Como não ser demitido de um jornal? | Foto: Felipe Rodrigues
Um motorista de Uber me criticou por não ter sabido ficar na trincheira. Referia-se aos espaços de mídia que ocupei por muitos anos. Há motoristas que repentinamente puxam conversa. Outros subitamente param de conversar. Eu apenas abro uma fresta da janela para respirar. Outro motorista, pego Uber ou táxi duas vezes por dia, que nem parecia interessado em resenha, perguntou do nada:
– O que se deve fazer para não ser demitido de um jornal?
A pergunta era extensiva a qualquer veículo da imprensa dita convencional. Cabia na minha experiência de demitido de rádio, jornal e revista (IstoÉ). Tive dez minutos para dar a resposta. Hesitei entre os clichês – trabalhar muito, estar sempre atualizado, não fazer inimigos, ter audiência, público – e uma perspectiva mais, digamos, niilista, filosófica, que alguns chamarão equivocadamente de cínica:
– É fácil – eu disse.
– Explique.
– Por que quer saber?
– Curiosidade.
A resposta era inatacável. Diante de respostas assim não há o que fazer, salvo desembuchar. Tratei de me dar o trabalho:
– Basta parecer de direita para não desagradar o patrão; parecer de esquerda para não apanhar dos militantes que não desgrudam da mídia que chamam de corporativa; parecer o que se é diante do espelho.
O motorista riu. Não, sorriu. Não, riu mesmo. Sem muito ruído. Esperei pela óbvia pergunta seguinte. Ela não parecia disposto a arriscar. Talvez estivesse satisfeito com a minha filosofia. Ou processando as contradições de semelhante e complexa personalidade.
– Dá para ser essas três coisas ao mesmo tempo? – era a pergunta que eu esperava e não vinha. Aliás, para encurtar caminho, não veio.
O que eu teria respondido se ele tivesse feito essa pergunta? Não sei. Juro. Eu já estava quase perguntando se ele não ia perguntar quando, depois de passar um sinal no laranja extremo, ele perguntou:
– Onde foi que falhou?
Sujeito esperto. Aumentei a fresta da janela. Melhor, desci o vidro todo. Pensei até em alterar o percurso para discorrer sobre o assunto sem qualquer simplificação. Finalmente observei:
– A esquerda começou a me aplaudir demais.
– E a direita?
– Gostou da ideia.
– Como assim?
– Para se livrar de mim.
Ele não disse mais nada até chegarmos ao destino. Gosto de ideia de chegar ao destino de táxi ou uber. Tão fácil. Só chamar e pagar. Há quem distinga destino e destinação. A sabedoria popular evita essas complicações, quem sabe, é a minha hipótese, para deliciar-se com essas possibilidades ao alcance da mão. O aplicativo permite alterar facilmente o destino. Tudo ao alcance dos dedos mais ágeis. Eu já estava ensaiando a minha despedida oficial, “obrigado e bom trabalho”, quando ele me surpreendeu com uma afirmação sem tempo para debate:
– Era o que eu pensava.
– Como assim?
– Por que quer saber? – ele devolveu.
– Por curiosidade.
– Se o destino nos cruzar novamente eu lhe conto.
E se foi.
Caí de cavalo.
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