Fabrício Carpinejar
O fato de poder ligar ou mandar mensagens a qualquer instante serviu para restringir a convivência
O celular amaldiçoou o interfone e a campainha.
Acabou com o charme de ambos.
Liquidou a história de surpresas e de encontros intempestivos e agradáveis.
O fato de poder ligar ou mandar mensagens a qualquer instante serviu para restringir a convivência.
Aparecer pessoalmente, sem avisar, virou falta de educação, atitude invasiva, comportamento inapropriado.
O interfone toca ou a campainha vibra e todos de casa já perguntam: “quem deve estar incomodando a essa hora?”. Não importa o turno, o barulho intermitente é um dos menos desejados pela família. O som é tão odiado quanto o de um despertador.
Qualquer visita soa como perturbação da ordem doméstica. O imprevisto surge como sinônimo de encargo. As pessoas se fazem de múmias para não sair do conforto de seus afazeres e cantinhos.
Atender ao interfone ou à campainha é se responsabilizar pelo trabalho de conversar, ou de descer, ou de abrir a porta, interrompendo suas atividades. Ninguém quer assumir esse compromisso.
As visitas passaram a ser malquistas, reduzimos a nossa capacidade de acolhimento.
Avarentos com o nosso tempo, a agenda é maior do que o destino. Não nos permitimos distrações generosas, casualidades, saudades.
Não aceitamos que ninguém surja no nosso lar de repente.
A residência se transformou numa fortaleza de arame emocional, de cacos de vidro nos muros, um espaço fóbico, uma extensão do escritório, onde não se pode sacrificar o andamento das demandas planejadas e dos objetivos que devem ser cumpridos pela família.
Foi com o uso ostensivo do celular que começamos a temer as visitas, a nos afastar do ato grandioso de receber aqueles de quem gostamos e de colocar gentilmente mais um prato à mesa e mais água no feijão.
Atender ao interfone ou à campainha é se responsabilizar pelo trabalho de conversar, ou de descer, ou de abrir a porta, interrompendo suas atividades. Ninguém quer assumir esse compromisso.
Os amigos e parentes tornaram-se penetras de nossa felicidade.
Os encontros com os nossos confidentes são monitorados, agendados, como se estivéssemos trabalhando no secretariado de um consultório médico.
Nenhuma pessoa quer mais ser anfitriã do acaso. É um contraste da liberdade de ir e vir da minha infância.
Aliás, na minha meninice, sequer existia o hábito de apertar a campainha, escondida em algum lugar perto do portão. As residências eram ovacionadas, como se os seus visitantes fossem a plateia de um teatro. Tínhamos que bater palmas e gritar o nome do morador (“Ó Ó Ó de casa”) sem a certeza de que haveria gente para nos recepcionar.
Os latidos dos cachorros nos ajudavam a ser percebidos. Às vezes batíamos com a cara na porta, nem por isso nos sentíamos ofendidos e maltratados. Não praguejávamos a viagem perdida, não reclamávamos das tentativas. Sempre explicávamos com modéstia: “estava por perto”.
Hoje estamos cada vez mais distantes um do outro.
*Escritor. Poeta. Cronista da ZH - Imagem da Internet
Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/carpinejar/noticia/2023/07/anfitrioes-do-acaso-cljynmd4t008b015lkunjakv1.html
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