sexta-feira, 21 de julho de 2023

Somos todos bardos: contar histórias na era da IA

Januária Cristina Alves*

Inteligência artificial no Marketing: como usar essa tecnologia para impulsionar suas estratégias

Foto:  Por Mundo do Marketing

Mais cedo ou mais tarde todos usaremos robôs em diferentes funções e momentos. A questão é – e será sempre – como usaremos e com que propósito

A ferramenta de inteligência artificial do Google chamada Bard acabou de ser liberada para uso aqui no Brasil. Concorrente do ChatGPT - o chatbot online de inteligência artificial desenvolvido pela OpenAI - o robô ainda está sendo visto como um experimento. Segundo a empresa, ele cria roteiros turísticos, dá dicas de como começar uma atividade, escreve textos em vários formatos, faz resumos em tópicos, sugere códigos de programação e pode adicionar fotos em suas respostas que, aliás, são sempre apresentadas em três opções, diferentemente de seu concorrente. O instrumento em si não é novidade e salvo uma funcionalidade diferente aqui e acolá, tanto o ChatGPT quando o Bard trazem em seu cerne a celeuma que ocupa 10 entre 10 posts nas redes sociais: afinal de contas, esses robôs irão ou não substituir os seres humanos nas suas mais diversas funções? Que perigos reais representam para a humanidade? As perguntas estão postas e talvez só as próximas gerações possam nos contar a(s) resposta(s). O nome que o Google deu ao seu robô, no entanto, embute em si um aspecto interessante, que pode nos dar muitas pistas.

Bard em inglês, significa bardo, que é uma figura fundamental da mitologia celta, é o contador de histórias da comunidade, o guardador das tradições orais, o poeta, o músico, aquele que traduz, por meio da arte de contar histórias, toda a trajetória e a cultura de um povo. Não à toa, um dos maiores contadores de histórias da literatura universal, o escritor inglês William Shakespeare, é chamado de “o bardo de Avon”, uma referência à Stratford-upon-Avon, cidade onde teria nascido. Teria. Isso porque, até hoje, a sua existência física, bem como a autoria de sua obra absolutamente única e original, são questionadas. Alguém tão genial assim, vamos combinar, talvez nunca tenha existido. Isto posto, não pode ser acaso que o Google tenha batizado a sua ferramenta de inteligência generativa de Bard e seus criadores explicam que a intenção era “canalizar o poder da imaginação e da expressão humana”, pois a ferramenta teria como objetivo “ajudar as pessoas a terem novas ideias, resolver problemas e criar algo realmente original”. Ou seja, tal como os bardos antigos, o novo bot tem como missão ajudar a perpetuar as histórias, mitos, criações, o pensamento do ser humano, enfim. Os bardos – e de resto todos os contadores de histórias presentes nas diferentes fases da história da humanidade - foram extremamente importantes atuando como transmissores e cocriadores da nossa cultura, tendo como função o registro do nosso percurso nesse planeta, bem como a inspiração para que seguíssemos inventando diferentes formas de transformar o meio em que vivemos. Ao que parece, o robô bardo também se arvora nesse papel. Será que dará conta de tão desafiadora tarefa?

Tenho dito, quando me perguntam o que acho do uso da inteligência artificial no nosso cotidiano, especialmente pelas crianças e jovens, que ela já é um fato, porque mais cedo ou mais tarde todos usaremos esses robôs em diferentes funções e momentos. Sem falar que, por princípio, ainda somos nós quem os “ensinamos” e alimentamos, portanto, eles existem à nossa imagem e semelhança, parafraseando um texto bíblico. Para mim, a questão é – e será sempre – como usaremos e com que propósito. O ponto fulcral que a IA traz é a autoria e a criação, pois o que nos torna humanos é a capacidade de pensar, de expressar nossos sentimentos, emoções, de transformar. A matéria-prima da IA não nos esqueçamos, somos nós mesmos e aquilo que inventamos e expressamos. Portanto, há que se refletir, ao usá-la, sobre o que queremos criar e expressar por meio dela. Não há nada que o ser humano não possa fazer se puder seguir criando e se expressando. A meu ver, o que a IA evidencia para todos nós é o quanto de criação estamos exercitando em nosso dia a dia e o quanto disso é expressão genuína de quem somos. Penso que talvez as coisas estejam se invertendo: estamos transferindo para a máquina o potencial criador que nos moveu até aqui. E nós, cansados, exaustos de tanta informação, de estímulos sensórios-motores, estamos apenas reproduzindo comportamentos, sentimentos e emoções “no piloto automático”. Talvez por isso a IA nos atemorize tanto, porque reconhecemos nela algo que é nosso e que estamos perdendo.

O que a IA evidencia para os seres humanos é o quanto de criação estamos exercitando em nosso dia a dia e o quanto disso é expressão genuína de quem somos

A figura do bardo evoca em nós a potência cocriadora das narrativas, a necessidade imemorial do ser humano contar histórias para viver. Elaboramos relatos para dar sentido à nossa existência e tudo o que pensamos, sentimos e vivemos é expresso por meio deles. Talvez precisemos nos voltar para a figura do bardo para compreendermos que os textos rápidos, precisos e concisos do bot jamais serão recheados da experiência de quem viveu na carne angústias, alegrias, êxtases e até a morte, como o ser humano. Os bardos narravam uma vivência que é única e jamais poderá ser formatada em uma máquina.

Quem sabe toda a polêmica que o Bard, o ChatGPT e a IA causam tenha mais a ver com o nosso medo de perder aquilo que nos faz donos da nossa história, ou seja, a capacidade de criar um mundo para além do on e do offline, uma narrativa que nos faça atravessar o nosso cotidiano com sentido e propósito. Talvez o nosso receio maior seja viver uma vida sem sentido, em que os dias são números e a nossa história seja resumida em posts com alguns caracteres e vídeos de um minuto. Pedir ao Bard para criar um mundo melhor quiçá seja mais simples, porém sabemos lá no fundo que jamais será tão magnífico quanto o que a nossa mente alerta e o nosso corpo em harmonia poderá inventar. Somos todos bardos, é preciso lembrar. Caso contrário, se de fato deixarmos a cargo do Bard escrever a nossa história, nos excluindo de usarmos essa inteligência automatizada como aliada para que possamos exercitar nossa voz e autoria, cumpriremos a profecia terrível que o bardo de Avon vaticinou: “a vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, mas vazia de significado”.

É tempo de tomar a nossa vida nas nossas mãos e, com muita criatividade, nos aliarmos à tecnologia para fazer de conta e fazer melhor. Na real.

Januária Cristina Alves é mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews - Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação - ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.

* mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews - Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação - ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.

Fonte: https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2023/Somos-todos-bardos-contar-hist%C3%B3rias-na-era-da-IA?posicao-home-esquerda=2

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