José de Souza Martins*
Foto: Carvall
Este é o primeiro grande ato oficial de reconhecimento cultural da identidade do importante grupo linguístico cuja língua foi a língua brasileira até 1727, quando foi proibida
A presidente do STF, ministra Rosa Weber, acompanhada da ministra Cármen Lúcia, estiveram em São Gabriel da Cachoeira, no Alto Rio Negro, no Amazonas, para o lançamento da primeira edição oficial da Constituição brasileira em língua indígena, a língua nheengatu, o tupi moderno.
O fato é dos mais importantes da história do reconhecimento da pluralidade do povo brasileiro e da história dos nossos povos originários. É o primeiro grande ato oficial de reconhecimento cultural da identidade do importante grupo linguístico cuja língua foi a língua brasileira até 1727, quando o rei de Portugal proibiu a língua geral e tornou o português a língua obrigatória da colônia.
Era uma reação às revoltas nativistas que prenunciavam a transformação do Brasil em país independente. A língua é um instrumento de consciência social e política. As palavras da língua nheengatu contém uma concepção da vida, das coisas e do universo que expressam uma visão de mundo que, na perspectiva de hoje, é uma visão universal e humanista. Portugal temia o que não era apenas uma língua, mas consciência de um possível anticolonialista.
A língua nheeengatu não é traduzível para o português sem grande esforço. Ermano Stradelli, que viveu na região de Tefé e se tornou nheengatu-falante, preparou um precioso “Vocabulário Português-Nheengatu/Nheengatu-Português”, nos anos 1920, quando juiz na Amazônia, só publicado muito depois de sua morte num leprosário de Manaus. O livro teve recente e bem cuidada edição pela Ateliê Editorial.
No vocabulário de Stradelli nota-se o esforço feito pelos missionários para subjugar culturalmente o nheengatu. A palavra “capela” virou tupã-ocamiri, “pequena casa de tupã”, que não existia nem existe na cultura tupi. Os missionários traduziram tupã por Deus, quando não existe a concepção de Deus na cultura indígena.
Imagem da Internet
Tupã é o dono do fogo, como o raio e o trovão decorrente, que causam grande medo aos indígenas. A igreja trouxe para eles um cristianismo do medo. O padre Manuel da Nóbrega, em carta de 1567, à Mesa de Consciência e Ordens, um tribunal, dizia que esta gente não pode ser sujeita senão pelo medo. O Deus do Brasil foi durante longo tempo um Deus do medo para subjugar e não para libertar.
A consequência da repressão linguística tornou clandestina a língua da maioria da população integrada. Forçada, passou a falar português com sotaque nheengatu. Os índios da costa, falantes da língua geral, o tupi, tinham dificuldade para pronunciar as palavras da língua portuguesa.
No século XVI já se tinha consciência de que os indígenas não conseguiam pronunciar as consoantes isoladas, como o erre do infinitivo, e as consoantes duplas. Daí que no dialeto caipira, que resultou da proibição, falar tornou-se falá como dizer tornou-se dizê e, outras, cantá, corrê, chorá. Ou orêia por orelha, muié por mulher. Um número enorme de pessoas no Brasil, mesmo cultas, é bilíngue, isto é, escreve em português e fala em brasileiro.
Em várias regiões fala esse brasileiro com inclusão de palavras nheengatu: coivara, pipoca, carioca, pacuera, quirera. Minha mãe, que era culturalmente caipira, referia-se a um cunhado urbano e sovina como muquirana, isto é, inseto que vive do sangue alheio.
Em muitas regiões do Brasil rural, o lugar que teve casa e habitante e não tem mais é definido como tapera, que não é o propriamente abandonado, mas o transformado, em desuso. Isto é, o que já foi, não é mais, mas continua sendo como outra coisa que é a mesma, porém transformada. Em “Grande sertão: veredas”, Guimarães Rosa, em certo momento, se refere a uma “fazenda taperada”, que foi e deixou de ser fazenda para, no abandono, ser tapera.
O poeta Álvares de Azevedo, estudante da Academia de Direito, da elite paulista, comentava com horror que as moças ricas da elite de São Paulo, nos bailes e saraus promovidos pela Marquesa de Santos, diziam, para desculpar-se: “Nóis num sabe dançá”.
Fora do ambiente tribal, a língua geral resistiu de vários modos. Até nos silêncios de uma linguagem que parece incompleta, mas não é, em contraste com a loquacidade dos brancos e dos donos de terra seus senhores. Uma língua de que faltam palavras ao caboclo que se dirige ao interlocutor de fora, de cabeça baixa, o silêncio completado com monossílabos e tímidos gestos das mãos. Só quem é membro dessas comunidades conhece e interpreta as palavras silenciadas e faltantes.
A tradução da Constituição brasileira para a língua nheengatu foi feita por indígenas bilíngues do Alto Rio Negro e Médio Tapajós. Já existe uma Academia da Língua Nheengatu e está surgindo uma geração de escritores indígenas autores de literatura nheengatu.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).
Fonte: https://valor.globo.com/eu-e/coluna/jose-de-souza-martins-a-constituicao-em-lingua-nheengatu.ghtml 28/07/2023
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