sexta-feira, 9 de junho de 2023

Por que precisamos reaprender a perguntar

Januária Cristina Alves*

 perguntas com used to


“Você pensa que pensa? Pensa mal. Quem pensa por você é a rede social. Quem vota por você é a rede social (...) Agora a dominação é interna. Quem não pensa não é livre, quem não é livre não é digno. Simples assim. E a democracia e o Estado Democrático de Direito se baseiam na ciência de que quanto mais você pensar e for educado, mais você é livre”, disse a ministra do Supremo Tribunal Federal Cármen Lúcia em um evento organizado pelo Instituto dos Advogados de São Paulo.

A ministra é conhecida por suas opiniões firmes e bem construídas e sua fala evidencia o quanto o casamento entre educação, liberdade e pensamento crítico é indissociável, não apenas da nossa condição cidadã, mas, como ela mesma frisa, da dignidade humana. Em tempos de ChatGPT (assistente virtual inteligente no formato chatbot online com inteligência artificial desenvolvido pela empresa americana OpenAI), inteligência artificial, algoritmos e “autoplays” (recurso utilizado pelas plataformas para a automatização da exibição de vídeos em nossa timeline), é imprescindível compreendermos o quanto conhecer, pensar e escolher são parte de um mesmo todo, e que essas competências e habilidades nos garantem uma participação social plena, potente e transformadora.

Um dos grandes desafios do nosso tempo é, sem dúvida, aprender a pensar por nós mesmos e, assim, construir o nosso repertório para tomarmos decisões mais construtivas. Tal tarefa é parte da educação, área do conhecimento das mais complexas e exigentes, uma vez que se apregoa por aí que podemos aprender sozinhos. O que o acesso amplo à internet – longe de ser universal e irrestrito ainda – nos ensina é que, mesmo com o “mundo ao alcance de um clique”, não conseguimos escolher com sabedoria e equanimidade, pois o planeta segue sofrendo com as desigualdades social, econômica, educacional, dentre tantas outras.

Pesquisadores têm apregoado que precisamos compreender

mecanismos de busca e algoritmos e que uma excelente

maneira de fazer isso é começarmos a procurar

as respostas de outra maneira

A abundância de informação não trouxe mais qualidade de vida, nos brindou com o excesso de opções e, com ele, veio a imensa dificuldade de escolher a mais confiável e eficiente para a resolução dos problemas que nos assombram. Talvez tenhamos que assumir que, mesmo com tanta informação disponível, continuamos perdidos nesse paradoxo entre o tudo e o nada. Nesse sentido, talvez tenhamos que voltar ao começo e assumir o não saber como a pedra de toque do nosso tempo e (re)aprendermos a perguntar.

Pesquisadores da área da informação têm apregoado que precisamos compreender os mecanismos de busca e os algoritmos, e que uma excelente maneira de fazer isso é começarmos a buscar as respostas de uma outra maneira: “parte da ‘polêmica’ sobre as sugestões do Google vem do jeito que nos acostumamos a buscar informações: ao invés de frases e perguntas, jogamos uma sequência de palavras-chave. Com os avanços da IA, acho que devemos buscar informações como faríamos com uma pessoa”, afirmou Pedro Burgos, professor de Comunicação e Jornalismo do Insper, em uma postagem no Twitter. Como diria a grande escritora Clarice Lispector: “eu sei de muito pouco. Mas tenho a meu favor tudo o que não sei e - por ser um campo virgem - está livre de preconceitos. Tudo o que não sei é minha parte melhor: é a minha largueza. É com ela que eu compreenderia tudo. Tudo o que não sei é que constitui a minha verdade”.

A capa mais recente da revista Time já antecipa a pergunta que não quer calar: “The end of humanity – How real is the risk?”, em tradução livre “O fim da humanidade - O quão real é o risco?”. Acredito que uma parte fundamental da construção do conhecimento que nos permitirá sobreviver aos algoritmos e à IA é “manter a nossa mente aberta. Misturar ceticismo com deslumbramento. Absorver tudo o que for possível sobre todos os assuntos”, como disse o professor e economista Rodrigo Zeidan em um artigo publicado na Folha de S.Paulo. E isso se faz de maneira segura e sobretudo motivadora e instigante, com perguntas.

Em minhas palestras para educadores tenho insistido na ideia de que é preciso voltar a dar mais atenção à pesquisa como instrumento de construção do repertório de leitura de mundo das crianças e jovens. Para uma geração que pouco suporta a dúvida, pois acredita que todas as respostas estão na primeira linha exibida no buscador da internet, praticar a construção do pensamento a partir dos referenciais básicos da pesquisa – elaborar uma pergunta, hipóteses e traçar um percurso em busca de respostas e, de preferência, encontrar mais perguntas – me parece um excelente antídoto contra a desinformação.

Se a figura do professor tem sido colocada em xeque - em que pese os resultados praticamente inexistentes ou, quando não, danosos, desse suposto aprendizado solitário - apostar no seu papel como propositor de territórios é uma possibilidade das mais alvissareiras. Como afirma o professor português Antônio Nóvoa em seu livro mais recente lançado no Brasil, “Professores: libertar o futuro” (Diálogos Embalados), os professores podem, de fato, libertar o futuro no sentido de “não fechar as possibilidades para garantir a liberdade das gerações futuras. (...) A escola futura será feita de cooperação. Ninguém se educa sozinho. Precisamos dos outros para nos educarmos. Precisamos de professores. Precisamos do poder da relação, do encontro entre mestre e discípulos”.

Não à toa temos visto a escalada de violência que escolheu as escolas e os professores como alvos, essa parceria em busca do conhecimento e pelo fim do obscurantismo incomoda a quem não se conforma com a democratização do acesso ao saber. Nesse sentido, é fundamental recuperar o papel da instituição escolar e dos educadores na construção de um projeto coletivo para o país. Resgatar a alegria de aprender, o prazer da conquista de traçar uma rota, um projeto de vida que inclua algo pessoal e intransferível a serviço de um bem comum, pode contribuir para que nossas crianças e jovens sejam capazes de escolher seus desejos e identificar suas necessidades, deixando de delegar aos robôs o conhecimento de si mesmos. Nesse sentido, cabe aqui a frase final da aula inaugural do semiótico francês Roland Barthes no Collége de France, quando falou aos professores sobre a importância da investigação para a construção dos saberes: “há uma idade em que se ensina o que se sabe, mas vem a seguir uma outra, em que se ensina o que não se sabe. Isso é pesquisar”. Talvez tenhamos que, de fato, praticar com frequência e intensidade o exercício do não saber para combater as mazelas da desinformação.

Januária Cristina Alves é mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews - Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação - ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.

Fonte:  https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2023/Por-que-precisamos-reaprender-a-perguntar?position-home=1

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