sábado, 8 de julho de 2023

Conheça Hwang In-suk, uma poeta da noite cujas musas têm sete vidas

 Por Mike Ives

“Encontrei mundos que não teria encontrado se não estivesse alimentando gatos à noite”, disse o poeta Hwang In-suk, de Seul.
 “Encontrei mundos que não teria encontrado se não estivesse alimentando gatos à noite”, disse o poeta Hwang In-suk, de Seul. Foto: Jun Michael Park/The New York Times

A escritora sul-coreana Hwang In-suk alimenta gatos de rua nas suas caminhadas noturnas por Seul. A rotina traz solidão e impermanência para seus poemas.

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Quase todas as noites, Hwang In-suk empurra um carrinho de compras para cima e para baixo nas vielas íngremes de seu bairro de Seul, seguida por gatos vadios que surgem das sombras para saudá-la sob o brilho dos postes de luz e das marquises de lojas de conveniência.

Os vizinhos pensam que Hwang, 64 anos, é só alguém que alimenta gatos na rua. Poucos sabem que ela é uma poeta célebre cujo trabalho explora a solidão e a impermanência na capital sul-coreana.

Suas décadas de escrita cobrem um período em que a Coreia do Sul experimentou uma coleção vertiginosa de identidades: país governado por ditaduras militares repressivas, democracia incipiente e, nos últimos anos, potência econômica e rolo compressor cultural no mundo inteiro.

Hwang disse que sua rotina noturna permite que ela observe silenciosamente não apenas os gatos, suas musas favoritas, mas também o bairro em constante transformação e as classes mais baixas de uma megacidade que é cada vez mais conhecida por suas fachadas chamativas.

“Encontrei mundos que não teria encontrado se não estivesse alimentando gatos à noite”, disse ela quase sussurrando durante uma caminhada recente por seu bairro, Haebangchon. As ruas estavam quase todas silenciosas, exceto por um ou outro carro, táxi ou caminhão de entrega.

Hwang disse que sua rotina noturna de alimentação de gatos permite que ela observe silenciosamente não apenas os gatos, suas musas favoritas, mas também sua vizinhança em mudança.
Hwang disse que sua rotina noturna de alimentação de gatos permite que ela observe silenciosamente não apenas os gatos, suas musas favoritas, mas também sua vizinhança em mudança. Foto: Jun Michael Park/The New York Times

Além de gatos e outros temas, a poesia de Hwang registra o ambiente de balconistas de lojas de conveniência, varredores de rua e outros trabalhadores noturnos. “Nem conheço o rosto dele, pois só nos encontramos no escuro”, ela escreve sobre um entregador de jornais no poema chamado “Não sei onde você mora”:

Ele também não reconheceria meu rosto, mas

me reconhece muito bem.

Vivemos à noite.

Haebangchon - ou “Vila da Libertação” - fica perto da estação ferroviária central de Seul e do que já foi a principal base militar dos Estados Unidos no país. O bairro foi esculpido nas florestas de uma colina depois do fim da Segunda Guerra Mundial, quando a Coreia se livrou do domínio colonial japonês.

Quatro gatos vadios se alimentando de comida fornecida pela Sra. Hwang. Cerca de um quinto de sua obra poética foi relacionada a gatos.
Quatro gatos vadios se alimentando de comida fornecida pela Sra. Hwang. Cerca de um quinto de sua obra poética foi relacionada a gatos. Foto: Jun Michael Park/The New York Times

Muitas das pessoas que se estabeleceram ali eram refugiadas norte-coreanas que chegaram durante ou depois da Guerra da Coreia, disse Pil Ho Kim, especialista em história cultural sul-coreana na Universidade Estadual de Ohio, cujo pai cresceu no bairro depois de fugir do Norte.

Nas décadas seguintes à guerra, a Coreia do Sul viveu convulsões dramáticas, como uma rápida industrialização, um assassinato presidencial e um massacre de manifestantes pró-democracia. O mesmo aconteceu com Haebangchon, lugar a princípio conhecido como uma “aldeia da lua”, termo usado para designar favelas urbanas construídas nas encostas dos morros.

Na década de 1970, migrantes sul-coreanos ajudaram a transformar Haebangchon em um centro de pequenas fábricas de roupas. Mais tarde, o bairro se tornou mais residencial e menos operário e começou a atrair jovens artistas. Depois, muitos estúdios e ateliês foram substituídos por cafés com o avanço da gentrificação, disse Cha Kyoung-hee, 38 anos, dona de uma livraria no bairro desde 2015.

Hwang, que cresceu nas proximidades e se estabeleceu em Haebangchon na década de 1980, desde então vem observando silenciosamente os detalhes dessas mudanças com um olhar atento. Ela construiu uma carreira na poesia depois de estudar escrita criativa em um instituto de artes de Seul e fez sua estreia com o poema “Renascerei como gato”, que ganhou um prêmio para jovens escritores sul-coreanos em 1984, o primeiro de muitos prêmios literários nacionais que ela viria a conquistar ao longo dos anos.

A Sra. Hwang em Haebangchon, um bairro esculpido em uma encosta arborizada por refugiados norte-coreanos.
A Sra. Hwang em Haebangchon, um bairro esculpido em uma encosta arborizada por refugiados norte-coreanos. Foto: Jun Michael Park/The New York Times

Ela disse que sua poesia reflete a convicção de que Seul é um lugar onde ricos e pobres vivem em mundos separados, e os oprimidos são vítimas de uma competição acirrada.

“Eles não estavam dispostos a trapacear para progredir nesta sociedade”, disse ela durante a caminhada recente, sua respiração escapando em pequenas nuvens que pairavam num beco escuro da encosta. As luzes dos arranha-céus piscavam na cidade ao longe.

Seus poemas tendem a fundir detalhes de seu canto em Seul, cidade de 10 milhões de pessoas, com as emoções de seus narradores irônicos e melancólicos. Um deles diz que as ruas de Haebangchon levam “sempre morro acima / como minha vida”.

Mas Hwang talvez seja mais conhecida por poemas que fazem observações melancólicas e excêntricas sobre gatos - e os humanos que tentam compreendê-los. Ela disse que cerca de um quinto de sua obra tem a ver com gatos.

A Sra. Hwang é talvez mais conhecida por poemas que fazem observações melancólicas e caprichosas sobre gatos e os humanos que lutam para entendê-los.
A Sra. Hwang é talvez mais conhecida por poemas que fazem observações melancólicas e caprichosas sobre gatos e os humanos que lutam para entendê-los. Foto: Jun Michael Park/The New York Times

Anne M. Rashid, professora de literatura inglesa que traduziu parte da obra de Hwang com um colega falecido, Chae-Pyong Song, disse que gostava particularmente desta passagem do poema “Ran, minha ex-gata”:

Não sabia de onde você vinha.

Sempre de repente

você aparecia

quando ninguém estava por perto

quando o tempo não era de ninguém,

pendurada no telhado de uma casa alugada

como se saísse do meu coração,

como se da borda da lua

com um quase grito,

você apareceu.

Ao longo do poema, que termina com a gata desaparecendo “para um lugar de onde você não poderia me convidar”, a narradora quer abraçar ou tocar sua musa, mas sabe que não é possível, disse Rashid, que ensina literatura na Carlow University, em Pittsburgh.

A Sra. Hwang vive em Haebangchon desde a década de 1980, observando atentamente as muitas mudanças pelas quais passou.
A Sra. Hwang vive em Haebangchon desde a década de 1980, observando atentamente as muitas mudanças pelas quais passou. Foto: Jun Michael Park/The New York Times

“Mas, apesar de tudo, elas têm um vínculo na solidão”, acrescentou ela.

Quando Cha recebeu Hwang para uma leitura na sua livraria no ano passado, o público era incomumente diversificado para eventos do tipo, com ex-moradores do bairro que estavam com saudades e queriam ouvir descrições das velhas encarnações do local. Alguns choraram quando ouviram os poemas lidos em voz alta.

Durante nossa caminhada, Hwang pareceu surpresa com o interesse de um repórter pela sua obra e recusou o convite para recitar um poema de sua escolha. “Não sei dizer qual deles traria alegria ao leitor”, disse ela, pouco antes da meia-noite.

Os humanos em seus poemas também costumam ser discretos. Em “Pelos telhados”, a narradora se maravilha com a forma como a energia dentro dos corpos dos gatos os faz voar pelo “vasto território” dos telhados. Então - com um jeito delicado, quase felino - ela se coloca no meio deles.

Nesta cidade onde os becos desapareceram,

é nos becos dos telhados,

nesses becos de cima, por assim dizer,

que respiro com calma.

TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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Fonte:  https://www.estadao.com.br/lifestyle/conheca-hwang-in-suk-uma-poeta-da-noite-cujas-musas-tem-sete-vidas/

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