domingo, 23 de abril de 2023

‘É preciso deixar a floresta em pé e viva. É por isso que os Yanomami começaram a desenhar’

Rodrigo Simon e João Biehl*

Principal porta-voz dos Yanomami no Brasil, o xamã Davi Kopenawa fala, em evento organizado na Universidade de Princeton, sobre os desafios que seu povo enfrenta na atualidade
Foto: David Dooley/Fotobuddy - 31.JAN.2023
Participantes sentado sà mesa em evento da Universidade de Princeton. À esquerda da mesa há um banner com o logo do Brazil LAB-Princeton. Da esquerda para direita: Deborah Yashar, João Biehl, Davi Kopenawa e Ana Laura Malmaceda
Mesa no evento “The Falling Sky and The Yanomami Struggle”, na Universidade de Princeton (EUA). Da esquerda para direita: Deborah Yashar, João Biehl, Davi Kopenawa e Ana Laura Malmaceda

Principal porta-voz do povo Yanomami no Brasil, o xamã Davi Kopenawa esteve na Universidade de Princeton (EUA) no dia 31 de janeiro de 2023 para participar do evento “The Falling Sky and the Yanomami Struggle”, moderado por João Biehl (chefe do Departamento de Antropologia e Diretor do Brazil LAB, um dos parceiros do Nexo Políticas Públicas).

Na ocasião, o autor do aclamado “A queda do céu” falou sobre como a ação de garimpos ilegais na Amazônia levou à crise sanitária, destruição ecológica, e ameaça de extermínio de seu povo. Kopenawa também respondeu a perguntas colocadas por Deborah Yashar (diretora do PIIRS, Instituto para Assuntos Internacionais e Regionais), Gabriel Vecchi (diretor do Instituto Ambiental High Meadows), e Pedro Meira Monteiro (chefe do Departamento de Espanhol e Português). Entre os temas abordados, Kopenawa falou sobre a mobilização indígena e sua expectativa com relação ao governo Lula, o papel das artes na conservação da Floresta Amazônica, a situação dos Yanomami na Venezuela, e a importância dos sonhos na vida e luta de seu povo.

Deborah Yashar Gostaria que você nos contasse sobre o processo que levou à demarcação da Terra Indígena Yanomami, assim como a importância do reconhecimento do território.

Davi Kopenawa Fomos nós, guerreiros indígenas, que começamos essa luta. Não apenas eu, mas várias lideranças: Macuxi, Wapixana, Kayapó, Xavante, Terena. Também lideranças que hoje são conhecidas, como Raoni e Ailton Krenak, ao lado de não indígenas, como a Funai e alguns antropólogos, e também a Claudia Andujar, Carlo Zacquini, Bruce Albert e Alcida Ramos, além das igrejas também. Todos lutaram. Mas foi uma luta muito difícil, que durou quatro anos, com um governo que não escutava, não queria ouvir a minha fala, a fala do meu povo Yanomami. Mas nós conseguimos. O que abriu caminho foi quando eu saí do meu país e vim para cá, para os Estados Unidos, para receber o Prêmio Global da ONU. Foi muito bom porque eu cheguei à grande casa que se chama ONU, então milhares de pessoas se reuniram para ouvir minha fala pedindo para que o governo Collor de Mello tirasse os garimpeiros de nossa terra. Quarenta mil garimpeiros foram retirados de lá, as pistas clandestinas foram destruídas, e depois homologaram nossa Terra Indígena Yanomami. Os políticos brasileiros não queriam demarcar. Diziam que a área era muito grande, que éramos poucos indígenas. Diziam que éramos preguiçosos e não produzíamos na terra. Diziam tudo isso contra nós. Mas nós conseguimos, junto com o Conselho Indígena de Roraima, que também lutou e me ensinou a lutar, e muitas lideranças indígenas que já morreram, mas também lutaram. Foi muito importante.

Deborah Yashar Qual sua expectativa e do povo Yanomami com relação ao novo governo Lula?

Davi Kopenawa O povo Yanomami e lideranças indígenas em todo o Brasil estamos todos esperando, porque nós ouvimos a promessa do presidente Lula. Está tudo gravado na memória, não precisa ser anotado no papel. Ele prometeu que vai tirar os garimpeiros que estão mais uma vez na Terra Yanomami. Essa foi a promessa dele, então é o que todo povo indígena do Brasil está esperando. Que ele cumpra o que prometeu, a palavra dele. Nós estamos com ele, lutando, para que ele possa realmente tirar todos os garimpeiros que estão lá na nossa Terra Yanomami e, com isso, recuperar a saúde dos Yanomami, que foi muito afetada no governo Bolsonaro. Eu pedi ao presidente Lula que ele tome providências urgentes. Não é amanhã ou depois de amanhã, é urgente. Foi esse meu pedido e é isso que estamos esperando.

João Biehl Qual é o papel das artes visuais na luta Yanomami?

Davi Kopenawa Os artistas estão lutando junto com a gente. Estão desenhando imagens da floresta, do meio ambiente. E por isso é muito importante que os artistas estejam aqui hoje, como o Joseca Mokahesi, que também é agente de saúde e cuida da nossa comunidade, e a Ehuana Yaira, que é minha prima e artista. Isso é muito importante, que vocês vejam essa arte e achem bonito. Porque antes que nossa Floresta Amazônica acabe, nós a estamos desenhando. Nós a estamos desenhando para mostrar a cada comunidade, cada cidade, o desenho diferente, tradicional, do nosso povo. Ele mostra as árvores mexendo, as montanhas balançando, então é muito importante, para que o homem que mora na cidade possa respeitar. Respeitar e proteger o pulmão da terra. Isso é muito importante. Não podemos deixar que as florestas sejam destruídas. É preciso deixar a floresta em pé e viva. É por isso que os Yanomami começaram a desenhar. Para que seus filhos, seus netos, seus parentes achem bonito e passem a valorizar nossa arte e nossa luta, que é para proteger nosso pulmão da terra. E é importante que os próprios Yanomami façam isso, para que vocês possam entender o que nós fazemos, o trabalho de defender nossos direitos, não deixar que acabem com nossa floresta, e não deixar que os povos originários morram.

Gabriel Vecchi A terra Yanomami se estende através de uma fronteira internacional com a Venezuela. Qual a situação do povo Yanomami do lado venezuelano e como devemos pensar essa questão?

Davi Kopenawa Para nós, povo Yanomami, não existe fronteira. Quem fez essas fronteiras foram os governos. Sobre o presidente venezuelano, eu não o conheço, nunca estive com ele. É difícil dizer. Mas eu já fiz uma visita à comunidade dos parentes que moram na Venezuela, lá no rio Orinoco. E vi muitos problemas sérios ali. Lá, os políticos estão se aproveitando e enganando meu povo. Oferecendo dinheiro, comida e outras coisas que não servem para nada. Lá faltam lideranças Yanomami. As lideranças que estão lá são envolvidas com os políticos. Isso deixa a situação muito difícil para as comunidades Yanomami na Venezuela, que precisam se defender, defender a saúde, a língua, nossa cultura. Eu já andei por lá, visitando, e vi que é muito ruim a situação. O governo venezuelano nunca falou com meu povo Yanomami de lá. Então, falta uma liderança como eu, que aprendi a lutar para defender meu povo. Porque é meu povo, nossa terra. Eu entrei na briga política, que é muito perigosa, e continuo lutando. É muito difícil, mas vamos continuar, até conseguir.

João Biehl Como os jovens podem se engajar na luta do povo Yanomami?

Davi Kopenawa Os jovens das universidades são poderosos e muito importantes. Então eu vou pedir a ajuda de vocês. Pedir para que façam uma carta para o presidente norte-americano. Isso é o que eu preciso. Para que ele também nos escute e sinta vontade de dar valor ao meu povo Yanomami. Vontade de proteger, preservar nossa comunidade e manter nossos rios limpos. É disso que precisamos. Então, eu queria que vocês estudantes fizessem uma carta para enviar ao presidente dos Estados Unidos (aplausos da plateia).

Pedro Meira Monteiro Qual é a relação dos xapiri com os sonhos e que papel tem o sonhar na luta para salvaguardar a Amazônia?

Davi Kopenawa O papel do sonho é assim: quando foi criada nossa terra, a Terra-Planeta (Urihi), o sonho tinha uma árvore especial, que foi plantada por Omama 1. Essa árvore ficou grande e deu uma flor. E é ela que manda sonho para cada um de nós, seja quem mora na cidade, nas comunidades ou nas montanhas. O sonho foi criado como nós fomos criados. E nós dormimos para sonhar. Ninguém sonha acordado. Mas na hora que acabamos o trabalho, tomamos banho, comemos, e então nos deitamos na rede para sonhar. Dormir e sonhar. O sonho é muito importante para nós. Para sonhar com lugares bonitos, com as árvores que estão precisando de ajuda, as montanhas, que também estão precisando da ajuda dos pajés. Porque as árvores e as montanhas são como seres humanos. Existem também os sonhos ruins: sonhar com uma onça pegando seus colegas, sua família. Sonhar com a doença entrando na comunidade, morrendo muita gente.

Então tem dois tipos de sonhos, o bom e o ruim. O sonho bom é nossa vida: sonhar com a terra deixando nascer nossa comida. A gente planta para dar banana, maniva, cana, pupunha, tudo com que a gente se alimenta. A terra é muito generosa. É generosa para que todos possam comer. É assim que funciona o sonho. Sobre os xapiri, o xamã sonha com lugares muito distantes, é possível sonhar andando, voando, consegue ver onde está chovendo muito, chuvas que destroem casas e matam as pessoas. É assim que o sonho funciona. Outro sonho bonito é com a riqueza que está na terra, na floresta, a saúde também está na floresta, nossa vida boa, junto com a família, com os filhos. Assim é o sonhar, a possibilidade de ver os dois lados, o bom e o ruim, que nós, os Yanomami, recebemos de Omama.

O evento “The Falling Sky and The Yanomami Struggle” pode ser visto na íntegra no canal do Brazil LAB no YouTube.

Davi Kopenawa é xamã e um dos principais porta-vozes do povo Yanomami. Intelectual que tem estado na vanguarda das lutas pelos direitos dos povos indígenas e das iniciativas de conservação da Amazônia, ele é autor de “A queda do céu”. Em 2021, estrelou e foi um dos roteiristas do documentário “A última floresta”, vencedor do Prêmio do Público da Mostra Panorama do Festival de Cinema de Berlim.

Tradução e organização de Rodrigo Simon e João Biehl.

Rodrigo Simon é postdoctoral associate research no Brazil LAB/High Meadows Environmental Institute da Universidade de Princeton. Doutor em teoria e história literária pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), é mestre em letras pela USP (Universidade de São Paulo). Suas pesquisas se voltam aos intelectuais historicamente marginalizados e à divulgação de obras de artistas indígenas, afro-indígenas e afro-brasileiros.

João Biehl é professor titular da Cátedra Susan Dod Brown e chefe do Departamento de Antropologia na Universidade de Princeton, onde também dirige o Brazil LAB do Princeton Institute for International and Regional Affairs. Tem PhD em antropologia pela Universidade de Berkeley, e em estudos da religião pelo Graduate Theological Union de Berkeley. Estuda antropologia médica e saúde global e é autor dos livros premiados Vita: Life in Zone of Abandonment e Will to Live: AIDS Therapies and the Politics of Survives.

 

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