Houve um tempo, não faz muito tempo, em que quando um jornalista não gostava de um livro, qualquer que fosse, escrevia sobre ele. Esse tipo de texto tinha um nome técnico: crítica. Nem toda crítica era desfavorável. Mas toda opinião desfavorável era crítica. Nessa época, a questão de gênero em literatura nada tinha a ver com sexo. Criticar era um direito. Mais do que isso: uma obrigação. Criticar implicava fazer comparações. Podia-se dizer que A era bom e B era ruim. Os critérios de avaliação não escondiam certa subjetividade. Em contrapartida, o resultado não resolvia certo mistério: a coincidência de julgamento entre muitos, em momentos diferentes, lugares diferentes e classes diferentes.
Algo mais ou menos assim: poucos dirão que Zeca do Piano foi maior do que Beethoven. Esse tempo da crítica morreu. Se não morreu, agoniza. Todo crítico passou a ser chamado de “hater”. Quando algo passa a ser designado em inglês o bicho pega: explode ou morre. Hoje, diante de uma crítica, o fã reclama de um modo que tempos atrás seria considerado ingênuo: se não gostou, não critique. A tarefa do crítico era justamente criticar se não gostasse. O crítico era um profissional do julgamento. O hater é o cara que ama odiar. O grande crítico dos programas de auditório na televisão chamava-se Pedro de Lara. Odiava tudo. Era pago para isso.
No campo oposto, Márcia de Windsor amava tudo. Ela venceu. A crítica perdeu a sua legitimidade. As hierarquias de gostos sempre tiveram certa arbitrariedade, salvo o fato de reproduzirem gostos profundos. A indústria cultural percebeu que desqualificar gostos não era lucrativo. O que ela poderia ganhar dizendo que A é melhor do que B? Todos os gostos são para ela equivalentes se venderem. A hierarquia pode, contudo, ser um bom argumento de venda para nichos viciados em distinção, o mecanismo que me faz superior pelo que gosto e não divido com outros.
A crítica tornou-se inaceitável e violenta, algo como a invasão de um país soberano. Ela viola a autonomia do gosto do outro. O crítico tornou-se um hater que não se vê como tal. Ainda. A deslegitimação da crítica pela indústria cultural forjou seu maior aliado: o consumidor, doravante chamado de fã incondicional. E assim o crítico, para não ser espancado em público, enfia a viola no saco e vai criticar no banheiro da sua casa. Há, porém, os que se pintam para a guerra e assumem o que negavam: viram haters. A crítica era um sistema de hierarquia social. O mundo pós-crítica é uma sociedade sem hierarquia estética. Tudo igual.
Nesse universo da pós-verdade tudo se define por convencimento e consequência. Se me convenço, ajo em consequência. Consumo, gosto, defendo, dissemino, gozo, pratico, quero mais, espalho, comemoro. Se não me convenço, esqueço. Se me convenço, não aceito críticas. Não me basta não ler a crítica, exijo que ela não seja feita. A crítica era uma argumentação. Atuava no espaço suposto da racionalidade. Podia, porém, ser autoritária e taxativa. No universo da subjetividade total, só a emoção faz sentido. O crítico é só um hater que não saiu do armário.
*Jornalista. Escritor. Prof. Universitário.
Fonte: https://www.matinaljornalismo.com.br/matinal/colunistas-matinal/juremir-machado/o-critico-e-o-hater/
Nenhum comentário:
Postar um comentário