domingo, 30 de abril de 2023

Para encarar o eclipse da atenção e do desejo

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 “O desejo às vezes é contagioso em um bom encontro.” Protesto em Santiago do Chile, em 2019. Imagem: Imago/Aton Chile

Ansiedade. Pânico. Saturação. Com o frenesi capitalista, o transbordamento é o mal-estar de nossa era. A brutalidade impõe o cotidiano opaco: já não o vemos nem sentimos. Acolher o não-calculável é crucial para resgatar desejos e o cuidado


Eu não aguento mais! Esta frase tornou-se constante na correria que é tentar viver o cotidiano — em suas tribulações e belezas. Mas o que, afinal, já não suportamos? O trabalho massacrante? As engrenagens perversas do sistema? A vida precarizada? Ou tudo isso e muito mais?

Nesta entrevista, Amador Fernández-Savater — um ativista e pesquisador espanhol; ou um filósofo pirata, como gosta de se definir – busca compreender esta crise que é pessoal, mas também coletiva. Ele é coorganizador de El eclipse de la atención (ainda inédito no Brasil), livro recentemente publicado que propõe analisar um mal-estar civilizacional: a crescente sensação de transbordamento no capitalismo contemporâneo. Na obra, diversos pensadores – entre eles, Ives Citton, Santiago Alba Rico, Franco Bifo Berardi e o próprio Fernández-Savater – apontam algumas pistas para entendê-la.

A primeira é que atenção é algo diferente de concentração. Se esta requer disciplina e um “esforço laborioso da vontade”, aquela representa a capacidade de enxergar os pequenos detalhes (e potencialidades) do cotidiano, que muitas vezes passam despercebidos. A atenção, portanto, é uma espera ativa que se contrapõe ao imediatismo neoliberal – e requer uma dimensão temporal mais heterogênea que possa dar vazão aos desejos humanos.

A segunda pista é que este eclipse da atenção não é algo apenas cognitivo e “teórico”, mas muito concreto nas mentes e corpos. Expressa-se no déficit de atenção, em transtornos de hiperatividade, síndrome do pânico, em relações ansiosas com novas tecnologias, abuso de psicofármacos etc. Manifesta-se também na precarização da vida, em que profissionais – como os da Saúde e da Educação, por exemplo – se veem impotentes diante da multiplicação de demandas e até no “atravessamento dos limites físicos e biológicos do planeta”, como aponta Fernández-Savater.

E, por fim, a necessidade de encarar a atenção como uma das chaves para as lutas coletivas ao pressupor formas de combater os automatismos cotidianos (no bojo das novas tecnologias) e a profunda crise do cuidado. Afinal, a atenção mostra-se como uma poderosa capacidade de nos olhar e olharmos para o mundo, destaca Fernández-Savater, o que requer “tempo, recursos e contextos institucionais adequados” e acolher o não-calculável para que possamos reativar as forças capazes de transformar o mundo a partir do Comum. Afinal, almejar algo requer estar realmente atento.

E se há desejo há atenção.

O que é e quais são os sintomas do eclipse da atenção?

Poderíamos talvez falar de um sintoma maior: a sensação de transbordamento e saturação como um mal-estar de nossa época. Essa sensação, bem física e material, se expressa de muitas maneiras diferentes: pensemos nos ataques de pânico e nos ataques de ansiedade, que são descritos precisamente como uma perda de controle do corpo em que o sujeito sente vontade de morrer; pensemos nas escolas ou centros de saúde que, na Espanha, mas certamente não só, denunciam a falta de tempo e recursos para enfrentar a multiplicação de demandas; pensemos inclusive na travessia dos limites físicos e biológicos do planeta. É, por todos os lados, uma sensação de transbordamento: dos corpos, dos tempos, dos espaços sanitários e educativos, do próprio planeta.

Por que a atenção não é uma questão individual, mas política e coletiva?

É muito fácil de entender, usando os exemplos que demos antes. Um professor ou profissional de saúde, por mais que se esforce para fazer bem o seu trabalho, é em grande parte condicionado pelas condições de atenção que o habita. Ou seja, o problema da atenção não aponta apenas para uma questão privada e individual, mas também coletiva e, portanto, política. A atenção é um ambiente, um ecossistema, um espaço relacional, como Yves Citton [professor francês de literatura e mídia da Universidade Paris VIII] se propõe a pensar em seu livro sobre uma ecologia da atenção. É preciso não só buscar a reabilitação da atenção em termos individuais, procurando exercê-la de diversas formas, mas também criar melhores “situações de atenção”. Em muitos casos, essas situações passam por tempo, recursos e contextos institucionais adequados. Uma verdadeira luta política.

Muitos pesquisadores apontam que vivemos uma epidemia de deficit de atenção, assim como de outros transtornos mentais – e, muitas vezes, medicados com muitos fármacos. Como pensar a saúde mental em nosso tempo a partir de outras perspectivas?

Pensando primeiro que toda saúde mental é precária e que aspirar a uma saúde mental que seja definidora pressupõe uma fortificação do sujeito (à base de comprimidos e diferentes formas de anestesia) que pode revelar-se fatal. O reprimido regressa de forma ainda mais temerosa e a morte se instala no coração de quem quer viver sem nenhum sobressalto. Nossas “feridas” nos fazem sofrer, sem dúvida, mas ao mesmo tempo são uma fonte de energia, de transformação que trata de interrogar e elaborar. Não se trata de proteger-se deixando o que desestabiliza de fora, o que nos leva à procura de todo o tipo de bodes expiatórios, mas de aprender a saber-fazer com a nossa própria loucura – porque todos somos mais ou menos loucos, o que é sabido desde Freud.

A precarização da vida, a pandemia e a digitalização da sociedade são apontados como os principais fatores para esse eclipse de atenção. Você concorda com esse diagnóstico?

Há um círculo vicioso: de um lado, o transbordamento que traz consigo a vitória da lógica do lucro sobre qualquer outro valor social. As vidas individuais, os centros de saúde primários, as escolas e o próprio planeta são explorados, precarizados e “não dão conta”. Por outro lado, os automatismos: todos os tipos de padrões, protocolos e algoritmos que organizam a nossa vida, como os únicos dispositivos capazes de “estar à altura” da eficiência e da velocidade exigidas por essa máquina de extração de lucro imediato em que vivemos. A eficiência que esses automatismos buscam é, muitas vezes, apenas a eficiência da performance, a eficiência do mundo das coisas. Transbordamento, crise dos cuidados e da atenção, automatismos: é o círculo vicioso do qual temos que pensar como sair.

Diante do ritmo frenético que nos é imposto, qual a importância do Cuidado e da Serenidade como formas de resistência ao neoliberalismo?

Fundamentalmente, Simone Weil [1909-1943, filósofa francesa que analisou o cotidiano das fábricas] fala de atenção como “capacidade de esperar”. Ela diferencia atenção e de concentração: a atenção não é um esforço laborioso da vontade, mas um estado de abertura e disponibilidade. Ao mundo, aos outros e à situação em que habitamos. Não requer tanto trabalho ou uma disciplina penosa, como relacionamento com desejo e alegria. Se há desejo há atenção, prestamos atenção ao que desejamos. Não consiste tanto em “focar-se” ou “centrar”, mas em esvaziar-se de preconceitos para poder acolher algo desconhecido e não previsto de antemão. Essa “espera ativa” implica um tempo radicalmente heterogêneo ao imediatismo capitalista. Um tempo de processo, um tempo de elaboração, o tempo de “ver, compreender e decidir” de que falava Jacques Lacan.

Em seu artigo sobre Marcuse (traduzido e publicado por Outras Palavras), você aponta que o as potencialidades de libertação humana estão nos pequenos detalhes – e que, muitas vezes, elas passa despercebidas. Como é possível nos atentar a estes momentos?

Precisamos necessariamente dessa “passividade ou expectativa ativa”. Não se precipitar, ter pressa, não ter opinião sobre tudo, não saber sempre de antemão qual é a posição correta, mas nos abrirmos ao inesperado. Essa abertura pode nos permitir detectar potencialidades, senti-las com o corpo. É preciso uma renúncia ao controle, à imposição da nossa vontade, de nossas intenções, para acolher o não-calculável, o não-previsível e o não-controlável. Sempre há potencialidades, sempre há recursos, e o mundo nos pede um voto de confiança (“acredite no mundo”, disse Deleuze).

Como reaprender a desejar?

Não é possível; não há receita, não há técnica. O desejo às vezes é contagioso em um bom encontro. De repente uma nova fonte de sentido se abre lentamente no calor de um encontro e nossa vida muda imperceptivelmente. Uma amiga minha saiu abatida de um período terrível e injusto que passou na prisão, por quase três anos. Aos sair, ela conheceu uma pessoa, um cara apaixonado pelo cinema. Eles assistiam filmes juntos, conversavam sobre filmes. Aos poucos foi nascendo nela uma nova sensibilidade, uma nova pele. Um novo mundo de possibilidades, objetos, de registro do mundo. Agora ela mesma é uma cineasta e conseguiu filmar este período em que ela passou na prisão. Ela conseguiu vencer as forças que queriam quebrá-la, graças a um desejo contagiante – e, por que não, pelo amor.

Fonte:  https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/para-encarar-eclipse-da-atencao-e-do-desejo/

Ecodecálogo

Por MICHAEL LÖWY*

Dez mandamentos para salvar a vida neste planeta

O autor destas notas não se julga um novo Moisés e não considera ter recebido este Ecodecálogo de Jeová. Trata-se simplesmente de uma tentativa de responder, com um toque de ironia, em duas páginas breves, à pergunta que muitos se fazem atualmente: o que fazer? O que fazer diante da crise ecológica e da catástrofe climática?

(i) Levarás a sério a crise ecológica. Não se trata apenas de um problema entre muitos outros, é a questão política, econômica, social e moral mais importante do século XXI. É uma questão de vida ou de morte. Nossa casa comum arde em fogo. Não há tempo a perder. Tu tens outras preocupações? Estás preocupado, com toda razão, com o preço da gasolina e do gás e te preocupas injustamente com o grande número de árabes, negros, ciganos, judeus, mexicanos e gays em teu país? Tens que modificar tuas inquietações. A crise climática é mais grave. Muito mais grave? Infinitamente pior. Trata-se da tua sobrevivência e/ou da de teus filhos e netos.

(ii) Não adorarás os ídolos da religião capitalista: “Economia de mercado”, “Energias fósseis”, “Crescimento do PIB”, “Organização Mundial do Comércio”, “Fundo Monetário Internacional”, “Competitividade”, “Pagamento da dívida”, etc. Estes são falsos deuses, ávidos por sacrifícios humanos e responsáveis pelo aquecimento global.

(iii) Agirás diariamente de acordo com os princípios ecológicos. Recusarás viagens de avião nas distâncias cobertas por ferrovias. Reduzirás drasticamente teu consumo de carne. Evitarás as armadilhas do consumismo. Terás consciência da interdependência de todos os seres vivos e agirás com prudência e respeito pela natureza. Mas rejeitarás as ilusões do “beija-florismo”: a crença de que a mudança ecológica resultará da soma de pequenas ações individuais.

(iv) Apoiarás ações coletivas, por exemplo, qualquer luta ecológica concreta, em teu país e no mundo. Consoante o caso, optarás por manifestações de rua, atos de desobediência civil, ZADs [Zonas a Defender], sabotagem de oleodutos. Participarás ou apoiarás movimentos, ONGs, etc. que lutem pelas causas ecológicas, privilegiando as mais radicais.

(v) Nunca oporás o social e o ecológico. Tentarás, por todos os meios, favorecer a convergência entre lutas sociais e ecológicas. Agirás para garantir empregos alternativos aos trabalhadores das empresas poluentes, que devem fechar. Tentarás aproximar sindicatos e movimentos ecológicos.Denunciar este anúncio

(vi) Serás solidário, militante e/ou financeiramente, com os refugiados do clima e as vítimas de catástrofes ecológicas. Exigirás que as fronteiras de teu país lhes sejam abertas e que os países ricos do Norte indenizem os países pobres do Sul pelos danos causados pelas mudanças climáticas.

(vii) Lutarás sem trégua contra os políticos ecocidas e/ou negacionistas do clima, os Donald Trump, Jair Bolsonaro, Scott Morrison e cia. Todos os meios são bons para desalojá-los, trocá-los, neutralizá-los.

(viii) Rejeitarás o teu apoio àqueles que invocam o nome da ecologia em vão. Ou seja, os políticos que fazem belos di erde e do greenwashing.

(ix) Combaterás, por todos os meios, as empresas da oligarquia fóssil, ou seja, o enorme complexo econômico-financeiro-político-militar ligado às energias fósseis: petróleo, carvão, gás. Lutarás por sua expropriação e pela criação de um serviço público de energia, resolutamente orientado para as energias renováveis (solar, eólica, hídrica, etc.) e capaz de oferecer serviços gratuitos às camadas populares.

(x) Sabendo que o problema é sistêmico e que, consequentemente, nenhuma solução verdadeira será possível no marco do capitalismo, participarás, de uma forma ou de outra, dos partidos ou movimentos que propõem alternativas anticapitalistas: ecossocialismo, ecologia social, decrescimento, etc.

*Michael Löwy é diretor de pesquisa em sociologia no Centre nationale de la recherche scientifique (CNRS). Autor, entre outros livros, de O que é o ecossocialismo (Cortez).

Fonte:  https://leonardoboff.org/2023/04/29/ecodecalogo/

Tweet and shout

Antonio Prata*

Estúdio para gravação de podcast na Black Princess House, novo espaço no largo da Batata

 Estúdio para gravação de podcast no largo da Batata - Divulgação

Redes sociais produzem uma minicatarse paralisante

Já ouvi gente falando que o podcast é o renascimento do rádio. O rádio é genial, uma mídia imorredoura, mas podcast não tem nada a ver com ele. O formato está mais próximo do ensaio literário do que de um programa de ondas curtas, médias ou longas.

Podcasts são antípodas das redes sociais. Enquanto elas são dispersivas, levam à evasão e à desinformação, os podcasts são uma possibilidade de imersão, concentração, aprendizado. Depois que eles surgiram, lavar a louça e me locomover pela cidade viraram um programaço. Um pós-almoço de domingo e aprendo tudo sobre bonobos e gorilas. Um Uber pro aeroporto e chego no embarque PhD em reforma tributária.

Tem um escritor, filósofo e neurocientista americano de quem gosto muito, Sam Harris. Em seu podcast sempre há convidados interessantes: cientistas, artistas, religiosos, pensadores de todo tipo. No último episódio, ele papeia com o psicólogo Paul Bloom sobre o Twitter e seus desserviços à humanidade. Sam Harris, um cara bastante influente nas redes sociais, decidiu abandonar o Twitter e as razões que ele dá levam a gente a pensar no que estamos fazendo com as nossas vidas neste labirinto de ódio e fake news.

Um argumento que muitos (eu, inclusive) usam para ficar no Twitter é que ali a gente se mantém informado sobre tudo, o tempo todo. Isso deveria ser um argumento contra a rede social. Quem consegue escovar os dentes sabendo, em tempo real, que uma bomba explodiu na Síria, um senador levou o boneco de um embrião para um debate, o x-costela da lanchonete Y não tem costela e a ex-BBB Fulana de Tal acabou de postar algo ofensivo contra os daltônicos?

Nosso impulso imediato é, sem parar de escovar os dentes, dar um retuite no Guga Chacra, botar coraçõezinhos em posts de amigas feministas, amaldiçoar o capitalismo e dar todo apoio aos daltônicos, a quem, nestes vinte segundos após o tuíte ofensivo, já aprendi a chamar de "comunidade daltônica" – como se estivessem todos eles dançando uma ciranda e trocando morangos verdes por alfaces vermelhas.

No meio da pandemia e da desgraça do governo Bolsonaro, o cientista político Pablo Ortellado publicou aqui na Folha uma coluna muito interessante sobre o poder paralisante dos grupos de WhatsApp. Parecia que ele descrevia minhas conversas. Ficava todo mundo metade do tempo gritando "ai, meu Deus, que horror o que o Bolsonaro fez hoje!" e a outra metade elogiando posts e textos dos amigos contra o horror que o Bolsonaro havia feito naquele dia. Achávamos que estávamos indo pra frente, dividindo a indignação e aplaudindo os feitos alheios, mas, como ratinhos correndo numa roda, não saíamos do lugar.

O Twitter, como os grupos de WhatsApp, tem o mesmo efeito: produz uma minicatarse paralisante. Se em vez de retuitar uma hashtag contra a guerra eu fosse até a Acnur ou o Instituto Adus saber o que eu posso fazer para ajudar os refugiados, se doasse dinheiro para uma ONG séria ou me dispusesse a reservar uma hora por semana para ensinar português a crianças sírias, eu faria um bem ao mundo. Mais fácil, porém, é o pseudoativismo narcisista das redes. Fico bem com sírios e troianos, sem ter que mover uma palha para ajudar ninguém. No tempo que resta, xingo Deus e o mundo, me indisponho com pessoas de quem gosto, babo veneno ao ver desafetos sendo levados para a fogueira.

Outro dia um amigo desabafou: "eu saí de Guajará-Mirim aos 17 anos pra fugir daquela coisa tacanha do interior, pra me distanciar das fofocas das minhas tias-avós infelizes que passavam a vida maldizendo os outros e, agora, o mundo virou isso: a sala das minhas tias-avós infelizes num chá de domingo!". Ele tem um ponto. Acho que vou fazer um tuíte a respeito.

* Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem" 

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/antonioprata/2023/04/tweet-and-shout.shtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newscolunista

quinta-feira, 27 de abril de 2023

Ler ou não ler! Eis uma questão sobre a qual é importante refletir

 Ana Cristina Silva*

Conheça os benefícios de ler vários livros ao mesmo tempo - Atena Editora

Há meses, os jornais portugueses fizeram machetes sobre a ausência de hábitos de leitura dos portugueses. Um estudo encomendado pela Fundação Gulbenkian demonstrava que apenas 39% da população tinha lido pelo menos um livro e 27% destes eram pequenos leitores com um máximo de 5 livros lidos num ano. O eco da dramática manchete estendeu-se durante uma semana pelos ouvidos dos leitores de jornais e, depois, como é habitual nestas coisas, foi-se esbatendo sendo substituído pela sonoridade de um outro escândalo igualmente veemente. O estudo revela que muitos dos não leitores têm ambientes de literacia familiar relativamente pobres -- na linha do que algumas investigações feitas pela Prof.ª. Lourdes Mata do ISPA têm demonstrado. Curiosamente apresenta ainda um outro dado digno de registo: apenas 12 % dos leitores com habilitações de nível superior leem por prazer, o que significa que, para estes, a leitura de ficção e de poesia não faz parte do seu cardápio habitual de leitura.

A relevância da leitura de romances e poesia tem sido objeto, em anos, recentes de diversas investigações no domínio da psicologia com estudos que abordam o seu efeito ao nível do bem-estar emocional, com estudos que avaliam o impacto da ficção e da poesia como recurso de terapias, com estudos que avaliam o impacto da literatura infantil no desenvolvimento de competências emocionais, verbais e cognitivas em crianças, etc. Em diversos países são proporcionados aos alunos de psicologia, de medicina, de sociologia, etc. cadeiras opcionais de escrita criativa e poesia, não com o objetivo de criar grandes analistas literários, mas como uma estratégia para promover nos alunos o contacto com as suas emoções e as dos outros. É de assinalar, por exemplo, que uma das faculdades de medicina do Porto tem uma cadeira opcional de Poesia ministrada por um médico que é igualmente um poeta de renome, tendo sido aliás o último Prémio Pessoa. O Prémio Nobel da Literatura Elias Canetti afirmou que "Não temos conhecimento daquilo que sentimos, sendo necessário que o vejamos nos outros para o reconhecermos" e a literatura pode ser um dos meios possíveis para despoletar esse tipo de autoconhecimento.

A narrativa e a ficção são elementos que fazem parte da natureza humana e isso é um dado que a psicologia tem repetidamente demonstrado. Por exemplo o desenvolvimento socioemocional das crianças está associado de perto à capacidade de aprenderem a narrar-se; a memória individual em relação ao passado tem frequentemente componentes ficcionais. A narrativa e a metáfora são recurso e asas para a terapia. No entanto, a literatura vai mais fundo na arte da narrativa procurando ir além do efémero, desvendando com as suas histórias individuais a dor que faz parte de todo e qualquer ser humano. Como refere Joyce Carol Oates, os escritores esforçam-se por, a partir do que lhe é próximo e da sua voz individual, chegar à voz comum, criando dessa maneira uma inesperada intimidade com os leitores. E a criatividade literária busca tantas vezes o processo alquímico de transformar sofrimento em beleza.

A literatura pelos recursos linguísticos e narrativos que mobiliza e que fazem parte do processo de criar uma obra de arte permite que a dimensão emocional e cognitiva seja simultaneamente tocada no decurso da leitura e desse modo, poderá conduzir o leitor a entrar em contacto de uma forma mais profunda com as suas emoções e as dos outros. «Aprendi com a primavera a deixar-me cortar e a voltar sempre em inteira» diz

Cecília Meireles num dos seus poemas, estendendo deste modo a mão ao processo de renovação tão necessário num processo terapêutico. Joan Didion escreve no seu célebre romance, «O ano do pensamento do pensamento mágico»: "O sofrimento do luto é assim: um longo corredor que não é possível passar a correr", tateando com esta imagem o coração de muitos leitores em processo de luto. Pretendo com estes exemplos, e poderia ir buscar muitos mais, demonstrar como a literatura é capaz de tocar a duas mãos nas emoções e cognições; e com este, texto apelar aos futuros psicólogos, futuros docentes, futuros biólogos - e provavelmente a muitos dos seus professores - para lerem boa literatura pois o nosso ramo de negócio, como se diz nos tempos atuais, é a alma humana e para qual precisamos de abrir todos os horizontes possíveis.

*Professora do Ispa - Instituto Universitário e escritora

Imagem da Internet

Fonte:  https://www.dn.pt/opiniao/ler-ou-nao-ler-eis-uma-questao-sobre-a-qual-e-importante-refletir-16254464.html

Dizer Eu. Alguém livre

 Anselmo Borges*

Matthieu Ricard.jpg

 
 
    Uma antiga aluna, agora avó, enviava-me há dias um vídeo com o seu neto. É uma alegria comovedora ver aquele bebé a gesticular e a sorrir, agitando-se... Uma outra avó: “É uma emoção muito grande”. E eu alegro-me também e reflicto: Estes bebés vão crescer, aos poucos vão tentar articular palavras, e muito lentamente, depois de se referirem a si como o menino, a menina ou pronunciando o seu nome, dizer “eu”. Ao princípio sem consciência do que isso significa na sua grandeza, mas, depois, mais uma vez lentamente, com tom acentuado e afirmativo de autonomia... Evidentemente, sempre em contraposição com o outro, um tu: afinal, há eu porque há tu, e a primeira tomada de consciência é mesmo a do tu, mas sempre numa interação e inter-relação permanentes. E num processo nunca verdadeiramente acabado...
 
    E perguntamos: o que diz alguém, quando diz "eu", fazendo-o de forma autenticamente consciente? Afirma-se a si mesmo, a si mesma, como sujeito, autor/a das suas acções conscientes, centro pessoal responsável por elas, alguém referido a si mesmo, a si mesma, na abertura e em contraposição a tudo.
 
     Mas, reflectindo, deparamos com observações perturbadoras. Por exemplo, pode acontecer que alguém adulto, ao olhar para si em miúdo, se veja de fora, apontando como que para um outro: aquele era eu, sou eu?
 
    Há filósofos que se referem à ilusão do eu. Certas interpretações do budismo caminham nessa direcção. No quadro da impermanência e da interdependência de todas as coisas, fala-se da inexistência do eu. Matthieu Ricard, investigador em genética celular e monge budista, deu-me uma vez, num congresso no Porto, um exemplo: veja ali o rio Douro. O que é o rio Douro, onde está? Ele não existe como substância, pois não há senão uma corrente de água. Está a ver a consciência? O que é ela senão um fluxo permanente de pensamentos fugazes, de vivências? O Eu não passa de um nome para designar um continuum, como nomeamos um rio.
 
   Por mim, afirmo que há a experiência vivida e inexpugnável do eu, ainda que numa identidade em transformação, que continuamente se faz, desfaz e refaz. De facto, vivemo-nos numa identidade em processo. Em relação ao eu, o que se passa é que, não se tratando de uma realidade coisista, é inobjectivável e inapreensível. Nunca nos captamos totalmente, porque nos experienciamos como uma subjectividade reflexiva: somos objecto de conhecimento para nós próprios, mas, uma vez que a possibilidade de nos objectivarmos é uma subjectividade que se retrai sempre, nunca nos conhecemos adequada e plenamente, de tal modo que seremos sempre enigma para nós mesmos.
 
     E é e será sempre enigmático como aparecem no mundo corpóreo o eu e a consciência, consciência da consciência, consciência de que somos conscientes... É claro que o Eu não pode ser pensado à maneira de uma alma, um homunculus, um observador dentro do corpo — o fantasma dentro da máquina. Há, portanto, uma correlação entre a consciência e os processos cerebrais. Mas significa isto que essa correlação é de causalidade, de tal modo que haverá um dia uma explicação neuronal adequada para os estados espirituais? Ou, como já viu Leibniz e é acentuado também pelo filósofo Th. Nagel, mesmo que, por exemplo, tivéssemos todos os conhecimentos científicos sobre os processos neuronais de um morcego, não saberíamos o que é o mundo a partir do seu ponto de vista? A questão é: como se passa de acontecimentos eléctricos e químicos no cérebro — processos neuronais da ordem da terceira pessoa — para a experiência subjectiva do eu na primeira pessoa?
 
    Apesar de não se afastar por princípio a possibilidade de se poder vir a dar essa compreensão, o filósofo Colin McGinn pensa que talvez nunca venhamos a entender como é que a consciência surge num mundo corporal, a partir de processos físicos. Também o neurocientista W. Prinz disse: "Os biólogos podem explicar como funcionam a química e a física do cérebro. Mas até agora ninguém sabe como se chega à experiência do eu nem como é que o cérebro é capaz de gerar significados."
 
    E sou livre ou não? É claro que, como escreveu o filósofo M. Pauen, se as nossas actividades espirituais se identificassem com processos cerebrais, segundo leis naturais, já se não poderia falar em liberdade: "as nossas acções seriam determinadas não por nós, mas por aquelas leis."
 
    Mas, afinal, quem age, quem é o autor das minhas acções: o meu cérebro ou eu? "Como não é a minha mão, mas eu, quem esbofeteia esta ou aquela pessoa, não é o meu cérebro, mas eu, quem decide. O facto de eu pensar com o cérebro não significa que seja o cérebro, e não eu, quem pensa", escreve o filósofo Th. Buchheim.
 
    Só existe liberdade, se há alguém capaz de autodeterminação. A determinação por um "eu", segundo um juízo de valor, é que faz com que uma acção seja livre e não puro acaso ou enquadrada no determinismo das leis naturais. Como já aqui tentei explicar, a liberdade é-nos dada numa experiência — faço a experiência de ser dado a mim mesmo e, consequentemente, a experiência de ser dono de mim próprio e, portanto, dono dos meus actos. Por isso, sou responsável por mim e por eles, isto é, respondo por eles e por mim.  Dada a neotenia — nascemos por fazer —, a nossa missão e tarefa é, fazendo o que fazemos, fazermo-nos a nós próprios. E todos morremos inacabados. Para os crentes, morremos para Deus, o Outro absoluto que finalmente nos dirá quem somos para Ele e Ele para nós. A plenitude.
 

*Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 22 de abril de 2023

fonte:  https://e-cultura.blogs.sapo.pt/dizer-eu-alguem-livre-1463023 


«La felicidad significa cosas diferentes para cada generación»

Artículo Raquel C. Pico*

Robert Waldinger es el actual director del Estudio Harvard de Desarrollo en Adultos, una investigación que lleva prácticamente un siglo en marcha y que sigue a sus sujetos durante toda su vida. El objetivo final es comprender qué hace que unas personas sean felices y otras no. No es tan fácil como parece: el concepto de felicidad (y su valor) ha mutado con el paso de los años.


Habla un castellano pausado y, al otro lado de la pantalla –desde donde se enfrenta a una entrevista en grupo con varios medios, entre ellos Ethic–, responde a las preguntas con sosiego y precisión. Bromea con que la experiencia le sirve para practicar el idioma. La traductora que le ha puesto la editorial le ayuda con alguna palabra suelta y le traduce las preguntas que le vamos haciendo turno a turno. Nos habían pedido que fuésemos claras y hablásemos despacio, pero todo indica que no lo hemos logrado. Con todo, Robert Waldinger trasmite paz y calma, y en cierto modo no sorprende: acaba de publicar Una buena vida (Planeta).

En el cóctel para encontrar esa felicidad, la infancia es la primera etapa de aprendizaje

El ensayo, del que es co-autor junto con Marc Schulz, transmite qué es lo que ha descubierto el Estudio Harvard de Desarrollo en Adultos, una larga investigación –sus orígenes se remontan en los años a la Gran Depresión– sobre la felicidad humana. Sus expertos llevan siguiendo desde hace ya más de 80 años a las mismas personas (la participación ha pasado de padres a hijos) y ahora Waldinger, que es el director actual del estudio, desentraña ante la prensa los secretos que han encontrado.

Pero ¿estamos más obsesionados ahora con la felicidad de lo que se estaba hace 80 años cuando empezó el estudio o el hecho de que exista este estudio con una duración tan larga nos demuestra que en realidad esta preocupación por la felicidad es tan antigua casi como como la vida?

«La felicidad significa cosas diferentes para generaciones distintas. Por ejemplo, para la primera generación de nuestro estudio –que es la de la Segunda Guerra Mundial– está relacionada el sentido de la vida, con cómo puedo vivir una vida buena. Ahora pensamos más en la felicidad, digamos, hedonística; tener fiestas magníficas vacaciones de lujo y todo esto. Hay imágenes en las redes sociales de esa vida de hedonismo y los jóvenes las valoran mucho. Creen que esto es lo que es importante en la vida, porque estas imágenes están por todas partes. Era muy distinto en la generación de la Segunda Guerra Mundial, cuando se preocupaban más por vivir con un propósito claro. Muchos hoy quieren vivir vidas con propósito, pero este énfasis en la cultura popular es algo distinto».

Puede que a lo que aspiramos haya cambiado, pero los efectos de la felicidad siguen siendo importantes. Por ejemplo, felicidad y salud están profundamente conectadas. «Sabemos que es una relación bidireccional, que la salud predice que uno va a ser más feliz y al revés, que la felicidad ayuda a mantener la salud física. Las dos están conectadas», nos explica el experto. Al fin y al cabo, no es solo que «cuando estamos felices tenemos la energía de mantener la salud», sino que, por el contrario, «cuando estamos enfermos, tenemos menos energía para conectar con otras personas, para hacer las cosas que nos hacen felices».

Los ingredientes de la felicidad

En el cóctel para encontrar esa felicidad, la infancia es la primera etapa de aprendizaje. Nuestra familia es «un modelo de vivir», explica Waldinger. «La familia nos enseña cómo ser amigo, cómo ser pareja, y es muy importante, pero también podemos aprender otros modos de relacionarnos con los demás como adultos», indica. «Estos modelos originales son muy poderosos, pero podemos cambiar nuestras expectativas de relaciones», puntualiza. En Una buena vida, Waldinger y Schulz lo transmiten con el ejemplo de las historias vividas. No necesariamente las experiencias de infancia marcan de forma irrevocable el destino: se puede cambiar de rumbo y aprender nuevos modelos.

Waldinger: «Hay factores genéticos que son muy importantes para nuestro bienestar emocional»

El cómo somos a un nivel esencial también impacta en este cómputo de nuestro bienestar emocional. «Hay factores genéticos que son muy importantes», responde Waldinger, y recuerda el trabajo de Sonia Lyubomisky: «Ella estima que el 50% de nuestra felicidad tiene que ver con el temperamento y los factores genéticos, otro 10% con las circunstancias inmediatas de la vida en las que nos encontramos y el otro 40% es aquello en lo que podemos influir. Y es mucho, pero no es todo».

Cualquiera puede identificar cuáles son esas circunstancias que marcan nuestra felicidad para mal en estos inicios del siglo XXI. El mundo va demasiado rápido y todo cambia de manera acelerada: nos cuesta mantener el ritmo de los tiempos. Y, sin embargo, esto era algo de lo que ya se quejaban también quienes respondían a aquellas primeras encuestas en los años cuarenta. ¿Nada nuevo bajo el sol o ahora son estos elementos algo peor porque todo va mucho más rápido? «Sí, todo cambia mucho más rápido», apunta el experto, «lo hace la tecnología más que nada y existen dificultades para aprender a usarla».

«Hay grupos amplios en la sociedad que se sienten fuera de la cultura, porque no saben cómo usar la tecnología. En Estados Unidos, por ejemplo, hay mucha gente que, por esto, se siente que forma parte de un grupo separado. Es peligroso», señala. Si estás fuera, ni participas en la sociedad ni lo haces en la política. «Internet y las redes sociales nos dividen. Vivimos en nuestras burbujas y nunca encontramos otros puntos de vista. Esto es peligroso», indica.

«Por eso, el aislamiento social es mucho más común y el sentido del mundo como un lugar peligroso está aumentando. Hay datos que dicen que actualmente el mundo no es tan peligroso como antes, pero lo experimentamos como tal». Pero existe un antídoto: «Mantener la curiosidad ante otros puntos de vista».

Trabajos de mantenimiento

La tecnología ha cambiado cómo nos relacionamos, desplazándonos a esos mundos virtuales. Esta entrevista es casi un ejemplo. «Estamos conectados vía Zoom, lo que es mejor que no conectar», concede Waldinger, que sin embargo también recuerda que hay cuestiones, como las emociones, sobre las que todavía no se sabe muy bien qué ocurre con ellas en internet.

Waldinger: «Existen grandes ventajas en la conexión por internet, pero es muy difícil prestarnos la misma atención que en un encuentro en persona»

Es una cuestión compleja y llena de matices. La pandemia nos ha enseñado que esa conexión cara a cara es importante, «pero también conectarse online es una ventaja más», apunta el experto en felicidad, porque abre ventanas para la conversación a personas que lo necesitan y no la tendrían, quizás, de otra manera. «Existen grandes ventajas en la conexión por internet, pero es muy difícil prestarnos la misma atención. También vemos que podemos sentarnos juntos en un restaurante y terminar todos mirando nuestras pantallas, no hablando y mirándonos los unos a los otros», indica. «Otro problema es que el software está creado para capturar nuestra atención, lo que hace muy difícil dejarlas», alerta. Y eso sí es «un problema grave» que debemos corregir.

Por supuesto, la forma en que nos conectamos en el siglo XXI no es el único reto. Igualmente, las condiciones laborales contemporáneas son un lastre. Uno de los capítulos de Una buena vida habla de la importancia de nuestro trabajo en el cómputo final de nuestra felicidad, pero ¿cómo podemos ser felices si parecemos abocados a la precariedad?

«Las investigaciones de varias escuelas de negocios de Estados Unidos muestran que quienes tienen amigos en el trabajo son la gente más feliz, pero también la más productiva. En definitiva, son mejores trabajadores», responde Waldinger, recordando que la rotación de personal es más baja en estas condiciones. Una encuesta de Gallup preguntó a los trabajadores estadounidenses si tenían un mejor amigo en horario laboral. «Solo el 30% dijo que lo tenían, pero este porcentaje era más feliz, trabajaba mejor y era mejor con los clientes», indica. «Es posible demostrar a los líderes que es mejor crear una cultura que use los valores y las conexiones personales», apunta el experto en felicidad.

Al trabajo y al contexto, se suma el paso del tiempo. Asumimos que, cuando cumplimos ciertos años, se va a producir una suerte de desescalada de la felicidad. Sin embargo, las investigaciones del Estudio de Harvard demuestran que nunca es tarde para cambiar el rumbo de nuestras vidas e ir a por lo que nos haga felices, pero también que esas fases de la vida que tradicionalmente se veían como una especie de fronteras para haber logrado cosas son irrelevantes.

«La crisis de la mediana edad es un mito. La mayoría de gente no tiene una crisis», concluye Waldinger. «Por ejemplo, hay reevaluaciones de cada persona, pero crisis no, no son tan comunes como creíamos. Hay muchos mitos de lo que debe ocurrir. Ahora hay mucha más variación en los senderos de la vida», recuerda. «Estamos encontrando senderos más variables en la segunda generación de nuestro estudio que en la primera, que es la de la Segunda Guerra Mundial. Creo que esta apertura es una cosa muy buena para muchas personas, porque esta idea de una vida estereotípica no existe exactamente», señala.

Y así, desgranando los puntos débiles y las fortalezas de lo que nos hace más o menos felices, llega el final de la entrevista colectiva. Waldinger seguirá hablando todo ese día con los medios, antes de volver al trabajo. Porque, por muchas décadas que acumule, el Estudio de Harvard está lejos de ser finalizado: sus investigadores siguen recopilando cuestionarios y haciendo entrevistas con sujetos.

Los años marcan, eso sí, los datos que recogen y las lecciones interesantes que pueden extraer. Ahora, nos cuenta el director del estudio, les interesan mucho las experiencias durante la pandemia y el uso de redes sociales. «La revolución digital es el desafío más grande en esta generación, y vamos a estudiar esta revolución y su impacto en nuestros participantes», apunta.

 *Escritora e xornalista

Fonte: https://ethic.es/2023/04/entrevista-robert-waldinger-felicidad/

terça-feira, 25 de abril de 2023

O que o futuro nos guarda?

Artigo de Jerome Roos

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25 Abril 2023

“As soluções que buscamos hoje – sobre a paz mundial, a transição para energias limpas e a regulamentação da inteligência artificial – chegarão algum dia a constituir a base de uma nova ordem mundial. É impossível prever para onde esses acontecimentos nos levarão, é claro. A única coisa que sabemos é que nosso rito de passagem civilizacional nos abre uma porta para o futuro. Depende de nós cruzá-la”, escreve Jerome Ross, economista político, sociólogo e historiador da London School of Economics, em artigo publicado por The New York Times, 21-04-2023. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

“Há épocas tranquilas, que parecem conter o que durará para sempre. E há épocas de mudança, em que ocorrem convulsões que, em casos extremos, parecem alcançar as raízes da própria humanidade”, escreveu o filósofo Karl Jaspers.

A nossa é claramente uma época de convulsões. Enquanto a guerra causa estragos na Europa e o mundo calcula o custo da pandemia mais mortífera da memória recente, no planeta reina um funesto estado de ânimo. Após vários anos de agitação econômica, mal-estar social e instabilidade política, tem-se a sensação geral de que o mundo ficou à deriva, como um navio sem leme, em meio a uma terrível tormenta.

E com razão. A humanidade agora enfrenta uma confluência de desafios sem paralelos em sua história. A mudança climática está alterando rapidamente as condições de vida em nosso planeta. As tensões em torno da Ucrânia e de Taiwan reavivam o fantasma de um conflito entre superpotências nucleares. E o vertiginoso ritmo dos avanços na inteligência artificial está suscitando sérias preocupações sobre os riscos de uma calamidade mundial induzida por ela.

Essa situação inquietante exige novas perspectivas para dar sentido a um mundo que muda com rapidez e averiguar para onde podemos estar nos dirigindo. Em vez disso, apresentam-se a nós duas versões já conhecidas, mas muito diferentes, do futuro: uma narrativa catastrofista, que vê o apocalipse em todos os lugares, e uma narrativa sobre o progresso, que sustenta que este é o melhor dos mundos possíveis. Os dois pontos de vista são igualmente incisivos em suas afirmações e enganosos em suas análises. O certo é que nenhum de nós pode realmente saber para onde as coisas estão indo. A crise de nosso tempo deixou o futuro aberto.

Os catastrofistas, provavelmente, discordariam. Em seu ponto de vista, hoje, a humanidade se encontra nas vésperas de mudanças cataclísmicas que inevitavelmente culminarão no colapso da civilização moderna e no fim do mundo como o conhecemos. É uma opinião refletida no crescente número de preparacionistas, bunkers multimilionários e séries de televisão pós-apocalípticas. Embora possa ser tentador descartar esses fenômenos culturais como fundamentalmente indignos de serem levados a sério, refletem um aspecto importante do espírito da época, e revelam preocupações muitos enraizadas sobre a fragilidade da ordem existente.

Hoje, esses temores não podem mais ser circunscritos a um setor marginal de fanáticos armados e sobrevivencialistas. A incessante avalanche de crises sísmicas, tendo como pano de fundo inundações repentinas e incêndios florestais, tem empurrado o sentimento apocalíptico para o fluxo geral. Quando até mesmo o secretário-geral da Organização das Nações Unidas alerta que o aumento do nível do mar pode desencadear “um êxodo de proporções bíblicas”, é difícil se manter otimista sobre o estado do mundo. Uma pesquisa revelou que mais da metade dos adultos jovens acredita, hoje, que “a humanidade está condenada” e que “o futuro é aterrorizante”.

Ao mesmo tempo, nos últimos anos, também ressurgiu um tipo de narrativa muito diferente. Exemplificada por uma série de livros best-sellers e palestras TED virais, esse ponto de vista tende a diminuir a importância dos desafios que temos diante de nós e, em seu lugar, insiste na inevitável marcha do progresso humano. Se os catastrofistas estão constantemente preocupados de que as coisas estão a ponto de piorar, os profetas do progresso sustentam que as coisas só melhoram, e que é provável que assim continue no futuro.

O cenário panglossiano que esses novos otimistas pintam, naturalmente, atrai os defensores do status quo. Se as coisas realmente caminham para o melhor, é óbvio que não é necessária uma mudança transformadora para enfrentar os problemas mais prementes de nosso tempo. Enquanto seguirmos o roteiro e mantivermos a fé nas qualidades redentoras do engenho humano e a inovação tecnológica, todos os nossos problemas acabarão se resolvendo sozinhos.

Essas duas posições parecem, à primeira vista, diametralmente opostas, mas, na realidade, são duas faces da mesma moeda. Em ambas se destaca um conjunto de tendências sobre outro. Os otimistas, por exemplo, costumam destacar estatísticas enganosas sobre a redução da pobreza como prova de que o mundo está se tornando um lugar melhor. Os pessimistas, ao contrário, tendem a ficar com as piores hipóteses sobre um colapso climático ou financeiro e apresentam essas possibilidades reais como fatos inevitáveis.

É fácil compreender a atração dessas narrativas enviesadas. Como seres humanos, preferimos impor uma narrativa clara e linear a uma realidade caótica e imprevisível. A ambiguidade e a contradição são muito mais difíceis de suportar. No entanto, essa ênfase seletiva dá lugar a explicações do mundo fundamentalmente viciadas. Para compreender de verdade a complexa natureza de nossa época atual, em primeiro lugar, precisamos aceitar seu aspecto atemorizante: seu caráter fundamentalmente indeterminado. É esta incerteza radical – não saber onde estamos, nem o que nos espera – que dá lugar a essa ansiedade existencial.

Os antropólogos têm uma palavra para esse tipo de experiência perturbadora: liminaridade. Parece muito técnico, mas capta um aspecto essencial da condição humana. Liminaridade - termo derivado de umbral em latim –, em sua origem, significava a desorientação que se sente durante um rito de passagem. Em um ritual tradicional em razão de se alcançar a maioridade, por exemplo, destaca-se o momento em que o adolescente não é mais considerado uma criança, mas também não é reconhecido como adulto: está no meio do caminho, nem aqui e nem lá. Pergunte a qualquer adolescente: viver nesse estado de suspensão pode ser muito desconcertante.

Estamos em meio a uma dolorosa transição, em uma espécie de interregno, como o chamou o teórico político italiano Antonio Gramsci: entre um velho mundo que agoniza e um novo que luta para nascer. Essas mudanças de era estão inevitavelmente repletas de perigos. No entanto, apesar de todo o seu potencial destrutivo, também estão cheios de possibilidades. Como observou certa vez Jacob Burckhardt, o historiador do século XIX, as grandes turbulências da história mundial podem ser vistas do mesmo modo “como autênticos sintomas de vitalidade” que “limpam a terra” de ideias desacreditadas e instituições decadentes. “A crise deve ser considerada um novo eixo de crescimento”, escreveu.

Uma vez que aceitamos esta natureza bifronte de nossa época, ao mesmo tempo aterrorizante e generativa, surge uma visão muito diferente do futuro. Não concebemos mais a história como uma linha reta que tende ou bem para cima, em direção a uma melhora gradual, ou bem para baixo, em direção a um inevitável colapso. Em vez disso, vemos fases de relativa calma salpicadas de vez em quando por períodos de grande agitação. Essas crises podem ser devastadoras, mas também são os motores da história. O progresso e a catástrofe, esses opostos binários, na realidade, estão unidos pela base. Juntos, participam de uma interminável dança de destruição criativa, sempre abrindo novos caminhos e entrando em espirais rumo ao desconhecido.

Nossa época de turbulências pode dar lugar a alguma catástrofe global, ou mesmo ao colapso da civilização moderna, mas também oferecer possibilidades para a mudança transformadora. Já podemos ver essas dinâmicas contraditórias ao nosso redor. Uma pandemia que matou milhares de pessoas e esteve a ponto de causar o colapso econômico também empoderou os trabalhadores e disparou o gasto público no desenvolvimento de vacinas, que em breve poderão nos oferecer uma cura para o câncer. Da mesma forma, uma grande guerra territorial europeia que arrancou milhares de pessoas de suas casas e desencadeou uma crise energética mundial está acelerando, inadvertidamente, a mudança para as energias renováveis, o que nos ajuda a combater a mudança climática.

As soluções que buscamos hoje – sobre a paz mundial, a transição para energias limpas e a regulamentação da inteligência artificial – chegarão algum dia a constituir a base de uma nova ordem mundial. É impossível prever para onde esses acontecimentos nos levarão, é claro. A única coisa que sabemos é que nosso rito de passagem civilizacional nos abre uma porta para o futuro. Depende de nós cruzá-la.

Fonte:  https://www.ihu.unisinos.br/628110-o-que-o-futuro-nos-guarda-artigo-de-jerome-roos 

Harari alerta sobre a inteligência artificial: “Não sei se os humanos podem sobreviver”

 

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Em uma entrevista ao jornal inglês The Telegraph, o historiador e filósofo israelense Yuval Noah Harari fez um comentário alarmista sobre o avanço da tecnologia que está na boca de todos: a inteligência artificial. “Não sei se a humanidade pode sobreviver”, disse o autor do livro Sapiens: de animais a deuses, que assinou a carta de diversos especialistas, incluindo Elon Musk, que pedia a suspensão na pesquisa de software como ChatGPT, um modelo de inteligência artificial que pode interagir com humanos redigindo textos criativos, o que despertou fascínio e preocupação global.

A reportagem é publicada por La Nación, 23-04-2023. A tradução é do Cepat.

“Esta é a primeira tecnologia na história para criar histórias”, disse Harari ao meio de comunicação britânico. Para ele, “a nova geração de inteligência artificial não está só espalhando o conteúdo que os humanos produzem. Pode produzir o conteúdo por si só”. Diante dessa situação, o filósofo convida a uma projeção de um futuro cada vez mais próximo e possível: “Tente imaginar o que significa viver em um mundo onde a maioria dos textos e melodias e depois as séries de televisão e as imagens são criadas por uma inteligência não humana. Simplesmente, não entendemos o que significa”.

Em seguida, pergunta-se: “quais podem ser as consequências de a inteligência artificial se encarregar da cultura? Já existem exemplos triviais. Na semana passada, uma revista alemã foi criticada por publicar o que parecia ser uma entrevista exclusiva com Michael Schumacher, quando, na realidade, o texto foi gerado por inteligência artificial imitando o ex-piloto de corrida paralítico. Harari sugere que, em breve, a inteligência artificial irá muito além, evocando um mundo onde “você se conecta e debate com alguém sobre algum tema político. Talvez, inclusive, enviem a você um vídeo deles mesmos conversando. Contudo, não há ninguém por trás. É tudo inteligência artificial”.

No entanto, os alertas de Harari sobre os avanços da inteligência artificial vão muito além da produção artística e cultural. Para ele, assim como para o fundador da Tesla e da SpaceX, a tecnologia deve ser regulada para tomar boas decisões, porque a democracia também corre risco. “Isso é especialmente uma ameaça para as democracias, mais do que para os regimes autoritários, pois as democracias dependem do debate público”, diz, acrescentando: “A democracia basicamente é conversação. Pessoas falando entre si. Se a inteligência artificial se encarrega da conversação, a democracia acabou”.

Nesse ponto, menciona que “o regime nazista se baseou em tecnologias como trens, eletricidade e rádios. Não tinham ferramentas como a inteligência artificial”. Alinhado a isso, prevê que “um novo regime no século XXI terá ferramentas muito mais poderosas. Sendo assim, as consequências podem ser muito mais desastrosas. Isso é algo que não sei se a humanidade pode sobreviver."

Para o historiador israelense, a perda de postos de trabalho é outro alerta disparado pela inteligência artificial. “Outro perigo é que muitas pessoas fiquem completamente sem trabalho, não só temporariamente, mas sem as habilidades básicas para o futuro mercado de trabalho”, diz, argumentando que “podemos chegar a um ponto em que o sistema econômico veja milhões de pessoas como completamente inúteis. Isso tem terríveis ramificações psicológicas e políticas”.

Para Harari, a independência da inteligência artificial é uma das questões mais novas e sugere: “Precisamos entender que a inteligência artificial é a primeira tecnologia na história que pode tomar decisões por si só. Pode tomar decisões sobre seu próprio uso. Também pode tomar decisões sobre você e eu. Isto não é uma previsão futura. Isto já está acontecendo”.

Nesse sentido, afirma que “inventamos algo que nos tira o poder. E está acontecendo tão rápido que a maioria das pessoas sequer entende o que está acontecendo. Precisamos garantir que a inteligência artificial tome boas decisões sobre nossas vidas. Isto é algo que estamos muito longe de resolver”.

Por isso, para Harari, as regulações sobre a inteligência artificial são imprescindíveis. “Uma empresa farmacêutica não pode lançar um novo medicamento no mercado sem antes passar por um longo processo regulatório. É realmente estranho e assustador que as corporações possam simplesmente lançar na esfera pública ferramentas de inteligência artificial extremamente poderosas, sem qualquer medida de segurança semelhante”, afirma.

Fonte: https://www.ihu.unisinos.br/628113-harari-alerta-sobre-a-inteligencia-artificial-nao-sei-se-os-humanos-podem-sobreviver

segunda-feira, 24 de abril de 2023

Polarização, silêncio e escuta: a era da reatividade

 Adriana Ferreira Silva*

 Imagem de Livro Escute teu Silêncio Petria Chaves

Livro da jornalista Petria Chaves retrata as consequências de não saber silenciar. O resultado é assustador

Sento em frente ao notebook para escrever este texto e um barulho ensurdecedor embaralha ideias que, até então, pareciam tão claras. O ruído que me incomoda não vem de fora. Faz silêncio em casa. A manhã está fresca, o céu, azul, e as crianças brincando no playground abaixo da minha janela estão concentradas. A zoada que me leva a voltar mil vezes ao primeiro parágrafo está dentro de mim. Ela grita que tenho de finalizar esta coluna na próxima hora; secar os cabelos; pensar no almoço; me preparar para uma reunião; fazer compras; mandar e-mails; responder mensagens de WhatsApp; terminar de ler um livro; começar outro; fazer um post no Instagram; outro no LinkedIn; me atualizar das notícias; convidar as amigas para um vinho. Grita para eu fazer tudo isso agora e o efeito é paralisante.

Retomo o fio da meada e me lembro que “silenciar é sabedoria”, tema que não me sai da cabeça desde que li “Escute teu silêncio - Como a arte da escuta nos torna melhores profissionais, pais mais presentes e pessoas mais interessantes” (ed. Planeta), recém-lançado livro da jornalista Petria Chaves. Em entrevistas com psicoterapeutas, filósofas/os, psicanalistas, psicólogas/os, neurocientistas, lideranças religiosas, entre outras e outros profissionais, Petria trata das múltiplas consequências que a falta da escuta e do silêncio imprimem em nossa sociedade, e o resultado é assustador. “O espírito da nossa época é de uma desenfreada ansiedade, o que gera um constante mal-estar”, escreve a jornalista.

Mal-estar esse que se traduz numa reatividade do próprio corpo, como descreve Petria. É por isso que aquela mensagem incômoda de um chefe, colega de trabalho, ex- ou coisa que o valha pode provocar sensações e sentimentos como irritação, medo, inconformismo, dor de estômago, ódio profundo. A resposta, em geral, é imediata e na mesma toada, alimentando um ciclo de atitudes impensadas que nunca acaba bem, pois “não conseguimos esperar pelo silêncio, queremos agir e responder prontamente”, afirma a jornalista. (Acrescentaria que não só não somos capazes de silenciar e postergar, como existe uma convenção informal de que os retornos devem ser instantâneos, sob o risco de parecermos desatentas, relapsas, descomprometidas…)

Nos transformamos numa multidão de falantes em que os ouvintes estão ali apenas para confirmar nossas premissas. Argumentar dá trabalho, pede prudência, e perdemos a habilidade e o tempo para isso

Essa mesma reatividade está na base do que chamamos de “cultura do cancelamento”, na qual redes sociais são usadas “como palco e combustível” para linchamentos virtuais, numa velocidade que, segundo Petria, é “exponencial a nossa inabilidade crescente de dialogar”. Isso porque, como diz o filósofo Luiz Felipe Pondé no livro, a escuta do outro é um fetiche: “ninguém quer de fato escutar ninguém”, e isso se escancara nessas plataformas. São ferramentas que ocupamos para consumir doses de dopamina em forma de likes, pouco importando o que as pessoas estão de fato escrevendo, lendo e pensando, num formato desenvolvido e aprimorado para alimentar egos, premiar reações extremas e acabar com todas as formas possíveis de argumentação. Não há reflexão, autocontrole ou sabedoria. Ninguém se lê. Ninguém se respeita. Tudo é gritaria e ameaças.

Pouca coisa muda quando estamos frente a frente. Sento à mesa de um restaurante e o casal ao lado está mudo, cada um muito focado em seu smartphone. O mesmo ocorre quando encontro amigas e os aparelhos de telefone são o primeiro item a sair da bolsa para checagens constantes de novas mensagens, novos posts, novas notícias. Tudo é urgente. Por outro lado, ouço confidências pensando na resposta pronta que darei no instante seguinte, num monólogo ao qual minha interlocutora estará pouco atenta, pois fala mais sobre mim do que dela.

Nos transformamos numa multidão de falantes em que os ouvintes estão ali apenas para confirmar nossas premissas. Argumentar dá trabalho, pede prudência, e perdemos a habilidade e o tempo para isso. Por esse motivo, nos encerramos em bolhas, cuja repercussão mais nefasta é a polarização que coloca de um lado os que concordam com a gente e, do outro, os feios, sujos e malvados que discordam. Tudo isso considerando que “todes” têm permissão à escuta e ao silêncio, o que não é verdade. Mulheres não têm. Mulheres negras, menos ainda. Recortes interseccionais de gênero, raça, classe social, nacionalidade determinam quem têm ou não a prerrogativa de falar e ser ouvido.

Nesse ambiente, adoecemos. Silenciamos nossas crianças com telas. Nos tornamos parceiras e parceiros incapazes de dedicar um tempo a compreender as dores do outro. Somos filhas sem paciência frente à perplexidade das mães. Bebemos muito, comemos em excesso e nos entorpecemos com drogas e apps, pois silenciar e escutar-se é também ter de lidar com as angústias que nos atormentam. Nos tornamos, em resumo, insuportáveis.

Então, sim, a falta de silêncio e de escuta é um dos grandes dramas da humanidade e confrontar a indisposição a ouvir e a dialogar exige atenção, esforço e treino. No livro, Petria elenca aprendizados que recolheu em diferentes áreas do conhecimento. Dedicar um tempo para silenciar e ouvir-se por meio da meditação é a principal recomendação, mencionada por praticamente todas e todos os profissionais entrevistados para o livro. Não há regra para essa pausa no fluxo de pensamentos, que cada uma/um pratica de acordo com o que lhe cai bem - Frei Beto, por exemplo, a realiza por meio de orações. O famoso mindfulness, ou seja, a concentração total no que se está fazendo, seja lá o que for, é outra sugestão em comum. É com essa fórmula que tento manejar a ansiedade de ser tentada a me conectar a muitas coisas, ao mesmo tempo.

Refletir antes de reagir. Fugir de respostas imediatas. Ouvir o outro com verdadeiro interesse e atenção. Conscientizar-se de que a vida criada por e para as redes sociais é uma ilusão. Acima de tudo, como diz Petria, experimentar mais do que seguir regras. Sigo uma aprendiz que levou muito mais horas do que deveria para finalizar este texto, pois não resisti a checar mensagens, atualizar o feed e visualizar notícias. Mas, agora, vou sair para tomar um café sem o smartphone, acompanhada de livro, papel e caneta. Garanto que, na volta, o mundo estará tal e qual o deixei.

Adriana Ferreira Silva é jornalista especialista em estratégias e conteúdos digitais; editora voltada a pautas interseccionais com recorte de gênero, representatividade e inclusão; curadora de eventos de liderança feminina, literatura e jornalismo; mediadora e palestrante. Em 25 anos de carreira, atuou como correspondente internacional em Paris e trabalhou nas redações das revistas Marie Claire, Vogue Brasil e Veja São Paulo, no jornal Folha de S.Paulo e como colunista da rádio CBN. Escreve para a revista de literatura Quatro Cinco Um e é cofundadora da Grená - Agência de Criação.

Fonte:  https://www.nexojornal.com.br/colunistas/autor/Adriana-Ferreira-Silva

domingo, 23 de abril de 2023

Marcos Nadal, psicólogo: “El placer está condicionado por tu experiencia, las expectativas y el contexto”

 Jessica Mouzo*

El psicólogo Marcos Nadal, ante una escultura de un cerebro en el Museo de la Ciencia Cosmocaixa de Barcelona. 
El psicólogo Marcos Nadal, ante una escultura de un cerebro en el Museo de la Ciencia Cosmocaixa de Barcelona.Carles Ribas

El investigador, especializado en neuroestética, estudia los mecanismos neurobiológicos que se ponen en marcha cuando se percibe algo como bello

 
Cuando uno se topa con algo que considera realmente bello, sea una canción, una persona o una obra de arte, es porque un puñado de sistemas neuronales se sintonizan y trabajan conjuntamente para arrojar esa sensación placentera. La ciencia que lo estudia, llamada neuroestética, es una disciplina joven, admite Marcos Nadal (47 años, Palma de Mallorca), psicólogo e investigador del Grupo de Evolución y Cognición Humana de la Universitat de les Illes Balears, pero ya se ha percatado de que no es uno, sino varios los centros cerebrales implicados. Como una orquesta, todos a la vez.

Nadal ha visitado Barcelona para participar en el ciclo de conferencias La lógica de la belleza, organizado por el Museo de la Ciencia CosmoCaixa. “La belleza no es una cualidad que reside en los objetos, sino una cualidad de nuestra experiencia de ellos”, explicó a un auditorio entregado. Creer que el color, el sonido o la belleza son atributos de los objetos es, según él, “realismo ingenuo”. “No somos captadores de la realidad, sino intérpretes”, justificó. Y alertó de que la belleza no es trivial, sino que influye en la conducta, las emociones y las decisiones. Y puso un ejemplo: hay estudios que han mostrado que, ante alumnos atractivos, los profesores tienen cierto sesgo y valoran más sus posiblidades académicas, puntúan mejor sus trabajos y los perciben más competentes. También son más populares socialmente

Pregunta.¿Qué significa la belleza

Respuesta. Es un concepto filosófico que viene de la Grecia clásica. Pero no todos los conceptos filosóficos encajan bien en los esquemas conceptuales de la psicología y la neurociencia. Y la belleza es uno de ellos. ¿Por qué? Porque no encontramos procesos mentales ni mecanismos neuronales que sean específicos a la experiencia de la belleza. La primera lección que sacan los psicólogos y los neurocientíficos es que esta experiencia que denominamos belleza equivale, en prácticamente todo, a otras experiencias que decimos que son placenteras.

P. O sea, que la belleza es placer.

R. Como mínimo. Pero no solo. Una experiencia de belleza casi siempre va a ser placentera. La belleza es algo que emerge de complejos sistemas neuronales que se dedican a generar esas experiencias placenteras en otros ámbitos de la vida, como el placer del sexo, la compañía o las drogas.

P. ¿Cómo funciona este sistema? Porque lo que para uno puede ser bello o placentero, para otros no. A uno le gustan las patatas fritas y a otro, un brócoli.

R. Este es un sistema que funciona anticipando objetos, situaciones, entornos que van a resultar placenteros y midiendo la diferencia entre el placer real y el placer anticipado, generando la experiencia subjetiva de que algo te gusta. Es un procesamiento muy contextual: a ti te gustan las patatas fritas, pero si te has comido dos cubos del McDonalds, comerte uno más te va a dar asco, por la saciedad. La saciedad es un factor que incide en el funcionamiento de este sistema neuronal, diciendo que esto ya no resulta placentero. Es un sistema que funciona analizando qué puede ser bueno para tu organismo en este momento. ¿Qué hace que una cosa sea bella para una persona y otra no? Pues esa experiencia que tú has tenido a lo largo de toda tu vida, que ha condicionado las cosas que te han ido alimentando este sistema de placer.

P. Entonces, ¿la belleza depende de nuestra experiencia personal?

R. Muchísimo, como cualquier placer. Depende de tu experiencia personal, del contexto en el que estás, de aquello que anticipas. La misma película vista en el cine, en tu casa, con gente haciendo mucho ruido o tú solo en el cine, cambia esa experiencia de placer.

La experiencia de la belleza nunca es aislada, siempre está inmersa en la vida de una persona, en su contexto”

P. Decía que la belleza es placer, pero no solo. ¿Qué más es?

R. Esa es la parte que tenemos menos clara. En el caso de la belleza parece existir un esquema de a qué nos referimos cuando decimos que algo es bello. Hemos aprendido que en nuestra cultura existen ciertos patrones de aquello que representa a la belleza. Entonces, parece que, además de ese placer, existe, por interiorización del aprendizaje en cada cultura, ese canon que tú comparas con el objeto que te genera placer y, en el momento en que encajan, dices que eso es bello.

P. ¿Por eso coincidimos en que Jon Kortajarena es muy guapo y Felipe el Hermoso era muy feo, por ejemplo?

R. Efectivamente, porque en nuestra cultura preferimos ese tipo de canon. Pero ese patrón cambia históricamente. Un ejercicio que yo hago con mis alumnos es repasar las portadas del hombre vivo más sexy del mundo de la revista People y, desde los años ochenta hasta hoy en día, ha cambiado muchísimo lo que se consideraba ese canon de belleza. Pero ha cambiado dentro de ciertos márgenes: ninguna es una persona con una asimetría facial muy exagerada, por ejemplo.

P. ¿Qué sucede dentro del cerebro cuando percibimos algo bello?

R. Hay muchísimos estudios en música que analizan qué sucede en el cerebro cuando una persona experimenta un fragmento musical como bello. Y lo que pasa es que se sincroniza la actividad de las neuronas del sistema auditivo, que está procesando los aspectos musicales de ese fragmento, con una serie de centros del cerebro que procesan distintos aspectos del placer. Por ejemplo, hay un centro que se llama núcleo accumbens, que se encarga de generar sensaciones placenteras, pero también de anticiparlas. Y esa anticipación —y luego, la resolución de aquello que anticipamos— genera una serie de respuestas de placer. Al mismo tiempo, la amígdala está generando estados de activación del cuerpo, tus sistemas fisiológicos se van activando con ese placer. El córtex orbitofrontal procesa lo que se llama el valor de refuerzo, que es cuánto te gusta aquello. Y la corteza ventromedial es la que se encarga de transmitir a los centros donde se toman decisiones en el cerebro, las sensaciones corporales de ese placer.

P. ¿Y eso se puede transformar? Es decir, pasa con una canción, que al principio te gusta, pero la escuchas tanto, que te acaba aburriendo.

R. Hay un punto intermedio de familiaridad donde ese placer es máximo. Es decir, al principio no te suena, no acabas de entender la música, es muy nueva… pero, la escuchas un par de veces, la haces tuya y ese placer es máximo. Aunque luego, entra la saciedad. Hay un punto intermedio donde se encuentra la incertidumbre con la predictibilidad: hay suficiente incertidumbre como para que esto te resulte interesante, pero al mismo tiempo es predecible. Cuando has escuchado la canción muchas veces, el grado de incertidumbre es cero y el de predictibilidad, absoluto. Tus gustos musicales y tu experiencia anterior en concreto con esa canción determinan muchísimo ese grado de placer. Toda tu experiencia del placer está condicionada por tres factores: tu experiencia anterior, las expectativas que tienes y el contexto en el que estamos. Y la belleza no es especial en ese sentido.

El psicólogo Marcos Nadal, ante una de las exposiciones del Museo de la Ciencia CosmoCaixa de Barcelona
El psicólogo Marcos Nadal, ante una de las exposiciones del Museo de la Ciencia CosmoCaixa de BarcelonaCarles Ribas

P. ¿El contexto puede modular toda tu percepción de la belleza? Los pantalones de campana se llevaron en los 2000, luego dejaron de gustar y ahora vuelven. ¿Hasta qué punto es genuino que te guste vestir así o está condicionado por los demás?

R. Es que lo genuino está condicionado por los demás. Tú ves a una persona que te resulta súperatractiva y luego, la conoces, y te parece desagradable. Ese conocimiento que tú haces de esa persona, cambia la manera en la que la ves, hasta puedes llegar a verla fea. Y pasa también al revés. La belleza no es una respuesta a unas cualidades de un objeto. La belleza es una experiencia que construimos teniendo en cuenta las cualidades de un objeto, pero muchísimas más cosas.

P. No es superficial.

R. No es solo perteneciente al objeto. Es una experiencia que se construye con el objeto, pero con todo lo que tú aportas también a ese objeto. Si tu experiencia anterior con ese objeto, con esa persona, ha sido negativa, colorea tu percepción de la belleza de ese objeto. La experiencia de la belleza nunca es aislada, siempre está inmersa en la vida de una persona, en su contexto.

P. ¿Hay un cambio generacional en la percepción de la belleza?

R. La manera de percibir la belleza es la misma, pero cambiamos aquello a lo que vamos a dar el valor positivo de decir: esto es bello para mí. ¿Por qué? Porque cogemos modelos. Cada uno hemos interiorizado un referente de qué significa bello. Y ese modelo va cambiando.

P. En la sociedad actual, con las redes sociales, el abuso de filtros y técnicas en busca de la perfección y la belleza suprema, ¿todo ello puede tener un impacto?

R. Tiene un impacto muy grande. Nuestro sistema de apreciación de la belleza se alimenta de ejemplares que vamos viendo a lo largo de nuestra vida y que compartimos con otras personas y generamos ese referente. Hace 50 años, la gente se movía en su pueblo, en su círculo, en su barrio, y los ejemplares de belleza que iba teniendo eran bastante más reducidos. Ahora nos llegan ejemplos de todo el mundo y el abanico de ejemplares más bellos se abre. Y se amplía más todavía con la capacidad de aplicar filtros a esas imágenes y, por lo tanto, de exagerar aquellos rasgos que consideramos como bellos y realzar aquello que nuestro cerebro identifica como bello. Entonces, esos referentes que tenemos se mueven hacia el lado de belleza exagerada, se exagera ese referente de belleza. ¿Y qué ocurre? Pues que existe una tensión entre tu mundo real, el de la gente con la que te mueves cotidianamente, y los referentes que te llega por las redes sociales, que es una cosa exagerada. Existe esa creciente tensión o diferencia entre lo que tú puedes llegar a ser, la belleza que tú ves en el espejo, y la belleza que tú ves en esas imágenes de las redes sociales.

Es imposible que exista experiencia de belleza si no existe actividad de generación de placer en el cerebro”

P. ¿En qué se puede concretar esa tensión?

R. Puede tener dos impactos: uno propio, de que tú no ves que correspondas con ese modelo y eso pueda afectar a la autoestima, a la consideración que tú tienes de tu propia imagen; y, luego, tiene un efecto en las personas que te ven: tú, para ellas, nunca serás tan guapa como aquel otro modelo. Eso puede generar una insatisfacción con la imagen de uno mismo y, a lo mejor, también con la imagen que tú esperas que tenga tu novia o que tenga tu novio, porque no acaba de satisfacer ese modelo ultrafiltrado y ultraexagerado, que no deja de ser una falsificación de la realidad.

P. ¿Puede que estos cambios generacionales provoquen cambios neurológicos en el procesamiento de la belleza?

R. Nos centramos aquí un poco en el terreno de la ciencia ficción, casi en el Black Mirror, pero es una pregunta interesantísima. La parte de evolución biológica del ser humano es muy lenta y el ritmo de cambio de la cultura es abrumador. Es muy complicado pensar en cómo acabará o hacia dónde nos lleva a este desfase. Yo apostaría a que es imposible que exista experiencia de belleza si no existe actividad de generación de placer en el cerebro. Si un momento de cambio acelerado, de impacto de las nuevas tecnologías, lleva a que la experiencia de belleza no implique estos centros neuronales muy profundos y antiguos del cerebro, yo diría que esa experiencia no sería de belleza, sería otra cosa.

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Sobre la firma

Jessica Mouzo

*Jessica Mouzo es redactora de sanidad en EL PAÍS. Es licenciada en Periodismo por la Universidade de Santiago de Compostela y Máster de Periodismo BCN-NY de la Universitat de Barcelona.

 Barcelona -

O que leva atiradores em massa a matar? É por mais do que ter mágoa

Por Arie Kruglanski*

 

 Protesto contra violência nas escolas dos EUA (Foto: Fibonacci Blue/CC)

O crescente número de tiroteios em massa sugere uma tendência geral que transcende os detalhes pessoais. Para professor de psicologia, o motivo geral que impulsiona os ataques é a busca por significado e pelo sentimento de que sua vida é importante

Um aspecto extremamente preocupante da vida nos Estados Unidos hoje em dia é a crescente proliferação de tiroteios em massa que ceifam milhares de vidas inocentes ano após doloroso ano e fazem com que todos se sintam inseguros.

O ano de 2023 ainda é jovem e já houve pelo menos 146 tiroteios em massa nos EUA, incluindo a morte de cinco pessoas em um banco de Louisville, Kentucky, em que o atirador transmitiu o ataque ao vivo. Houve 647 tiroteios em massa em 2022 e 693 em 2021, resultando em 859 e 920 mortes, respectivamente, sem trégua à vista dessa terrível epidemia. Desde 2015, mais de 19 mil pessoas foram baleadas e feridas ou mortas em tiroteios em massa.

Após a maioria dos tiroteios, a mídia e o público perguntam reflexivamente: Qual foi a motivação do assassino?

Como psicólogo que estuda violência e extremismo, entendo que a pergunta vem imediatamente à mente por causa da natureza bizarra dos ataques, o choque “inesperado” que eles produzem e a necessidade das pessoas de compreender e chegar a um desfecho sobre o que inicialmente parece ser completamente sem sentido e irracional.

Mas o que constituiria uma resposta satisfatória à pergunta do público?

As reportagens da mídia geralmente descrevem os motivos dos atiradores com base em detalhes individuais específicos do caso, em seus “manifestos” ou postagens nas redes sociais. Estes geralmente listam insultos, humilhações ou rejeições –por colegas de trabalho, potenciais parceiros românticos ou colegas de escola– que um perpetrador pode ter sofrido. Ou podem citar supostas ameaças ao grupo do atirador de algum inimigo imaginário, como judeus, negros, muçulmanos, asiáticos ou membros da comunidade LGBTQ+.

Embora talvez informativos sobre o modo de pensar de um determinado perpetrador, acredito que esses motivos são muito específicos. A história de vida de cada atirador é única, mas o crescente número de tiroteios em massa sugere uma tendência geral que transcende os detalhes pessoais.

Busca por significado

Talvez surpreendentemente, o motivo geral que impulsiona os tiroteios em massa é uma necessidade humana fundamental. É a busca de todos por significado e um sentimento de que sua vida é importante.

Essa necessidade é ativada quando alguém sente a perda de significado, a sensação de ser menosprezado, humilhado ou excluído, mas também quando há uma oportunidade de ganho de significado, sendo objeto de admiração, herói ou mártir aos olhos de outras pessoas.

Participei de um estudo recente realizado após o tiroteio em massa em Orlando em 2016. Nesse estudo, liderado pelo psicólogo social Pontus Leander, da Wayne State University, submetemos os americanos proprietários de armas a sentirem uma perda de significado, dando-lhes uma nota de reprovação –ou não– em uma tarefa de realização. Em seguida, pedimos a essa amostra aleatória de proprietários de armas que respondessem a uma série de perguntas, incluindo se eles estariam prontos para matar um intruso em suas casas, mesmo que estivessem prestes a deixar o local que invadiram, e também o quão empoderados esses proprietários de armas se sentiam por possuir uma pistola.

‘A experiência do fracasso aumentou a visão dos participantes sobre as armas como um meio de empoderamento’

Descobrimos que a experiência do fracasso aumentou a visão dos participantes sobre as armas como um meio de empoderamento e aumentou sua prontidão para atirar e matar um invasor de lar.

E uma revisão dos incidentes de tiroteio em massa entre os anos de 2010 e 2019 constatou que 78% dos atiradores em massa naquele período foram motivados pela busca de fama ou busca de atenção –ou seja, pela busca de significado.

Se a necessidade de significado é tão fundamental e universal, como é que o tiroteio em massa é um fenômeno isolado perpetrado por um punhado de indivíduos desesperados –e não por todos?

Dois fatores podem levar esse esforço humano comum ao caos e à destruição.

Primeiro, é preciso um desejo extremo de importância para pagar um preço tão alto pela notoriedade em potencial. Atirar é um ato extremo que exige auto-sacrifício, não apenas desistindo da aceitação na sociedade dominante, mas também produzindo uma alta probabilidade de morrer em tiroteios com policiais.

A pesquisa mostra que cerca de 25% a 31% dos atiradores em massa exibem sinais de doença mental, o que provavelmente os induz a um profundo sentimento de impotência e insignificância. Mas mesmo os 70%-75% restantes sem patologias conhecidas provavelmente sofreram problemas de extrema importância, como atestado por suas amplas declarações sobre humilhação, rejeição e exclusão que eles acreditam que eles ou seu grupo sofreram nas mãos de alguns culpados reais ou imaginários. Esses sentimentos podem criar um foco de significado único que pode, em última análise, precipitar um tiroteio em massa.

No entanto, mesmo alguém que realmente deseja se sentir importante não necessariamente realizará um tiroteio em massa.

Atalho para a fama

Na verdade, a maioria das pessoas altamente motivadas satisfazem seus egos bastante diferentemente; elas concentram seu extremismo em várias áreas socialmente aprovadas: negócios, esportes, artes, ciências ou política. Por que alguns então escolheriam o caminho repugnante da infâmia pavimentado pelo massacre de inocentes?

‘A atenção e o choque do público que um tiroteio atrai oferecem “significado” instantâneo’

Existe um método para essa loucura: a atenção e o choque do público que um tiroteio atrai oferecem “significado” instantâneo. Subir a ladeira íngreme de uma carreira respeitável, no entanto, é repleta de obstáculos e incertezas. O sucesso é ilusório, leva séculos para ser alcançado e é concedido de forma desigual àqueles com habilidades, coragem ou privilégios incomuns, ou alguma combinação desses.

Cometer um tiroteio em massa representa um atalho amplamente disponível para o “estrelato”.

Existem mais de 390 milhões de armas nos EUA de hoje e não é feita verificação de antecedentes em muitos estados. As pessoas têm a liberdade de comprar armas de assalto em uma loja local. Assim, planejar e executar um tiroteio em massa é um caminho para a notoriedade aberto a qualquer um, e a narrativa que liga a violência armada ao significado –ou seja, à ideia de que, ao se tornar um atirador em massa você, se torna famoso– foi se espalhando cada vez mais a cada sucessivo tiroteio.

Assassinatos celebrados

Um quebra-cabeça final é este: se significância e respeito são o que os atiradores procuram, como é que eles fazem coisas que a maioria das pessoas despreza?

‘Na esfera pública fragmentada de hoje, é fácil encontrar redes de apoiadores e admiradores para quase tudo sob o sol, incluindo os atos mais repugnantes e inescrupulosos de crueldade e insensibilidade’

Na esfera pública fragmentada de hoje, dominada pelas mídias sociais, é fácil encontrar redes de apoiadores e admiradores para quase tudo sob o sol, incluindo os atos mais repugnantes e inescrupulosos de crueldade e insensibilidade. Na verdade, há ampla evidência de que atiradores em massa são celebrados por audiências favoráveis e podem servir como modelos para outros aspirantes a heróis que buscam superá-los em contagem de baixas.

O que meus colegas e eu apresentamos como três razões: necessidade, narrativa e rede, refere-se à necessidade do aspirante a atirador de se tornar significativo ou notório, a narrativa que diz que ser um atirador significa ser importante e a rede que existe para apoiar tal comportamento. Elas se combinam em uma mistura tóxica, levando uma pessoa a realizar um tiroteio em massa.

Mas essa estrutura também sugere como a onda dessa terrível epidemia pode ser contida: negando a narrativa que retrata a violência como um caminho fácil para a busca por significado e desmantelando as redes que sustentam essa narrativa.

Os dois andam juntos. Refutar a narrativa de que a violência armada é um caminho fácil para a fama ao dificultar a obtenção de armas, por exemplo, e reduzir a atenção da mídia aos atiradores reduziria o apelo da violência armada para pessoas que buscam se sentir mais importantes.

É igualmente importante identificar e disponibilizar caminhos alternativos de significação, veiculados em narrativas alternativas. Isso provavelmente exigiria um esforço conjunto da sociedade e de suas instituições. Compreender a psicologia de tudo isso pode ser uma pré-condição necessária para tomar medidas efetivas nessa direção.


*Arie Kruglanski é professor de psicologia na University of Maryland


Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original, em inglês.

Fonte:  https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/o-que-leva-atiradores-em-massa-a-matar-e-por-mais-do-que-ter-magoa/