domingo, 16 de julho de 2023

A ideologia da metamodernidade

Álvaro Machado Dias*

  

Pílulas do artista visual Damien Hirst - Reprodução


Interações digitais solitárias (homem-máquina) e necessidade de união darão o tom da nova era

16.jul.2023 às 8h00

 Em meu último artigo, apresentei a tese de que um novo zeigeist (espírito do tempo) vem ganhando forma, enquanto perdem fôlego as posturas e práticas intelectuais da pós-modernidade: ceticismo e rechaço como formas privilegiadas de produção de conhecimento; discurso como realidade última; a ideia de que as produções mais inteligentes são as de compreensão mais difícil; a de usar metalinguagem e autorreferência em tudo o que se filma ou se produz em arte; além da prevalência do que foi sobre o que é, como em pós-verdade e pós-estruturalismo; fim da história, fim da arte, fim da interpretação e tantos outros fins.

A desconfiança intelectual engendrada pela derrocada das grandes narrativas, que atingiu o seu ápice com a perda de controle sobre as fake news, nos anos 2014-2018, vai cedendo espaço a um idealismo pragmático, que emite sinais ainda intermitentes, enquanto se consolida em franjas da produção de conhecimento, consumo, socialização e expressão da subjetividade .

A mudança de zeigeist acontece em todo o mundo, porém é assíncrona, sendo mais lenta em países onde a metáfora da luta se adequa melhor à experiência da vida, como no Brasil.

Entendê-la adiciona camadas à leitura dos fenômenos emergentes e leva a prognósticos mais precisos. É como no mercado financeiro. O dia a dia é determinado por flutuações contingentes no valor das ações, que dançam freneticamente nos gráficos. Porém, sob cada linha colorida existe uma empresa, com ativos reais e uma proposta de valor, o que torna a análise de fundamentos valiosa para estimar onde esse sobe e desce todo vai dar.

O Threads (Facebook/Meta) aproveitou um momento de fragilidade do Twitter e a enorme base de usuários no Instagram para arrancar com força. Porém, isso não é suficiente para explicar os 100 milhões de usuários que angariou em uma semana, ainda mais considerando suas limitações funcionais, que não são poucas, conforme Ronaldo Lemos mostrou.

A aspiração do grande público por um serviço de microblogs posicionado na contramão do rechaço como forma primária de relacionamento é o produto da análise de fundamentos sob o sobe e desce incessante.

O mesmo raciocínio se aplica ao Clubhouse, a plataforma de áudio que se tornou sensação durante a pandemia e que em seguida perdeu fôlego, dada a transitoriedade do espírito ao qual se fiou, marcado por tédio e desejo obliterado de comunicação em tempo real.

Importante não confundir constatação com otimismo. Como o Ronaldo também aponta, o Threads não melhora o ambiente digital em termos de privacidade e controles, que são as questões sociotecnológicas mais sensíveis neste momento. Em outra ocasião, falarei sobre a avalanche de problemas que o clima emergente deve trazer. Antes é preciso descrevê-lo.

Mudanças de mentalidade são estruturantes e, por isso, tendem a se acelerar quando o status quo é abalado com vigor. No caso da emergência da pós-modernidade, o abalo foi produzido pela Segunda Guerra. Na transição atual, a pandemia ocupa esse papel. Em ambos, a mudança de mentalidade não é decorrência do evento traumático em si, mas da síntese perceptiva que o segue.

Este não é o entendimento de Timotheus Vermeulen e Robin van den Akker, que formularam o conceito de metamodernidade, o qual acredito que capture o clima emergente mais precisamente do que qualquer outro. Na visão da dupla holandesa, os sinais da metamodernidade concentram-se sobretudo na produção artística e midiática.

Por exemplo, o recurso de romper a "quarta parede" e dialogar com o expectador, típico da produção audiovisual dos últimos 40 anos, caracterizada pelo afã de marcar o lugar de fala da ficção, está sendo preterido pela intenção "idealista, mas pragmática" de tentar contar uma boa história, de preferência com uma mensagem que possa ser incorporada pela audiência.

Exemplos incluem "A História de Pi", "The Office" e tantos outros hits. O princípio se repete nas artes plásticas, pela reincorporação do figurativo e da revalorização da capacidade de pintar, desenhar ou esculpir com maestria, o que diverge do cânone pós-moderno, de Warhol a Damien Hirst.

Eu sinto que essas coisas são insuficientes para ensejar mudanças persistentes de mentalidade —além de não monitorar esse setor, nem ter ninguém fazendo-o, o que me deixa no escuro.

Em termos das viradas artísticas, científicas e intelectuais da última década, o que me salta aos olhos é o rechaço crescente ao pós-estruturalismo e às abordagens discursivas da mente e do conhecimento, além do encurtamento de frases, parágrafos e textos pelo condicionamento digital.

Nós vivemos uma era de fascínio absoluto com as neurociências, o que é pessoalmente vantajoso, mas nem por isso vejo como uma grande ideia. Em contraste com as evidências, esse embevecimento pressupõe a existência de chaves materialistas para todo "mistério da alma", assim reduzindo o valor das alternativas a pó.

Um novo programa é instalado no slot das psicotecnologias hegemônicas —dos dispositivos e práticas que as pessoas buscam para apoiar seus processos de subjetivação—, gerando uma fenda no zeigeist dominante.

A fenda no campo das psicotecnologias da subjetivação sinaliza o declínio de formas poderosas de entendimento, mas não tem força suficiente para a fixação de um novo espírito do tempo. Seu papel, junto com as transições na arte, no entretenimento e na arquitetura, é preparar o terreno para tanto.

Por isso, essas coisas todas têm papel de prólogo na minha hipótese sobre o estabelecimento da metamodernidade, a qual eu acredito que venha a se estabelecer com o tempo, ainda que isso se dê pela voz de alguém mais motivado do que eu para firmar o ponto.

A maior ruptura é propositiva e foi definida pelas intuições pandêmicas —aquelas que tanta gente no país diz que nunca existiram, já que tiveram sua apreensão obliterada pelo negacionismo de Estado que deu o tom no período.

Não obstante, pesquisas de orientação psicológica e cobertura nacional que o Instituto Locomotiva conduziu em 2020 e 2021 mostram que a esperança tornou-se um dos sentimentos dominantes no país, sendo que antes não passava perto disso.

Tal como o pós-guerra desencadeou a formação descentralizada de um consenso em torno da perspectiva de que grandes narrativas e excessos de certezas desencaminham, a pandemia expôs que vivemos sob risco existencial e mostrou que a contenção do ceticismo e do rechaço em prol dos sentimentos agregadores é fundamental para a sua mitigação.

O lockdown planetário foi o maior experimento cognitivo-comportamental da história, ajudando a consolidar a percepção de que o esforço conjunto tende a ser a única chance de sucesso para os nossos grandes problemas.

Em 2022, a Nature publicou um artigo sobre a esperança durante a pandemia. Segundo os autores, "os presentes achados representam evidências concretas da importância das mensagens orientadas à esperança na comunicação da saúde pública, durante o período crítico da pandemia de Covid-19" (Peterson, et al., 2022, p. 2502). Isso tudo atingiu o clímax com o surgimento das vacinas de RNA, feito sem precedentes na imunologia, o qual foi recebido no mundo como a reviravolta catártica de um filme de ação.

Catarses dessa magnitude fixam-se no imaginário.

Não por acaso, desembarcamos da pandemia pensando em um novo risco existencial, o da inteligência artificial. Talvez você não tenha notado, mas essa é a primeira vez na história em que se discutem riscos existenciais de ferramentas produtivas.

Até este momento, apenas armas haviam ocupado esse papel no imaginário popular, o que faz sentido, já que não há chances relevantes de isso que hoje chamamos de IA se revoltar, atacar os 8 bilhões de humanos e vencer. A chave para a compreensão da reverberação planetária do prognóstico típico dos filmes de ficção é o fato de que ela preconiza que reflitamos sobre o futuro da humanidade.

É a mesma que explica o timing da mais importante mudança na taxonomia geológica da história, que viralizou com a declaração de que saímos do holoceno, era em que vivíamos desde antes do surgimento das civilizações, e entramos no antropoceno, era em que deixamos a vergonha de lado e declaramos que "a Terra gira em torno do homem".

O consenso em torno da mudança geológica saiu agora por força de um zeigeist favorável, o que evidentemente não torna a questão de base menos pungente.

Não há dúvidas de que o planeta se tornou um quintal de pessoas; basta notar que a biomassa de vertebrados terrestres se distribui assim: animais domesticados: 67%; pessoas: 30%; todos os animais silvestres e selvagens: 3%. Porém, a grande mensagem taxonômica não é essa, mas a de que somos os agentes exclusivos do aquecimento global, vide o fato de que nos últimos 50 anos a temperatura média subiu 170 vezes mais do que nos 7.000 anos anteriores.

Este é um risco existencial seríssimo, que precisa de uma resposta coordenada. Só algo assim para fazer Martin Wolf escrever para os jornais do mundo o óbvio: o problema foi quase integralmente criado pelas economias avançadas, que se beneficiaram da queima de quantidades cavalares de combustíveis fósseis para se modernizar, e neste processo dizimaram suas florestas, devendo agora parar de enrolar e pagar aos países emergentes para que estes ajudem a evitar o pior.

"O ocidente deve reconhecer sua hipocrisia", diz ele. Subtexto: precisamos nos unir.

Há muito mais do que uma coincidência ligando a percepção desses três riscos existenciais em uma janela temporal tão exígua, um fenômeno sem precedentes na história conhecida.

Eles se conectam na esfera das intuições coletivas na exata medida em que compartilham as noções de que somos os culpados pelas desventuras que acontecem conosco e que precisamos de uma orientação propositiva de base comum para não irmos todos para o buraco. Idealismo pragmático, enfim.

A ideologia digital da metamodernidade

Nas duas décadas que nos separam do surgimento das redes sociais atuais, fomos da prática de as utilizar primariamente para manter relacionamentos à de fazê-lo para conhecer coisas novas e expressar visões de mundo, de maneira instrumental ou por prazer.

Ao mesmo tempo, passamos a usar cada vez mais apps de conversação, como WhatsApp e Telegram, que também são um pouco sociais, mas têm na relação assíncrona entre pares o seu forte para nos aproximar das pessoas que conhecemos por aí e manter nossas amizades —como já defendi.

As tecnologias se especializaram, com o cuidado de não restringir as rotas alternativas de uso. Na minha visão, o principal impacto dos chatbots generativos no mundo deverá ser, justamente, o de introduzir mais uma iteração neste processo de segmentação. A questão é que esta será muito mais radical do que tudo que conhecemos até aqui, pois a mudança não será tanto de canal quanto de interlocutor.

É uma questão de tempo para que as igrejas passem a disponibilizar chatbots "educacionais" para os filhos de seus fiéis, com o objetivo mais amplo de facilitar a captação na geração seguinte, cortando custos e outras fricções (apresentei essa ideia primeiramente aqui). Com isso, a substituição do trabalho chegará aos templos. Anote e volte em alguns anos para conferir.

Mesmo fora desta chave, o desenvolvimento de companheiros digitais divertidos, estoicos, humorados, irreverentes ou apenas ‘inteligentes’ deverá explodir. Quer ser amigo do Neymar? Não se preocupe, por R$ 19,90/mês ele estará à sua disposição. Um novo tipo de influencer nascerá. Vamos chamá-lo de Cortella 2.0.

Estou convicto de que, em alguns anos, um debate público importante será sobre as pessoas que preferem interagir com seus avatares pessoais do que com os outros. Reportagens irão destacar a semelhança com o que ocorria com a vida sexual da molecada em 2023, quando a pornografia já punha o sexo no chinelo, e os mais astutos irão notar que o pulo do gato nessa história toda é que os avatares customizados não passam de recortes modificados de seus próprios clientes —afinal, aprendem com estes sem parar.

Uma consequência dessa transformação deverá ser a redução dos conflitos interpessoais. Na medida em que os incentivos para interagir com estranhos decaem, os sentimentos divisivos seguem junto. É por essa via, e não pela de qualquer entendimento "civilizatório", que antevejo um arrefecimento dos conflitos digitais. Simplesmente, vão produzir menos frisson.

Outra consequência será o aumento do tempo que passamos sozinhos, estendendo a tendência pandêmica, fixada em nosso repertório subjetivo e também profissional de forma inesperada.

Durante a pandemia, não apenas o trabalho remoto foi adotado em larga escala, como as grandes cidades viveram um processo de espalhamento, puxado pelo home office. Na Europa, a quantidade de nômades digitais se tornou grande a ponto de estimular a criação de categorias tributárias em vários países.

Passados alguns meses, o retorno aos escritórios é massivo, ao mesmo tempo em que o trabalho híbrido também se fixou, especialmente no domínio aspiracional. É raro encontrar quem prefira o regime 100% presencial ao híbrido.

As razões são óbvias. O novo arranjo aumentou o tempo de relacionamento maquínico em comparação com o humano, tornando a incorporação dessas novas companhias mais natural e desejável, o que também tende a ser impulsionado pela proliferação dos bots profissionais: atendentes virtuais "simpáticos", assistentes de produtividade que eliminam tarefas chatas e assim por diante.

A cultura dos bots, que ainda está distante de ser a dos robots, é um importante fator na minha tese sobre a transformação de mentalidades.

O copo meio vazio dessa história envolve maior algoritmização do pensamento, como citei em outra matéria, e a explosão no sentimento de solidão. Vale notar que, conforme publicado originalmente aqui na Folha, mais de 70% dos adultos brasileiros não se sentem próximos de quase ninguém.

Essa taxa tende a crescer com o envelhecimento da população, redução da natalidade, incremento da tendência de morar sozinho e outros fatores que também têm seu copo cheio para compensar, não estando por acaso associados a aumento do PIB e do nível educacional.

Outro ponto que eu gostaria de destacar para que você anteveja esse cenário hipotético pelo meu prisma é que essas psicotecnologias não tendem a substituir interações humanas pouco recompensadoras por experiências sentidas como ainda mais frívolas, tal como em um episódio de "Black Mirror".

Do ponto de vista do consumo, essa é uma tese difícil de sustentar. Muito mais sensato é considerar que os assistentes do futuro elevarão o jogo algorítmico de TikTok e companhia. É mais dopamina na veia, digo, no cérebro.

Como? Bom, como você faria para engajar cada um, usando princípios dialógicos gerais? A minha resposta é: dando a sensação de que, deste modo, (1) a vida fica mais divertida, (2) que cada qual está numa jornada de transformação ou do conhecimento, ou (3) que a "verdade doutrinária" pode ser acessada adequadamente através da IA.

Isso, se acontecer mesmo, representará a suprema manifestação do idealismo pragmático metamoderno. Quem viver, verá.

 *Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind

 Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/alvaro-machado-dias/2023/07/a-ideologia-da-metamodernidade.shtml

Nenhum comentário:

Postar um comentário