segunda-feira, 24 de julho de 2023

Ler alguém novo?

 Por Leandro Karnal*

Pilha de livros
 Pilha de livros Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Aos jovens escritores, um conselho: continuem tentando, insistam, quebrem barreiras

Recebo muitos livros. São abundantes. Chegam em pacotes diários. Acumulam-se à porta. Por vezes, ao abrir, a surpresa: clássicos em lindas reedições. Que alegria reencontrar um Dante, um Rousseau, um Flaubert, uma Clarice Lispector. Guardo-os, com carinho, na estante. Dependendo do momento, chega a hora de reler, como fiz neste ano com a obra de Camus (reeditada pela Record).

Em plena crise, pipocam livros de capa dura e edições luxuosas. Acabo de reler Engenhos da Sedução: O Hino Homérico a Afrodite, na tradução de Mary Lafer (Ateliê Editorial). Aprendo, alegro-me, penso. Cada obra de peso me enche de ideias.

Em outras caixas e pacotes, surgem autores mais recentes, precedidos pelo inevitável “dez semanas na lista de best-sellers do New York Times”. A relação daquele jornal deve ser prodigiosa, porque muita gente figura nela. Vêm capas chamativas, currículos impressionantes (professor em Harvard e Yale, em geral), boas editoras, pequenas frases feitas por alguma celebridade influente. Assim, descobri Jonathan Haidt, Michael Sandel, Daniel Kahneman e outros.

A categoria anterior ainda não é do panteão dos clássicos, porém arromba a porta do Olimpo literário: com força e dinheiro, talento e persistência. O tema é vibrante; o prefácio é de alguém que você ama; a capa, um projeto extraordinário. São sereias, pedindo que o barco se arremesse às rochas de papel: irresistíveis!

Vamos a uma outra zona bibliográfica. Desliguemos as luzes do tempo e do brilho-dinheiro. A editora é pequena ou desconhecida, o autor nunca lançou outro, o prefácio é de uma pessoa igualmente anônima. Nada acende uma luz interior ou, como dizem os americanos, nada “rings a bell”. O livro pode ser de contos, um romance ou coletânea de poesias. Devo ler? Devo entrar no avião sem saber o destino?

Já escuto coisas, como: “Se você não ler autores desconhecidos, como descobrirá novos talentos? Todos merecem uma chance! Você também começou, num dia!”. São ideias corretas. Meu obstáculo intransponível é... ser mortal.

Não tenho a eternidade pela frente. Apresento plena consciência da minha finitude. Já narrei que, em um jantar com o mestre Antônio Houaiss, ele confessou, às vascas dos 80 anos, que se limitava a reler clássicos, como Shakespeare e Joyce. Não tinha tempo para arriscar um autor novo. Eu era muito mais jovem e fiquei um pouco incomodado com a ideia. Hoje, provavelmente, condenaria menos a atitude do velho mestre.

A ideia anda de forma paralela ao conselho de investimentos financeiros. Você é jovem? Arrisque-se mais para receber mais. Passou de uma certa idade e possui menos tempo pela frente? Recomendamos Títulos do Tesouro. Você tem tempo útil suficiente para entrar no cassino financeiro?

Entenda o dilema: o prazer com Dostoievski será garantido, 100%! Qual a taxa de retorno e risco que incide sobre um poeta de 21 anos, de São João da Serra do Cipó, que acaba de lançar, em edição paga pela madrinha benemérita, seus melhores poemas? Será uma pura vaidade de aldeia?

Eu falei de tempo e de risco. Preciso identificar personalidade como fator. Amo descobrir restaurantes. Tenho pessoas muito queridas que preferem no lugar consagrado a mesma iguaria. No entanto, se você tivesse poucas refeições pela frente, preferiria o que ama, já experimentado, ou arriscaria um cardápio inédito?

Ainda no campo da dialética culinária. Muitos italianos consideram que o ideal é criar o prato perfeito de uma receita conhecida e aclamada. Cozinhas contemporâneas de outras tradições adoram “desconstruir”, “surpreender”, “inventar”.

A questão inclui muitas reflexões. Decidi que, a cada 4 ou 5 livros de autores premiados/clássicos, eu lerei alguém que publica sua primeira obra. Isso areja o cérebro. Alguém ainda cru na técnica da escrita pode me fazer entender melhor os andaimes e estruturas. Veja: considero Madame Bovary e A Educação Sentimental muito bons, superiores a uma obra do mesmo autor, quando jovem: Memórias de um Louco. Flaubert, como todo mundo, aprendeu praticando. Claro, sempre existe o gênio de Rimbaud, precoce. Em música e pintura, ocorre o mesmo fenômeno. Comparem a engenhosa Sonata Número 1 para piano, de Beethoven, com a extraordinária 32 do mesmo autor. Há anos de aprendizado naquelas notas! Ambas são lindas; a 32 é transcendental. Se os gênios aprenderam, quanto mais nós, bem abaixo do patamar revolucionário deles. Confesso: tenho vergonha de vários textos meus da juventude. Meus detratores dirão que o sentimento deveria permanecer com os textos atuais. Há dias em que concordo com meus fidelíssimos críticos.

Aos jovens escritores um conselho: continuem tentando, insistam, quebrem barreiras. Se vocês são escritores, a condição é: escrevam para existir. Sem escrita, vocês definham. Lutem pelas suas obras! Lutem pela vida! Vençam o poder, sempre geriátrico e ranzinza, do establishment. Pessoas consagradas podem ser mal resolvidas. Sucesso não implica sabedoria. Muita gente no topo não quer ver vocês reconhecidos. Isso desafia a posição conquistada arduamente. Cultivem a esperança no talento e sigam firmes.

* LEANDRO KARNAL É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E AUTOR DE ‘A CORAGEM DA ESPERANÇA’, ENTRE OUTROS

Fonte:  https://www.estadao.com.br/cultura/leandro-karnal/ler-alguem-novo/

Nenhum comentário:

Postar um comentário