Por Paula Martini, Valor — Rio de Janeiro
Bill Gates Foto: Markus Schreiber/AP
O bilionário e cofundador da Microsoft afirma que os riscos da inteligência artificial são reais, mas administráveis
O que acontece com as pessoas que perdem seus empregos para uma máquina inteligente? A inteligência artificial pode afetar os resultados de uma eleição? E se a AI decidir que não precisa mais dos humanos e quiser se livrar de nós? Todas as perguntas são justas, mas essa não é a primeira vez que a sociedade tem que lidar com os desafios impostos por por novas tecnologias.
É o que defende o empresário Bill Gates, cofundador da Microsoft, em um artigo publicado em seu blog. No texto, o bilionário defende que os riscos da inteligência artificial são reais, mas administráveis. Apesar de reconhecer que as ameaças criadas pela IA podem parecer avassaladoras, ele sustenta que a sociedade tem experiência em lidar com tecnologias que exigem algum tipo de controle.
Gates compara o desenvolvimento da inteligência artificial à introdução dos carros, dos computadores pessoais e da internet. Ele diz que, apesar de muita turbulência, as pessoas passaram por momentos transformadores e saíram-se melhor no final das experiências com as novas tecnologias.
“Logo depois que os primeiros automóveis estavam na estrada, houve o primeiro acidente de carro. Mas não banimos os carros — adotamos limites de velocidade, padrões de segurança, requisitos de licenciamento, leis sobre dirigir embriagado e outras regras de trânsito”, diz no texto.
Para o bilionário, estamos no estágio inicial de outra mudança profunda, que é “análogo aos tempos incertos antes dos limites de velocidade e dos cintos de segurança”. Ele diz que a inquietude é natural, mas que a história mostra que é possível resolver os desafios criados pelas grandes inovações.
O filantropo diz ainda que o futuro da inteligência artificial não é tão sombrio quanto algumas pessoas pensam, nem tão otimista quanto outras acreditam. Ele afirma que os riscos são reais, mas diz estar confiante sobre a como podem ser administrados.
Em outro post, Gates já havia defendido que a IA vai revolucionar nossas vidas, ajudando a resolver problemas em saúde, educação e mudanças climáticas. No artigo publicado nessa terça (11), ele se debruça sobre as preocupações mais comuns com a nova tecnologia e nos riscos que já estão presentes no nosso dia a dia.
Antes de adentrar em tópicos específicos, o bilionário resume o seu raciocínio em três tópicos:
Muitos dos problemas causados pela IA têm um precedente histórico. Por exemplo, terá um grande impacto na educação, mas o mesmo aconteceu com as calculadoras portáteis há algumas décadas e, mais recentemente, com a permissão de computadores na sala de aula.
Muitos dos problemas causados pela IA também podem ser gerenciados com a ajuda dela.
Teremos que adaptar as leis antigas e adotar novas, assim como as leis existentes contra fraudes tiveram que ser adaptadas ao mundo online.
Deepfakes e informações erradas geradas pela IA podem prejudicar as eleições e a democracia?
Para Gates, a ideia de que a tecnologia pode ser usada para espalhar mentiras e inverdades não é nova, pois as pessoas fazem isso com livros e folhetos há séculos, mas a disseminação de notícias falsas foi intensificada com o advento de processadores de texto, impressoras a laser, e-mail e redes sociais
“A IA pega esse problema de texto falso e o estende, permitindo que praticamente qualquer pessoa crie áudio e vídeo falsos, conhecidos como deepfakes. Se você receber uma mensagem de voz que soe como seu filho dizendo ‘Fui sequestrado, envie 1.000 dólares para esta conta bancária nos próximos 10 minutos e não chame a polícia’, isso terá um impacto emocional terrível além do efeito de um e-mail que diz a mesma coisa", reconhece.
Segundo o bilionário, o que o deixa otimista é que as pessoas são capazes de aprender a não aceitar tudo "de pronto". Ele exemplifica que durante anos os usuários de e-mail caíram em golpes que prometiam fortunas em troca do número do cartão de crédito, mas, eventualmente, a maioria das pessoas aprendeu a olhar com desconfiança para esses e-mails. “À medida que os golpes se tornavam mais sofisticados, o mesmo acontecia com muitos de seus alvos. Precisamos construir o mesmo músculo para deepfakes”, defende.
Ele também acredita que a própria inteligência artificial poderá ajudar a identificar deepfakes, e menciona que a Intel já desenvolveu um detector de deepfake e que a Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa está trabalhando em tecnologias para identificar se um vídeo ou áudio foi manipulado.
A IA facilita o lançamento de ataques contra pessoas e governos?
O cofundador da Microsoft admite que os modelos de inteligência artificial vão acelerar a elaboração de códigos que atacam fraquezas dos softwares, ajudando os hackers a escrevem códigos mais eficazes e a obter informações públicas sobre indivíduos. Por isso, diz, as equipes de segurança do governo e do setor privado precisam desenvolver ferramentas para encontrar e corrigir falhas antes dos criminosos.
Ele defende que esse não é um motivo suficiente para tentar impedir que as pessoas implementem novos desenvolvimento em inteligência artificial, como alguns querem, já que os cibercriminosos não param de criar novas ferramentas.
Para Gates, os governos devem considerar a criação de um órgão global para IA semelhante à Agência Internacional de Energia Atômica. Isso porque, segundo ele, existe o risco armamentista por inteligência artificial que pode ser usado para projetar e lançar ataques cibernéticos contra outros países.
“Esse é um pensamento assustador, mas temos a história para nos guiar. Embora o regime mundial de não-proliferação nuclear tenha suas falhas, ele evitou a guerra nuclear total da qual minha geração tanto temia quando éramos crianças”, afirma.
A IA vai tirar os empregos das pessoas?
Para Bill Gates, não. Ele acredita que o principal impacto da inteligência artificial no trabalho será em ajudar as pessoas a trabalhar com mais eficiência, seja em fábricas ou num escritório. Seguindo o argumento de um post publicado em fevereiro, ele reforça que o aumento da produtividade dá mais tempo para as pessoas se dedicarem a outras atividades, no trabalho e em casa.
O que Gates entende é que alguns trabalhadores vão precisar de suporte e reciclagem na transição para um ambiente de trabalho com tecnologia de inteligência artificial, e que esse é um papel para governos e empresas. Para o empresário, o impacto da IA não será tão “dramático” quanto a Revolução Industrial, mas certamente tão grande quanto a introdução dos computadores pessoais, que "mudaram para sempre o trabalho de escritório".
A IA herda nossos preconceitos e inventa as coisas?
Para entender por que alucinações – termo usado quando uma IA faz com confiança alguma afirmação que não é verdadeira – e vieses acontecem, é importante saber como funcionam os modelos de IA mais comuns atualmente. Eles são essencialmente versões muito sofisticadas do código que permite que seu aplicativo de e-mail preveja a próxima palavra que você digitará: eles escaneiam enormes quantidades de texto – quase tudo disponível online, em alguns casos – e o analisam para encontrar padrões em linguagem humana.
Quando você faz uma pergunta para uma IA, ela analisa as palavras que você usou e procura trechos de texto frequentemente associados a essas palavras. Se você escrever “listar os ingredientes para panquecas”, pode notar que as palavras “farinha, açúcar, sal, fermento em pó, leite e ovos” geralmente aparecem com essa frase. Então, com base no que sabe sobre a ordem em que essas palavras costumam aparecer, ele gera uma resposta.
Esse processo explica por que uma IA pode ter alucinações ou parecer tendenciosa, segundo Bill Gates. Da mesma forma, os modelos de IA herdam quaisquer preconceitos inseridos no texto em que são treinados. Se alguém lê muito sobre, digamos, médicos, e o texto menciona principalmente médicos do sexo masculino, então suas respostas assumirão que a maioria dos médicos são homens.
Embora alguns pesquisadores pensem que as alucinações são um problema inerente da inteligência artificial, Gattes diz que não concorda com isso. “Estou otimista de que, com o tempo, os modelos de IA podem ser ensinados a distinguir fato de ficção. A OpenAI, por exemplo, está fazendo um trabalho promissor nessa frente”, afirma.
Segundo o empresário, uma abordagem possível é incorporar valores humanos e raciocínio de alto nível na IA. Assim como um ser humano está consciente de que é preciso combater a ideia de que todos os médicos são homens, por exemplo, a IA poderia operar de maneira semelhante especialmente se os modelos forem projetados por pessoas de diversas origens.
Por fim, diz ele, todos que usam inteligência artificial precisam estar cientes do problema do viés e se tornar um usuário informado. “O ensaio que você pede a uma IA para redigir pode estar tão cheio de preconceitos quanto de erros factuais. Você precisará verificar os vieses de sua IA, bem como os seus”.
Os alunos não aprenderão a escrever porque a IA fará o trabalho por eles?
Muitos professores estão preocupados com as maneiras pelas quais a IA pode prejudicar seu trabalho com os alunos. No entanto, já existem ferramentas que estão aprendendo a dizer se algo foi escrito por uma pessoa ou por um computador. Além disso, diz Bill Gates, alguns professores não estão tentando impedir que os alunos usem a inteligência artificial, mas incentivando isso.
O empresário lembra da época em que as calculadoras eletrônicas se popularizaram, décadas de 1970 e 1980, e gerou apreensão em alguns professores de matemática de que os alunos parassem de aprender aritmética básica. Outros, por conseguinte, adotaram a nova tecnologia e se concentraram nas habilidades de raciocínio por trás da aritmética.
O cofundador da Microsoft diz que a IA pode ajudar na escrita e no pensamento crítico, especialmente quando as “alucinações” e preconceitos ainda são um problema. Nesse caso, afirma que os educadores podem fazer com que a inteligência artificial gere artigos e depois trabalhar com seus alunos para verificar os fatos.
Ele diz, no entanto, é que necessário garantir que o software educacional ajude a fechar a lacuna de desempenho, em vez de piorá-la. Isso porque o software de hoje é voltado principalmente para capacitar os alunos que já estão motivados – desenvolvendo planos de estudo, indicando recursos e testando conhecimentos –, mas ainda não sabe como atrair os estudantes para assuntos pelos quais ele ainda não está interessado.
E agora?
O bilionário acredita que há razões para sermos otimista de que é possível gerenciar os riscos da AI enquanto os seus benefícios são maximizados. “Mas precisamos agir rápido”, alerta. Para isso, enumera algumas atitudes que devem ser adotadas para lidar com a “a inovação mais transformadora que qualquer um de nós verá em nossas vidas”. São elas:
Os governos precisam desenvolver conhecimentos em inteligência artificial para que possam fazer leis e regulamentos que respondam a essa nova tecnologia. A lei precisa ser clara sobre quais usos de deepfakes são legais e sobre como os deepfakes devem ser rotulados para que todos entendam quando algo que estão vendo ou ouvindo não é genuíno, por exemplo.
Os líderes políticos precisarão estar equipados para ter um diálogo informado e ponderado com os cidadãos. Eles também precisarão decidir o quanto colaborar com outros países nessas questões em vez de fazer isso sozinhos.
No setor privado, as empresas de IA precisam realizar seu trabalho com segurança e responsabilidade. Isso inclui proteger a privacidade das pessoas, garantir que seus modelos de IA reflitam valores humanos básicos, minimizar preconceitos, espalhar os benefícios para o maior número possível de pessoas e impedir que a tecnologia seja usada por criminosos ou terroristas.
Empresas em muitos setores da economia precisarão ajudar seus funcionários a fazer a transição para um local de trabalho centrado em IA. E os clientes devem sempre saber quando estão interagindo com uma IA e não com um ser humano.
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