sexta-feira, 14 de abril de 2023

O que é a policrise, o termo que vem sendo usado para os desafios da humanidade

 Por Diego Viana — Para o Valor, de São Paulo

A floresta devastada pela queimada no Pantanal: a mudança climática e a ameaça ao ambiente estão entre os grandes desafios que formam uma potencial policrise — Foto: Márcia Foletto 

A floresta devastada pela queimada no Pantanal: a mudança climática 
e a ameaça ao ambiente estão entre os grandes desafios que formam 
uma potencial policrise — Foto: Márcia Foletto

Mundo enfrenta uma sobreposição de ameaças, e estado crítico produz a perturbadora impressão de que veio para ficar

14/04/2023 05h05 Atualizado 14/04/2023

O vocabulário do pessimismo começa a se diversificar. Expressões destinadas a expressar a sensação de que vivemos em tempos perigosos se tornam correntes, a ponto de o dicionário britânico Collins escolher como “palavra do ano” em 2022 o verbete “permacrise”, definido como “período prolongado de instabilidade e insegurança”. Segundo o diretor da publicação, Alex Beecroft, o termo “resume bem como o ano foi horrível para tanta gente”.

Também no ano passado, o economista iraniano-americano Nouriel Roubini, da Universidade de Nova York, conhecido como “Dr. Doom” por ter previsto crises sucessivamente antes de efetivamente ocorrer uma em 2008, lançou o livro “Megathreats” (mega-ameaças), em em que elenca dez potenciais fontes de uma catástrofe econômica global. “Emergências sobrepostas” é a expressão escolhida pelos economistas Isabella Weber (Amherst), Luiza Nassif (USP), Lucas Teixeira (Unicamp) e Jesus Lara Jauregui (Amherst). Em texto para discussão publicado em fevereiro, os pesquisadores Aristides Monteiro Neto (Ipea), Lucileia Aparecida Colombo (Ufal) e João Mendes da Rocha Neto (UnB) discutem as consequências das “múltiplas crises” para a política pública brasileira, com foco no Ministério do Desenvolvimento Regional.

Desse leque semântico, o vocábulo que mais se consolidou no debate internacional é “policrise”, popularizado pelo historiador Adam Tooze. A expressão procura dar conta do caráter ao mesmo tempo múltiplo e único dos desafios que a humanidade enfrenta. Ela aparece nove vezes no Relatório de Riscos Globais publicado pelo Fórum Econômico Mundial em janeiro e foi repetida diariamente ao longo do encontro de Davos, a ponto de ser considerada pela imprensa o “símbolo” do evento.

O documento se baseia em uma enquete sobre a percepção de riscos globais, com a participação de 1.200 especialistas ao redor do mundo. Mais do que a lista dos perigos, o que chamou atenção da diretora-executiva do fórum, Saadia Zahidi, foi a expectativa de que eles se prolonguem por vários anos. “Em dois anos, os especialistas estimam que o custo de vida vai continuar sendo o maior problema. Em dez anos, 60% dos maiores riscos terão relação direta com a crise climática e suas consequências imediatas, como a migração involuntária”, afirmou Zahidi na apresentação do relatório.

Para Zahidi, alguns fenômenos já identificados hoje, como a fragmentação tecnológica (em que diferentes potências buscam desenvolver suas capacidades sem cooperarem entre si), a ascensão de regimes nacionalistas e a manipulação belicosa de recursos alimentícios e energéticos (como no conflito russo-ucraniano) são reflexos da persistência e interação das crises. O quadro que começa a se esboçar é de um sistema global cada vez menos capaz de resistir a choques como uma nova pandemia ou colapso financeiro.

A chancela de Davos foi a senha para que “policrise” se tornasse termo corrente no mercado. No relatório “Uma nova desordem mundial?”, da consultoria Ipsos, a policrise é considerada “tanto causadora quanto resultado” da referida desordem. Em Cingapura, o banco DBS publicou o estudo “Administrar a policrise”. Ainda em 2022, o Deutsche Bank previu em um relatório para clientes que a Europa atravessaria “policrise e estagflação neste ano”. A Unicef, Fundo das Nações Unidas para a Infância, lançou um documento sobre as “Perspectivas para as Crianças na Policrise”.

Nouriel Roubini diz que atual inquietude é estrutural. Não estamos revivendo nem a década de 1970, nem a de 1930, mas entrando em algo inteiramente novo — Foto: Simon Dawson/Bloomberg

Nouriel Roubini diz que atual inquietude é estrutural. Não estamos revivendo 
nem a década de 1970, nem a de 1930, mas entrando 
em algo inteiramente novo — Foto: Simon Dawson/Bloomberg

O princípio é simples e, à primeira vista, não introduz nada de inovador: a humanidade se encontra diante de um conjunto heterogêneo de perigos que não vão desaparecer por conta própria. Entre eles estão a emergência climática, as tensões geopolíticas crescentes, o enfraquecimento das democracias e o surgimento de novas doenças. Também desponta no horizonte a perspectiva de uma recessão global, reforçada pelos sinais de turbulência emitidos pelo sistema financeiro desde a quebra do Silicon Valley Bank.

De tão disseminado, o termo “policrise” se tornou o nome de um programa de pesquisa no instituto Cascade, da Universidade Royal Road, no Canadá, fundado pelo cientista político Thomas Homer-Dixon e dedicado a estudos de sistemas complexos nas relações internacionais. “Com essas expressões, muita gente está procurando entender a mesma questão, cada um a seu modo: hoje, os problemas são de natureza mais intensa e desafiadora do que uma década atrás”, afirma o cientista político Michael Lawrence, pesquisador responsável pelo programa.

A percepção de que o problema é semelhante, embora ainda indefinido, é compartilhada por quem usa outras expressões. Para Weber, das “emergências sobrepostas”, a policrise designa o problema de fundo, e as emergências são sua sobreposição. Roubini, em artigo sobre seu livro “Mega-ameaças”, reconhece que “policrise” expressa o caráter sistêmico dos problemas que evoca.

“Cada geração diz que o mundo está ficando pior e os problemas estão crescendo. Mas nem por isso deixa de ser verdade em algum momento. Já houve situações no passado que podem ser classificadas como policrise. O que faz a diferença hoje é que a mudança climática se tornou um motor tão intenso que arrasta todo o resto consigo”, especula Lawrence. “Até mesmo desafios como as crises financeiras e epidemias, que já experimentamos, ficam piores com a mudança climática.”

A proliferação de “policrise” também suscita protestos: por que introduzir um termo no vocabulário para falar de problemas que já conhecíamos? Esta é a questão levantada por Gideon Rachman, colunista do “Financial Times”. Em palestra proferida em Davos, o historiador britânico Niall Ferguson declarou que a percepção de um conjunto de crises associadas nada mais é do que “a história acontecendo”.

Outra crítica aponta para a falta de novidade: o que ocorre agora não seria exatamente novo. Como lembra o cientista político Daniel Drezner, da Universidade Tufts, só no século XX, foram duas ocasiões em que crises paralelas convergiram para uma catástrofe. Na década de 1930, os ecos do crash de 1929 favoreceram a ascensão do nazismo. Nos anos 1970, as crises do petróleo, a estagflação e o endividamento de países periféricos produziram conflitos que, na década seguinte, redesenhariam o mapa do mundo.

 Clientes do Silicon Valley Bank fazem fila para entrar numa agência do banco. Sinais de turbulência financeira reforçam fantasma de uma possível recessão global — Foto: David Paul Morris/Bloomberg

Clientes do Silicon Valley Bank fazem fila para entrar numa agência do banco. 
Sinais de turbulência financeira reforçam fantasma de uma 
possível recessão global — Foto: David Paul Morris/Bloomberg

Há ainda a objeção ao caráter vago do conceito. O que faz desses problemas algo particular é que as ameaças se alimentam mutuamente, conforme argumenta Tooze. Nos termos do historiador, “o todo é ainda mais avassalador que a soma das partes”. Em outras palavras, cada vertente da ameaça se relaciona com as demais de modo a formar um sistema. E isso  torna difícil apontar o caminho que leva de causas a consequências: umas como outras estão por toda parte.

Tentando explicar a policrise, Tooze desenha um diagrama com 24 itens, sete deles ressaltados em quadrados vermelhos, correspondentes aos riscos “mais macroscópicos”, que podem levar a uma catástrofe nos próximos 18 meses, estima o historiador. É fácil perder a conta do número de setas que apontam conexões: elas passam de 40.

Mas essas conexões nem sempre são justificáveis, rebate o economista Noah Smith. E quando são, não necessariamente expressam uma retroalimentação. Por ora, aponta, cada um dos elementos sugeridos por Tooze está sendo combatido: o uso de energias renováveis avança, o preço do petróleo deixou de subir, a Rússia não consegue avançar na Ucrânia, forças antidemocráticas perderam eleições e assim por diante.

Lawrence reconhece que “policrise” é usado muitas vezes de maneira vaga, e que não basta aproveitar uma palavra que soa impactante para designar a soma dos desafios do mundo atual. Por isso, diz, o instituto Cascade propõe uma definição mais rigorosa. Para que se possa falar em policrise, é preciso que o risco agregado emerja de riscos sistêmicos surgindo simultaneamente em ao menos três sistemas, isto é, que não se trate só de um risco que passa de um sistema a outro.

Um risco sistêmico, como o produzido por uma seca, que leva à escassez de alimentos, alta de preços e, consequentemente, agitação social, não é por si só uma policrise. Mas passa a ser, quando interage com o risco da disputa geopolítica global, que conduz a interferências estrangeiras em eleições. Se essa interação entre duas crises levar à ascensão de um regime autoritário e mais conflito doméstico no país atingido pela seca, ela produz uma retroalimentação que amplifica a crise alimentar. Os riscos sistêmicos podem ainda se espalhar para mais sistemas: se a instabilidade doméstica em diversos países reduzir a cooperação global, os efeitos podem retroalimentar, mais uma vez, a falta de alimentos, por meio da redução do comércio, além de prejudicar a prontidão para o caso de outras emergências, como uma nova pandemia.

Assim, da combinação de crises simultâneas emerge uma crise comum, que pode ser meramente regional ou ter a amplitude de uma policrise global. Nesse caso, o termo recebe uma definição mais precisa: “qualquer combinação de três ou mais riscos sistemáticos em interação, com potencial para causar a falha em cascata e incontrolável dos sistemas naturais e sociais da Terra, que degrade irreversivelmente e catastroficamente as perspectivas da humanidade”.

Isabella Weber, da Universidade de Massachusetts em Amherst, fala sobre como estamos enfrentando “emergências sobrepostas”, a inflação sendo uma — Foto: Divulgação

Isabella Weber, da Universidade de Massachusetts em Amherst, fala sobre 
como estamos enfrentando “emergências sobrepostas”, 
a inflação sendo uma — Foto: Divulgação

O prefixo “poli” se justifica, segundo os pesquisadores, porque a análise se torna mais difícil para uma interação de três sistemas, em razão do caráter exponencial das possibilidades combinatórias. No entanto, Lawrence aponta que a diferença do conceito de policrise está em enfatizar a sincronização do comportamento dos sistemas. “Há policrise quando os riscos sistêmicos começam a se alinhar. Então os sistemas podem atingir um nível crítico simultaneamente ou em rápida sucessão. E isso pode produzir o colapso dos sistemas conectados”, explica.

Embora tenha se popularizado recentemente, o termo “policrise” já tem uma pequena trajetória na linguagem. Foi cunhado em 1993 pelo filósofo rancês Edgar Morin, um dos primeiros teóricos da complexidade, e pela jornalista Anne-Brigitte Kern, no livro “Terra-pátria” (publicado no Brasil pela editora Sulina). Morin se referia ao fato de que a humanidade depende de uma série de sistemas para existir - natural, geopolítico, econômico etc., e um problema surgido em qualquer um deles teria cada vez mais a tendência a pular para os demais.

Citando Morin, em 2016 o então presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, se referiu à conjunção entre o Brexit, o perigo de dissolução da zona do euro e a onda migratória daquele ano como policrise. Houve também um casual uso brasileiro: em julho de 2015, foi a palavra que o então governador de São Paulo Geraldo Alckmin escolheu para descrever o estado do país: “estamos passando por uma crise gravíssima, uma ‘policrise’: crise política, crise econômica, crise social, crise ética”, afirmou.

Em resumo, a policrise é caracterizada pela multiplicidade dos desafios que a compõem, a profunda conexão entre diferentes sistemas que entram em crise simultaneamente e, sobretudo, uma tendência à retroalimentação que pode conduzir à catástrofe em todos os sistemas. Outra característica perturbadora, realçada no relatório de Davos, é que, diferentemente de colapsos financeiros, surtos inflacionários, guerras e impasses políticos tradicionais, hoje temos a impressão de que o estado crítico veio para ficar.

 

Um exemplo corrente da retroalimentação das crises é o efeito da alta do petróleo decorrente da guerra. As empresas petrolíferas, que vinham sofrendo uma paulatina perda de relevância nos mercados de capitais, como prenúncio da transição energética, receberam de súbito uma injeção de receita. Suas ações voltaram a subir. Consequentemente, ao longo de 2021, recursos foram desviados de projetos de renováveis na direção dos fósseis, o que prejudica no longo prazo os esforços para mitigar a mudança climática.

A escalada dos juros nas economias centrais, projetada para controlar a alta de preços, intensificada pela guerra, pelo custo da energia e dos alimentos, ameaça tirar recursos de setores dependentes de pesquisa avançada, onde o risco é mais alto: é o caso de mercados de tecnologia e também de energias renováveis. A recente derrocada de bancos que financiam esses setores é mais uma peça no dominó. É nesse contexto de desincentivo ao avanço sustentável que vem a público o relatório do Painel Intergovernamental de Mudança do Clima (IPCC), dando conta de que as ações para controlar o efeito estufa precisam ser aceleradas antes de 2030 para evitar efeitos catastróficos.

“Antes que as crises se resolvam, aparecem crises novas e os problemas vão se agregando”, diz Aristides Monteiro Neto, do Ipea — Foto: Helio Montferre/IPEA

“Antes que as crises se resolvam, aparecem crises novas e os problemas vão se agregando”, 
diz Aristides Monteiro Neto, do Ipea — Foto: Helio Montferre/IPEA

No rol das denominações sombrias, quem menos mede as palavras é Roubini. O economista afirma que a atual inquietude é estrutural e, portanto, de longo prazo, talvez permanente: não estamos revivendo nem a década de 1970, nem a de 1930, mas entrando em algo inteiramente novo. Em seguida, vaticina que o período de relativa prosperidade iniciado ao fim da Segunda Guerra Mundial deve se encerrar em breve. “Estamos diante de uma mudança de regime histórico, rumo a uma era de instabilidade profunda, conflito e caos. O que nos espera são mega-ameaças diferentes de tudo que presenciamos no passado, e são interconectadas”, escreve.

Mega-ameaças, na definição de Roubini, são “problemas severos, capazes de causar amplos danos e sofrimentos, e que não serão resolvidos rápida ou facilmente”. Algumas se desenvolvem de imediato, outras ao longo das décadas. Para as primeiras, não é fácil construir uma resposta coletiva com a agilidade necessária. Já as últimas podem ser difíceis de identificar a tempo.

Em seu cálculo, as ameaças são dez. Pela ordem: o nível de endividamento público e privado; o esgotamento de políticas que costumavam ser usadas para superar problemas causados pela dívida; a virada demográfica, que aumenta a proporção de pessoas aposentadas e pressiona os sistemas financeiros nacionais; a tendência a enfrentar os problemas com a emissão de moeda; uma nova estagflação, que poderá levar países à competição fratricida; a desvalorização das principais moedas, que poderia incluir a perda da referência do dólar; a desglobalização; a inteligência artificial, primeira tecnologia que pode eliminar mais empregos do que gera; uma nova guerra fria; as consequências da mudança climática, incluindo o avanço de novas doenças e as quebras de safras.

“Todas essas ameaças têm vínculos entre si e se retroalimentam”, escreve Roubini. “Com isso, os riscos econômicos, financeiros, tecnológicos, comerciais, políticos, geopolíticos, de saúde e ambientais sofreram uma mutação e se tornaram algo muito maior.”

Muitos dos perigos têm origem na busca de soluções para problemas anteriores, como a desregulação financeira e a expansão monetária, diz Roubini. Por isso, as respostas tradicionais para desafios econômicos e políticos têm cada vez menos eficácia. A automação, que aumenta a produtividade e gera empregos mais qualificados, pode passar a expulsar grandes contingentes do sistema produtivo; o afrouxamento de regras de comércio pode incentivar os países a se retrair; a expansão econômica, na tentativa de distribuir a renda para quem perdeu seu trabalho, pode estressar o planeta além do que ele aguenta.

“Vai ser preciso muita sorte, um desenvolvimento econômico quase sem precedentes e uma cooperação global improvável para evitar que tudo termine mal. Já entramos muito fundo nesse caminho”, lamenta Roubini.

Se está constatada a convergência das crises, não é tão claro como ela se reflete no dia a dia econômico e político. Como as instituições multilaterais podem responder? Como os Estados devem agir? Como as empresas e os investidores podem se preparar? Essas questões se apresentaram ao longo da pandemia de covid-19, mas as respostas concretas não compareceram. A colaboração internacional foi deficiente, os países procuraram respostas individualmente, os mercados atravessaram graves turbulências e as interações políticas se radicalizaram.

Porém, um elemento de transição de época emergiu durante a pandemia: o papel dos governos cresceu significativamente, em contraste com a liberalização progressiva desde a década de 1980. Ao redor do mundo, foram implantados às pressas programas de transferência de renda e projetos de nacionalização industrial. Para Weber, que em 2021 publicou o livro “Como a China escapou da terapia de choque” (a ser lançado no Brasil neste ano pela editora Boitempo), sobre a transição chinesa do planejamento para a economia de mercado, esse foi apenas o primeiro passo da tendência à presença estatal mais constante.

“Meu interesse é a inflação em tempos de rupturas estruturais. Por exemplo, a transição da economia planejada para a de mercado, ou da Segunda Guerra para o pós-guerra. Os economistas costumam examinar a inflação como fenômeno macroeconômico, na relação entre variáveis agregadas. Minha perspectiva é um pouco diferente. Em 2020, com a covid, eu via uma série de mudanças estruturais: o fechamento de fábricas e lojas, governos decidindo quem podia ou não trabalhar, a indústria da saúde sob pressão. A inflação me preocupava muito”, relata Weber.

Nesses momentos, a inflação está vinculada à trajetória dos preços em setores sensíveis. Weber e seus coautores identificaram ao menos oito, divididos em três grupos: necessidades básicas da sobrevivência, da produção e da circulação. Nessa conta, setores como químicos, petróleo e carvão, produção de alimentos, moradia e comércio atacadista se destacam. “Na pandemia, cadeias de suprimento foram rompidas, porque havia portos bloqueados. Não há estímulo de preço que aumente a demanda para compensar a congestão física”, afirma.

Weber previu que essa inflação não poderia ser combatida com os métodos tradicionais, como o esfriamento da economia por meio do aumento da taxa de juros. E, de fato, com a eclosão da guerra na Ucrânia, em fevereiro do ano passado, uma prática proscrita nas últimas décadas foi ressuscitada na Europa: o controle de preços. “Ficou claro que a alta do gás era um braço econômico da guerra. O mecanismo de preços não garantiria o equilíbrio de oferta e demanda”, relata.

A Alemanha instituiu um sistema semelhante ao adotado durante a crise hídrica de São Paulo em 2014. Cada consumidor teve o direito a um preço mais baixo para até 80% de seu consumo no ano anterior. “É uma medida melhor do que nada, com o mérito de ser um estabilizador. Mas é uma medida fortemente regressiva, que atinge mais os pobres, que já tinham o hábito de poupar e não têm mais onde cortar”, avalia Weber.

A economista fez parte da comissão que desenvolveu o mecanismo, mas relata que a versão final é diferente de sua proposta, que envolvia um sistema dual de precificação, semelhante ao que se pratica com a água na Califórnia, onde há nove patamares de preço. Haveria um orçamento de gás comum a todos, com preço fixado, e acima desse nível o custo seria muito superior. “Nosso foco era o consumidor doméstico, protegendo a necessidade básica. O esboço foi apresentado antes mesmo de começar a guerra, porque víamos que, só em efeitos diretos, o reflexo do preço de atacado do gás no varejo corresponderia a 2,5 pontos de inflação.”

Weber também sugere que outros mecanismos de estabilização sejam desenvolvidos para o longo prazo, como os estoques reguladores. A economista alerta que não se trata de tentar contornar o mecanismo de preços, mas de usá-lo como um sinalizador que possa ser monitorado, permitindo intervenções em momentos de emergência. “Na Alemanha, se houvesse uma agência reguladora prestando atenção no preço do gás, ela teria visto já em 2021, antes da invasão, que a Rússia segurava a oferta e o custo já disparava”, observa.

Nassif acrescenta que, para países com desigualdade expressiva, como o Brasil, os mecanismos de estabilização são ainda mais importantes. O combate à alta dos preços apenas com o recurso à taxa de juros tem impacto desproporcional sobre as populações mais vulneráveis, o que se torna intolerável em momentos de crise sistêmica. “É da natureza da pobreza ter que consumir quase tudo que se ganha em bens essenciais. Se houver um mecanismo que impeça os preços desses bens de explodirem, então as pessoas mais vulneráveis aos choques serão protegidas”, resume.

A economista da USP compara esse mecanismo de estabilização às políticas de transferência e aos projetos de renda básica universal, que têm foco na cobertura das necessidades básicas por meio dos recursos monetários. Se o preço dos combustíveis ou dos alimentos disparar, mesmo tendo uma renda garantida a população enfrentaria uma onda de miséria. “Na era das emergências sobrepostas, essas políticas podem não ser suficientes. Nesse caso, seria necessário complementá-las. Os choques de preços em bens essenciais são muito prováveis, mas não sabemos quando e onde vão acontecer”, alerta.

Os efeitos das crises em cascata sobre o Brasil e as políticas públicas também constituem a pergunta central das preocupações expressas por Monteiro Neto, Colombo e Rocha Neto em seu trabalho para o Ipea. “Na área de política territorial tem uma literatura internacional crescente sobre a conjunção das crises”, relata Monteiro. Os pesquisadores se concentram na combinação entre clima, arrefecimento econômico e fragmentação social, que conduz à polarização política, para esboçar um cenário em que a atuação pública “perde sustentação política, capacidade operativa e de entrega de soluções”.

Monteiro observa que, do ponto de vista dos territórios, na Europa a recessão de 2008 ainda não foi superada. “Muitas regiões convivem com a perda de empresas e empregos. Como resultado, há crises internas, sociais, políticas, em cadeia”, afirma. “Quando a covid chegou, desarrumou o que já estava ruim. São claros os efeitos regionais dessa crise que é sanitária e de alcance global, mas também ecológica. E isso se repete em várias partes do mundo. Antes que as crises se resolvam, aparecem crises novas e os problemas vão se agregando.”

Colombo ressalta que a expectativa de crises simultâneas, porém imprevisíveis obriga a repensar o ciclo das políticas públicas: formulação, implementação, monitoramento e avaliação. “Para funcionar, a política tem que ter previsibilidade e confiança. Mas estamos entrando em um mundo onde faltam esses dois ingredientes, um mundo de constante transformação e complexidades que surgem a todo momento. Como lidar com ele?”, questiona.

A professora da Ufal menciona o caso das chuvas no litoral de São Paulo, somadas a estiagens na região Sul e secas além do esperado na região amazônica. “Cada um desses casos era algo que não se previa. Mas sabemos que as surpresas serão constantes, em decorrência das mudanças climáticas. O ciclo de política pública tem que ser concebido para lidar com o desconhecido. É um desafio enorme não só no plano legislativo, mas também orçamentário: como programar os recursos sem saber a dimensão dos gastos?”, acrescenta.

O documento aponta para uma crescente aversão ao risco nos agentes econômicos, desde a crise financeira de 2008, o que “contribui para postergar investimentos e desmobilizar recursos produtivos”. O ciclo de alta dos juros agudizou a incerteza e a retração dos investimentos, estimam os autores. “Só as instituições públicas conseguiriam reduzir o risco do investimento privado. Se o setor público investir em infraestrutura, o setor privado irá para onde esse investimento estiver acontecendo. Não cabe ao Estado fazer tudo, mas ele pode apontar para um horizonte macroeconômico mais seguro”, afirma Monteiro.

Reconhecer que os desafios contemporâneos constituem uma policrise é uma coisa; lidar com ela é algo bem diferente, ressalta Lawrence. Para o cientista político, por mais que aceitemos a ideia de que os problemas constituem uma rede, isso não significa que sabemos reagir. Ou seja, quando epidemiologistas alertam para a chegada de uma “doença X”, imaginamos uma resposta que envolve o monitoramento de vírus, o desenvolvimento de vacinas e a disponibilidade de leitos hospitalares. Mas seria preciso pensar também no vínculo com temas econômicos, como o enxugamento das equipes hospitalares; climáticos, como a destruição dos habitats; geopolíticos, como o acesso desigual a remédios; e políticos, como a radicalização de populações que se sentem desamparadas.

No caso de uma guerra como a invasão da Ucrânia, deve-se levar em conta não só o morticínio, não só a ruptura de cadeias de fornecimento de gás e trigo, mas também o favorecimento aos combustíveis fósseis, a instabilidade política de um mundo com alimentos caros, a nova onda de refugiados e, ao que parece, a pressão sobre o setor bancário.

A policrise exige, portanto, uma “politransição” para um regime de governança global consciente do caráter sistemático e imprevisível dos desafios. “Precisamos de reformas institucionais da escala daquilo que produziu o sistema de Bretton Woods [ao fim da Segunda Guerra Mundial]. Uma questão-chave é se seremos capazes de conduzir uma mudança desse nível sem ser provocados por uma crise extraordinária, como foi a guerra, só que pior”, diz Lawrence. “O perigo é que o tipo de crise que nos empurraria nessa direção talvez também comprometesse nossa capacidade de responder com algo efetivo. Por exemplo, se houver uma terceira guerra, com armas nucleares, não vai sobrar muito para a governança global governar.”

Fonte: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2023/04/14/o-que-e-a-policrise-o-termo-que-vem-sendo-usado-para-os-desafios-da-humanidade.ghtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newsoab

Nenhum comentário:

Postar um comentário