Por Alex Castro*
O escritor Milan Kundera após começar a viver na França, em abril de 1979 Jean-Pierre Couderc/Roger-Viollet/AFP
Autor de 'A Insustentável Leveza do Ser', amante dos romances e da música, foi central para a literatura tcheca
12.jul.2023
O escritor tcheco Milan Kundera morreu nesta terça-feira em sua casa em Paris, depois de uma longa doença. Ele deixa uma esposa, Vera, e nenhum filho. Mundialmente famoso pelo best-seller "A Insustentável Leveza do Ser", de 1984, ele é autor de uma vasta obra ficcional e ensaística.
A literatura mundial perde um de seus maiores autores contemporâneos. Quem também perde é a Academia Sueca. Com sua morte, Kundera se junta ao time de grandes autores universalmente celebrados por todos —menos pelo Nobel de Literatura. Mais uma omissão vergonhosa para uma lista já extensa, onde também estão Borges, Proust, Joyce, Tchékhov, Twain, Conrad, Brecht, Greene, Ibsen, Kafka, Lawrence, Nabokov, Orwell e outros.
Kundera entendia como poucos os efeitos absurdos do tempo na vida, nas certezas, nas nações. No curso de sua vida, foi testemunha ocular da queda do Terceiro Reich e da União Soviética, de onde talvez tenha extraído seus principais temas, como a transitoriedade da existência e, em consequência, o seu absurdo.
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Morre o escritor Milan Kundera
Nascido em 1929, o jovem Kundera faz parte da geração que chega à maioridade na Tchecoslováquia sob dominação comunista. Ele se filia ao Partido Comunista em 1948 e suas primeiras poesias são fortemente pró-soviéticas, até mesmo stalinistas. Ele nunca permitiu que fossem traduzidas ou reeditadas.
Formado em cinema e, depois, professor, teve entre seus alunos o futuro cineasta Milos Forman. Segundo ele, foi Kundera quem lhe fez ler "As Ligações Perigosas", de Choderlos de Laclos, que depois filmaria com o título "Valmont", de 1989.
Apesar da ligação profissional e acadêmica com o cinema, a maior influência na obra de Kundera sempre foi a música. Filho de um musicólogo e pianista, Kundera incluía temas e até notações musicais em sua obra. "A Insustentável Leveza do Ser", por exemplo, é explicitamente escrita como uma composição musical, onde as vidas dos protagonistas são como partituras que se encontram e se fundem.
Suas primeiras obras, o romance "A Brincadeira", de 1967, e os contos de "Risíveis Amores", de 1969, foram as mais políticas, centradas ao redor dos pequenos dramas de viver em uma república soviética com liberdade de expressão restrita. Por volta dessa época, o escritor já estava distante de sua fase de "poeta stalinista".
Até a Primavera de Praga, em 1968, uma breve tentativa de abertura esmagada pelos soviéticos, Kundera ainda era um comunista reformista, debatendo publicamente contra escritores mais críticos ao regime, como Vaclav Havel, depois tanto último presidente da Tchecoslováquia (entre 1989 e 1992) quanto primeiro presidente da República Tcheca (entre 1993 e 2003).
O destino das "pequenas nações" da Europa Central, e especialmente de suas línguas e literaturas, sempre foi um de seus principais temas. A expressão é do próprio Kundera, em discurso de 1967, "A Literatura e as Pequenas Nações", inédito no Brasil.
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Veja fotos da República Tcheca
No ensaio "A Irreparável Desigualdade", em "A Cortina", de 2005, ele comenta: os poloneses são tão numerosos quanto os espanhóis, mas nunca ocorreria a um espanhol que a Espanha não poderia existir; já o hino da Polônia começa com "A Polônia ainda não morreu".
Finalmente, em 1975, Kundera saiu da Tchecoslováquia e se mudou para a França, onde publicou seus romances seguintes, ainda escritos em tcheco: "O Livro do Riso e do Esquecimento", em 1979, que lhe custou a perda da cidadania tcheca, seguido pelo sucesso mundial de "A Insustentável Leveza do Ser", em 1984 e por "A Imortalidade" de 1990.
A partir daí, Kundera empreendeu uma das aventuras mais arriscadas para um escritor: cidadão francês desde 1981, decidiu trocar de língua no meio da carreira. Seu romance seguinte, "A Lentidão", de 1995, é o primeiro escrito diretamente em francês, seguido por "A Identidade", de 1998, "A Ignorância", de 2000 e, por fim, "A Festa da Insignificância", de 2014. No Brasil, toda a obra de Kundera é publicada pela Companhia das Letras.
São raros os escritores que conseguiram escrever grandes obras em línguas que não eram as suas desde a infância. Joseph Conrad, polonês, é um deles, talvez por nunca ter escrito literatura em seu polonês materno: ele já começa no inglês que aprendeu no mar.
Nabokov talvez seja o principal exemplo: escreveu grandes obras em seu russo materno e sua obra-prima —os críticos divergem entre "Lolita", de 1955, ou "Fogo Pálido", de 1962— em inglês.
Kundera nunca foi um artesão do idioma —o traço formal mais marcante de seus romances é a estrutura. Seus textos não caem em qualidade estilística na nova língua, mas algo definitivamente ficou pelo caminho.
Sua última obra-prima, talvez não por acaso, é "A Imortalidade", também a última escrita em tcheco. Longe da terra natal e dos seus dilemas políticos, sua literatura, apesar de nunca explicitamente política, perde força.
Sua mulher, Vera Kunderova, que o acompanhou no exílio e foi sua agente literária e porta-voz —ele quase nunca dava entrevistas ou falava com a imprensa— afirmava que "emigrar é o maior erro que uma pessoa pode cometer" e se comparava a uma "escravizada que à noite sonha com a terra natal".
O legado principal que Kundera deixa, além de um amor exuberante pelo romance enquanto gênero literário, é uma revalorização do humor na literatura. Houve época em que as grandes obras literárias faziam seus leitores gargalharem. Depois, em algum momento, uma certa seriedade existencial se impôs como qualidade dominante.
Kundera, porém, em sua obra ensaística (que compreende "A Arte do Romance", "Os Testamentos Traídos", "A Cortina" e "Um Encontro"), busca recuperar os grandes mestres do humor, de Rabelais a Cervantes, de Sterne a Musil.
Milan Kundera, de sua pequena nação sempre perigando desaparecer, tendo passado pela Segunda Guerra e pela ocupação alemã, pelo domínio soviético e pelo exílio político, pela diáspora e pela troca de idioma, é o escritor perfeito para nos ensinar, em sua prática ficcional e em seus ensaios literários, que o humor expõe e revela, salva e redime.
* Escritor, é autor de 'Atenção.' e 'Mentiras Reunidas' Rio de Janeiro
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