Escritor tcheco previu em 1978 o 'tempo da surdez e da incompreensão universais'
"Pois cada um de nós sofre com a ideia de desaparecer, sem ser ouvido e notado, num universo indiferente, e por isso quer, enquanto é tempo, transformar a si mesmo em seu próprio universo de palavras", escreveu Milan Kundera.
O grande escritor tcheco que teve sua morte anunciada na madrugada desta quarta (12), aos 94 anos, chegou a saber muito bem que conseguiu ser "ouvido e notado" em nosso "universo indiferente", transformando-se em "seu próprio universo de palavras".
Quando escreveu a reflexão que abre esta coluna, não era possível ter tanta certeza. O parágrafo acima é de "O Livro do Riso e do Esquecimento" (Companhia das Letras, tradução de Teresa Bulhões da Fonseca), lançado em 1978.
Àquela altura, o autor vivia seus primeiros anos de exílio em Paris, para onde se mudara em 1975. A explosão de "A Insustentável Leveza do Ser", best-seller atômico que tornou seu nome conhecido em todo o mundo, só ocorreria em 1984.
Kundera foi filho do espírito de 1968 e o mais famoso tradutor, em linguagem artística, da Primavera de Praga, amplo movimento de insubordinação da sociedade tcheca por um socialismo com mais liberdade — e, em igual medida, também da violência que pôs um fim lúgubre à festa, quando os tanques soviéticos entraram na cidade.
Os anos de repressão que vieram a seguir lhe custaram o emprego de professor e até a cidadania, mas lhe deram material para suas ficções cheias de erotismo, humor ácido e um sentido dolorosamente concreto das contingências históricas.
Kundera afirmava com ênfase não ser um romancista psicológico. Ficcionista de ideias, além de ensaísta e pensador da literatura, produziu em especial em "O Livro do Riso e do Esquecimento", com sua mistura lúdica de gêneros, um conjunto de reflexões mais relevantes do que as histórias ali narradas.
A sacada que abre esta coluna em forma de homenagem é desdobrada no livro, à moda kunderiana típica, em lucidez, comédia e pessimismo:
"Aquele que escreve livros é tudo (um universo único para si e para todos os outros) ou nada", anota. "E porque nunca será dado a ninguém ser tudo, nós todos que escrevemos livros não somos nada. Somos desconhecidos, ciumentos, azedos, e desejamos a morte do outro."
Acho que poucos escritores admitiriam haver uma ponta profunda de verdade em tais palavras — quer dizer, em público. Kundera nunca foge desses abismos pouco lisonjeiros em que nossa espécie contempla vertigens.
O passo seguinte, inapelável, é que, se escritores são ciumentos, seu mal-estar só pode se agravar quando eles veem a categoria se multiplicar à sua volta.
"A irresistível proliferação da grafomania entre os políticos, os motoristas de táxi, as parturientes, os amantes, os assassinos, os ladrões, as prostitutas, os prefeitos, os médicos e os doentes me demonstra que todo homem sem exceção traz em si sua potencialidade de escritor, de modo que toda a espécie humana poderia com todo direito sair na rua e gritar: Somos todos escritores!"
Dessa cena de comédia rabugenta se passa, assim, a uma espécie impressionante de profecia. Não parece absurdo dizer que, em 1978, Kundera previu a internet e as redes sociais ao escrever o seguinte:
"Quando um dia (isso acontecerá logo) todo homem acordar escritor, terá chegado o tempo da surdez e da incompreensão universais."
E não é que chegou? Descanse em paz, Milan Kundera. Obrigado por tudo.
* Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.
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