atribuídas pela sociedade ao grupo de seu pertencimento identitário, estamos atuando com preconceito. E se agimos com esse indivíduo a partir desse julgamento estamos atuando de maneira discriminatória, violenta, produzindo danos psicológicos tanto a ele quanto aos membros de seu grupo, atos esses passíveis de punição pelo sistema legal brasileiro.

Mas isso não é racismo. Racismo não é o ato discriminatório praticado na relação entre duas pessoas ou entre pessoas e um coletivo. E também não é neorracismo. Racismo – relacionado com a raça – e neorracismo (ou racismo cultural, definido pela dominação de um grupo sobre o outro pela motivação da cultura, origem e traços identitários) – são ideologias que têm como consequência a prática sistemática de protocolos institucionais e condutas que, de tão naturalizadas pela cultura, tornam-se quase desapercebidas àqueles que as praticam; e necessariamente geram a desigualdade social entre grupos de uma mesma sociedade. Há uma nítida diferença entre uma agressão contra a população branca e um sistema de dominação de um grupo sobre outro, e, mais ainda, entre as denúncias fundamentadas do movimento negro a respeito da violência racista praticada pela branquitude contra a população negra. Negar-lhes a oportunidade de apontar com veemência essa situação é negar-lhes o direito de voz, previsto na nossa democracia.

Portanto, a questão não é discutir se a população negra tem poder ou não para promover transformações sociais – esperamos mesmo que tenha e venha a ter. O que se leva em conta são os aspectos desse racismo estrutural. É por tudo isso que não faz sentido falar em racismo de negros(as) contra brancos(as). E nem a questão levantada pelo autor: “O neorracismo é norma?” Diz ele: “É norma (...) quando passamos da política da busca da igualdade para a política da afirmação da diferença”.

O problema da desigualdade não são nossas diferenças em si, mas aquilo que se atribui de valor e hierarquia entre essas diferenças. Uma política de busca pela igualdade jamais será bem-sucedida se não se atentar às diversidades, na medida exata para que alcancemos a igualdade. Isso porque a norma hoje é esta: da forma como nos comportamos, nossas instituições e nossas políticas, criando padrões generalizados, estamos perpetuando o racismo, o neorracismo e gerando desigualdade. Se publicamos um edital de convocação para uma atividade profissional a ser realizada no centro de São Paulo e o requisito para a seleção for “morar perto”, não estaremos realizando um processo seletivo justo, igualitário, cujo critério é somente o mérito, pois se excluem nessa chamada todas as pessoas que moram em locais mais periféricos, que, em sua maioria, são negras, enquanto que a maioria das pessoas que moram próximo ao centro é branca. Ora, aquilo que pareceu um critério neutro, não racializado, na verdade carrega em si o poder de gerar um grande efeito discriminatório. O padrão discrimina.

Maria Letícia Puglisi Munhoz é formada em psicanálise e direito pela PUC-SP (Pontífica Universidade Católica de São Paulo), tem mestrado e doutorado pela USP (Universidade de São Paulo) na área de branquitude e diversidade. Atua como advogada na área de discriminação, treinamentos e políticas de diversidade e é professora na Sociedade Paulista de Psicanálise. É autora do livro “Racismo na interpretação das leis – uma análise sobre a influência branquitude na aplicação da legislação relativa à discriminação racial” (Lumen Juris) Fonte: https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2022/Antonio-Ris%C3%A9rio-e-o-falso-fundamentalismo-identit%C3%A1rio?utm_source=NexoNL&utm_medium=Email&utm_campaign=anexo

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