segunda-feira, 17 de abril de 2023

ENTRE MARTA E MARIA

por Camilo Martins de Oliveira 

 
Minha Princesa de mim,


De Brantôme para Congar, de frei Ivo para o Japão, onde me espera uma reflexão partilhada sobre experiências estéticas, cá estou no avião e, preparando, no caderno, umas notas sobre estética, dou com outras sobre esse paradoxo tradicional da nossa cultura que encerra a mulher numa fúria mental de diabolização-santificação... E que tantas vezes a inferioriza: discutiu-se (até em concílio!) se a mulher teria alma humana, Aristóteles, no cadinho de certos "ideais" helénicos (que aliás se refletiram em comportamentos sexuais) considerou-a uma frustração ou incompleição da natureza. E o Doutor Angélico, fiel ao seu método dedutivo e ao rigor da sua dívida para com o filósofo ateniense, terá achado de somenos importância aprofundar ou discutir um conceito que não se agitava no seu tempo. (Mas que teria dito, um século antes, Santa Hildegarda de Bingen?). S. Tomás de Aquino vai buscar a Aristóteles o conceito e a justificação da inferioridade congénita das mulheres. Assim, afirma em resposta à "quaestio" 92 da "Summa Theologiae":  "Pela própria operação da natureza, a mulher é inferior e é um erro. A causa agente que está na semente masculina tenta produzir algo completo em si, um macho. Mas quando é produzida uma fêmea, isso deve-se ao facto de a causa agente ter sido frustrada, ou por inadequação da matéria recipiente, ou por qualquer interferência deformadora, como ventos do sul, que são demasiado húmidos, como lemos no "Conceção Animal" (de Aristóteles). 

A esta visão da natureza da mulher, atribuirá ele a primeira razão de recusa de ordens sacras a pessoas do sexo feminino: "Como nenhuma precedência de superioridade pode ser expressa no sexo feminino, que tem um estatuto inferior, esse sexo não pode ser ordenado. Não há aqui qualquer fundamento bíblico nem argumento teológico. 

Trata-se de uma afirmação decorrente de um princípio aristotélico que, para nós, já não tem qualquer base científica aceitável. À ideia de inferioridade natural da mulher desde logo se associa a da sua impureza, designadamente manifestada pela fisiologia menstrual. 

Nas religiões antigas, e no próprio judaísmo, eram vários os interditos relacionados com esse período, em que o contacto com a mulher era considerado causa de impureza. Assim, não deviam os sacerdotes aproximar-se de suas mulheres por essa altura, sob pena de não poderem oferecer as preces e sacrifícios rituais. Aliás, é também por esta linhagem de interditos que, já no século XI, a Igreja Católica importa o celibato aos seus padres. Até aí, a castidade não era condição sine qua non do ministério pastoral e sacramental, mas um voto, em regra exigido a quem professasse numa comunidade religiosa, feito por quem escolhia uma vida de consagração especial.  

Há em tudo isso uma atitude e uma tradição misógina, que até se esquece de que o primeiro papa era um homem casado, cuja sogra foi curada por Jesus... E em lado algum está dito que Pedro tenha enviuvado ou repudiado a sua mulher. Mas sabemos, pelos evangelhos sinópticos, que Jesus curou uma mulher que sofria de um fluxo de sangue, uma hemorragia que, mesmo fora do período menstrual, determinava a impureza canónica. E diz-nos S. Lucas que Jesus não encarou logo com quem lhe tocara a veste, mas disse: "Quem me tocou? ... Alguém me tocou, pois senti sair de mim uma força!" Há algo de sacramental nessa afirmação. As representações do episódio "Noli me tangere" são recorrentes na história da arte europeia, desde os primórdios do cristianismo, como no fresco romano na igreja de Santi Pietro e Marcellino em Roma. 

A presença importante das mulheres na vida e na Igreja primitiva de Jesus foi relatada por S. Paulo nas suas epístolas. Na primeira aos Coríntios, pergunta: "Não teremos o direito de levar connosco uma senhora cristã, como os restantes Apóstolos, os irmãos do Senhor e Kefá?" Nessa carta, em que se preocupa e procura desenhar linhas de comportamento desejável para as mulheres - que, por serem cristãs (emancipadas?) não perdem todavia o estatuto social e as conveniências impostas pela sociedade do seu tempo - afirma: "Aliás, no Senhor, nem a mulher se compreende sem o homem, nem o homem sem a mulher. É que, assim como a mulher provém do homem, assim também o homem existe por meio da mulher; e tudo vem de Deus". Na carta aos Romanos, recomenda "a nossa irmã Febe, que é diaconisa da Igreja..." e refere-se a muitas outas, incluindo a mulher de Andrónico: "Saudai Andrónico e Júnia, meus parentes e companheiros de prisão, que são insignes entre os apóstolos e me precederam em Cristo." 

Santo Agostinho, num dos seus sermões, aconselha: "Devíamos ponderar a providencial aptidão da obra de Nosso Senhor. Assim, como o Senhor Jesus Cristo fez com que fossem mulheres os primeiros a testemunhar que ele tinha ressuscitado. Porque o homem caiu por uma mulher, e porque a virgem Maria deu à luz Cristo, mulheres deveriam proclamar que Ele tinha ressuscitado. Através da mulher, morte? Através da mulher, vida!" E não era o bispo de Hipona - que aliás repudiara a mulher quando da sua conversão ao cristianismo - muito propenso a enaltecê-las, nem sequer a Mãe de Jesus: não deixou escrito um só sermão sobre Nossa Senhora, mas referiu-se a Maria de Betânia como símbolo da contemplação e à Madalena como símbolo do amor. 

Das duas naturezas, humana e divina, coexistentes na pessoa de Jesus, Maria de Nazaré é só mãe da primeira. E como mulher só é confiada por Jesus, do alto da cruz, a João, para que este tome conta dela e não o contrário. É esclarecedor do seu pensamento sobre o poder de intercessão de Maria, o comentário de Agostinho sobre as bodas de Caná: "Porque ela não era mãe da Sua divindade, e o milagre que ela pedia tinha de ser feito pela Sua divindade, ele respondeu-lhe desta maneira: Que podes querer de mim, mulher? Mas para que não penses que não te reconheço como mãe, acrescento que ainda não chegou a minha hora. Então reconhecer-te-ei, quando a fraqueza que deste à luz tiver começado a sua hora na cruz." Será quando entregará a mãe ao cuidado do seu discípulo. Morrendo antes de mãe, para ressuscitar antes da mãe, Ele, como ser humano entrega a outro humano o cuidado desse humano de onde lhe veio a humanidade". 

A condição humana de Maria de Nazaré - que a tornava herdeira do pecado original - foi reafirmada por S. Bernardo, todavia um devoto de Santa Maria e pregador de cruzadas. A piedade popular fez constar que Deus teria então marcado de negro a sua alma... o que não dissuadiu S. Tomás de Aquino, passado um século, de se pronunciar contra a Imaculada Conceição, não só porque tal significaria negar a Cristo a natureza humana (posto que nascido de uma mulher), como ainda "retirar-lhe a honra de ser o salvador de todas as pessoas"... 

Enfim: discussões escolásticas cuja subtileza me escapa e que não impediram a proclamação desse dogma no séc. XIX. Nem a insistência crescente na mediação de Maria, que a piedade do povo católico foi impondo à doutrina oficial da Igreja. 

Aproximo-me dos meus 80 anos, Princesa, nasci, cresci e vivi, num mundo em que as mulheres não podiam seguir os cursos de estudos facultados aos homens, nem votar em eleições "democráticas" (muito embora, no passado, por direito divino ou genealógico, tivessem sido rainhas e imperatrizes), nem ser diplomatas, juízes ou militares. Hoje, a pouco e pouco vão podendo ser tudo isso, e em Igrejas cristãs irmãs da nossa na fé, mesmo conservadoras (como a anglicana/episcopaliana), até já vão acedendo às ordens sacras... Mas é na Igreja Católica, e nas ortodoxas, que o culto de Maria, como medianeira entre céu e terra, mais foi e tem sido cultivado. E não se define a função sacerdotal como essencialmente medianeira? Interrogo-me acerca deste ostracismo, não tenho que me pronunciar, apenas pergunto porquê. Já que, na verdade, nada, que eu saiba, exclui as mulheres desse munus no Novo Testamento. 

Recordo, nesta cabine de avião onde te escrevo, prestes a aterrar em Tokyo, o texto em que Congar explica como, nessas sagradas escrituras, nem sequer surge qualquer fundamento para o sacerdócio ritual que certo "machismo" eclesiástico reclama (esta frase é minha, não de frei Ivo): "Eis os factos. A palavra "hiereus" (sacerdote, o que oferece sacrifícios) surge mais de trinta vezes no Novo Testamento, e a palavra "archiereus" mais de cento e trinta. A utilização destas palavras é tão constante, que claramente denuncia uma intenção deliberada e altamente significante, sobretudo porque os escritores da primeira geração cristã seguem cuidadosamente a mesma linha. Neles, tal como no Novo Testamento, "hiereus" (ou "archiereus") é utilizada para designar quer os sacerdotes da ordem levítica, quer os sacerdotes pagãos. Aplicada à religião cristã, a palavra "hiereus" só serve para falar de Cristo ou dos fiéis. Nunca se aplica aos ministros da hierarquia da Igreja". 

Já apertei o cinto de segurança. É quando, nos aviões em manobras de voo, mais se reza. E eu rezo também, para que a nossa Igreja se entenda com a sua circunstância. Não por relativismo, mais ou menos oportunista. Mas porque, como Cristo, é incarnada. E vive na história dos homens." Camilo Maria não voltaria, por modo epistolar, a assuntos eclesiais. Mas, pela atualidade de um texto escrito nos anos setenta do século passado, transcrevo uma citação do Cardeal Congar, inserta num apontamento avulso do Marquês de Sarolea: "Os conceitos de Povo de Deus e de Sacramento da Salvação impõem-se como ponto de partida para o que se procura: uma Igreja desclericalizada, uma Igreja para o mundo. Enquanto que, até ao concílio (Vaticano II) vimos o mundo a partir da Igreja, tendemos a ver a Igreja a partir do mundo, correndo o risco de a secularizar e de esquecer o facto de que, por muito que ela seja feita para o mundo, ela é uma coisa diferente do mundo: é fruto de iniciativas divinas sobrenaturais, irredutíveis à criação ou à história. 

Por outro lado, um estudo histórico, a valorização de um laicado ativo, e também o diálogo ecuménico levam-nos a reler e alargar a teologia dos ministérios..."


Camilo Martins de Oliveira

Fonte:  https://e-cultura.blogs.sapo.pt/antologia-1457318

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