domingo, 16 de julho de 2023

Rafael Yuste : COM A PALAVRA

Por MARCEL HARTMANN

 O neurocientista espanhol Rafael Yuste passa a integrar o time de conferencistas da temporada 2023

 O neurocientista espanhol Rafael Yuste passa a integrar o time de conferencistas da temporada 2023

Neurocientista,

60 anos

Um dos cientistas mais influentes do mundo segundo a revista Nature, esteve em Porto Alegre para o Fronteiras do Pensamento

Intitulado um dos cinco cientistas mais influentes do mundo pela revista Nature e diretor do Centro de Neurotecnologia da Universidade de Columbia, em Nova York, o espanhol Rafael Yuste lidera estudos que poderiam inspirar filmes de ficção científica. Ele já teve sucesso em implementar pensamentos em ratos, que passaram a ver figuras geométricas como se existissem de fato. Os resultados abrem a porta para, no futuro, cérebros humanos serem manipulados a ponto de termos ideias, sentimentos e decisões modificados. Yuste é otimista quanto aos desdobramentos da tecnologia, que, para ele, é neutra. Ao mesmo tempo, defende que todos os países tenham leis para proteger a identidade e a autonomia individual, o que chama de "neurodireitos". Yuste conversou com ZH na capital gaúcha, onde esteve para conferência no Fronteiras do Pensamento.

O SENHOR PARTICIPOU DE UM ESTUDO NO QUAL IMPLEMENTOU IMAGENS NO CÉREBRO DE RATOS. PODERIA EXPLICAR ESSA PESQUISA?

Estamos interessados em entender como funciona o cérebro de um rato. O córtex cerebral, que é a parte maior do cérebro, é a mesma em todos os mamíferos. Os ratos têm um córtex cerebral pequeno, nós temos um muito maior. Utilizamos técnicas de neurotecnologia para registrar a atividade da parte visual do córtex enquanto o rato olha imagens geométricas. Mapeando a atividade do córtex, descobrimos o que o rato está vendo. No mesmo estudo, utilizamos outro laser para ativar neurônios no córtex visual e gerar imagens no cérebro que o rato não estava de fato vendo. O rato, então, se comportou como se estivesse vendo as imagens de maneira exata. Tanto faz se as imagens geométricas estão na frente de seus olhos ou se as inserimos com neurotecnologia: o rato as vê exatamente iguais. Como sabemos? Nós o treinamos para que, quando visse uma imagem de um tipo, ele chupasse um pequeno tubo com água açucarada e, se visse uma imagem de outro tipo, ele não chupasse. Ao colocar imagens em seu cérebro com lasers e ativando neurônios, o fazíamos chupar ou não a água açucarada como se fosse uma marionete. Isso nos deu a responsabilidade de entender que a neurotecnologia é tão poderosa que pode controlar a percepção sensorial e o comportamento de animais. Resumindo: podemos ver os pensamentos de um rato em uma tela e decodificar as imagens que ele vê com técnicas de computação nas quais registramos a atividade de muitos neurônios e sabemos que, se um grupo de neurônios está disparando, significa que ele está vendo uma imagem. A partir daí, começa a ser possível decodificar o pensamento, embora ainda não saibamos exatamente o que é o pensamento.

A CIÊNCIA NÃO SABE O QUE É UM PENSAMENTO?

Temos uma hipótese, nascida justamente desses experimentos com ratos, de que, quando pensamos em algo, há um grupo de neurônios que dispara ao mesmo tempo, formando um conjunto neuronal. Suspeitamos que, quando pensamos em algo, os seres humanos também têm um conjunto neuronal que dispara quando vê uma imagem. Quando temos uma lembrança, outro conjunto neuronal dispara. Portanto, se pudéssemos mapear todos os conjuntos neuronais, teríamos um mapa da mente das pessoas. Se ativássemos esses conjuntos neuronais, ativaríamos os pensamentos das pessoas.

QUE TIPO DE IMPACTO ESSES RESULTADOS PODEM TER PARA OS SERES HUMANOS? PODERÍAMOS TAMBÉM IMPLANTAR IMAGENS E DESEJOS EM NOSSO CÉREBRO?

Absolutamente! O que pode ser feito hoje em um rato poderá ser feito amanhã em um ser humano. Meus colegas têm conseguido decodificar e implantar memórias e emoções em ratos. Tudo isso poderá ser feito em seres humanos, mas quais são as consequências? Há três. A primeira é científica, pois poderemos entender como o cérebro funciona e como gera a mente humana. Finalmente poderemos entender o que é um ser humano por dentro, cientificamente, pois isso é algo que apenas os filósofos discutem. A ideia é trazer isso para o campo da neurociência para responder à antiga pergunta que os seres humanos têm feito há milhares de anos: quem somos? Para mim, esse é um momento histórico, pois finalmente será possível entender quem somos, por que nos comportamos como nos comportamos, o que é o amor, a violência, o pensamento, a inteligência, a consciência, as emoções. Tudo isso terá uma explicação científica. Essa é a primeira razão pela qual a neurotecnologia é importante. A segunda razão está relacionada à clínica. Um terço dos seres humanos sofrerá doenças cerebrais, como Alzheimer, Parkinson, esclerose múltipla e derrame, ou doenças psicológicas e psiquiátricas como esquizofrenia, depressão e ansiedade. Essas doenças não têm cura porque não entendemos como o cérebro funciona, então não podemos consertar. Entender o funcionamento do cérebro é muito importante. A terceira implicação da neurotecnologia está relacionada à sociedade em geral, porque esses métodos permitirão conectar as pessoas a um computador. Poderemos fazer isso diretamente com eletrodos ópticos, magnéticos e até mesmo acústicos. Toda essa neurotecnologia está sendo desenvolvida agora e poderá ser implementada por neurocirurgia ou de forma portátil, como um capacete, uma tiara, um óculos ou uma pulseira.

O SENHOR PODERIA DESCREVER UM CENÁRIO DE COMO A NEUROCIÊNCIA PODERIA SER USADA PARA DECIFRAR E MANIPULAR PENSAMENTOS E DESEJOS?

Por exemplo, digitar em uma máquina ou um computador apenas pensando, sem usar dedos ou teclado. Traduziríamos pensamentos em estímulos para computadores. Isso começou a ser feito no ano passado, quando começamos a ser capazes de decifrar a fala com scanners cerebrais magnéticos. Com eletrodos portáteis, como um eletroencefalograma, podemos começar a decifrar o que você ouve e, em breve, poderemos decifrar o que você deseja escrever. Então, para alguém como eu, que é muito ruim em digitar, seria perfeito, eu simplesmente colocaria o capacete e começaria a digitar. Mas é claro que isso tem o risco de decifrar, além das palavras que você quer escrever, também as palavras que você não quer escrever, como os pensamentos que você tem em mente. No ano passado, a neurotecnologia de scanners foi usada para decifrar imagens que você imagina. Por exemplo, você imagina a porta da sua casa, cientistas escaneiam você e descobrem que você está pensando em uma porta com tais e tais características. Isso abre a possibilidade de decifrar a atividade mental e é algo que já fazemos com ratos. Isso é muito útil para pacientes. Um exemplo positivo: minha mãe tem Alzheimer e fala muito pouco, mas você olha nos olhos dela e vê que ela está lá e quer comunicar algo. Com um capacete de eletroencefalografia, poderíamos colocá-lo nela e entender o que ela quer dizer. Ou um paciente paralisado que não consegue falar, poderíamos libertá-lo e permitir que se comunique com o exterior por meio de uma interface cérebro-computador. No futuro, essas pessoas poderão ter uma vida normal com um chip e membros robóticos.

DE QUE MANEIRA AS NOVAS TECNOLOGIAS PODERIAM SER UTILIZADAS PARA AS DOENÇAS MENTAIS QUE VOCÊ MENCIONOU?

Estamos trabalhando em meu laboratório com ratos que possuem mutações e comportamentos semelhantes às de humanos com esquizofrenia. Podemos ver a atividade cerebral e dizer se o rato tem ou não esquizofrenia apenas olhando a atividade neuronal. Com os mesmos métodos que utilizamos para inserir imagens no cérebro do rato, podemos corrigir conjuntos neuronais anormais em ratos esquizofrênicos. Estamos tentando fazer isso agora para ver se podemos mudar o comportamento deles. Ou seja, estamos tentando encontrar a cura para a esquizofrenia em ratos. Se conseguirmos curar a esquizofrenia em um rato com neurotecnologia, chamaremos nossos colegas na clínica e diremos que temos algo que pode interessá-los. Também conseguimos controlar a epilepsia em ratos com neurotecnologia usando luz. No futuro, talvez possamos fazer o mesmo em humanos com epilepsia grave. Atualmente, a única solução para a epilepsia grave é a neurocirurgia, removendo a parte anormal do cérebro. Imagine, no futuro, parar a epilepsia com luz ou outras técnicas sem mexer no cérebro. Também estamos tentando corrigir o Alzheimer em ratos para poder desenvolver métodos para humanos. Esses são exemplos positivos da neurotecnologia.

O SENHOR ESTÁ TRAZENDO OS POSSÍVEIS BENEFÍCIOS, MAS EU GOSTARIA QUE FALASSE TAMBÉM SOBRE OS RISCOS DO AVANÇO DESSE TIPO DE TECNOLOGIA.

A neurotecnologia, assim como todas as tecnologias, é neutra e pode ser usada para o bem ou para o mal. O fogo pode ser usado para se aquecer no inverno ou para incendiar a casa do vizinho. Da mesma forma, a neurotecnologia tanto poderá ser usada para curar a esquizofrenia e escrever à máquina com o pensamento quanto para ler pensamentos de um prisioneiro ou de uma pessoa a fim de vender produtos ou votos. A técnica de implantação de imagens ou pensamentos na população com neurotecnologia ainda não está sendo feita, mas tecnicamente é possível. Há 15 ou 20 anos que estamos decodificando a atividade cerebral, mas apenas começamos a manipulá-la. Isso significa que precisamos desenvolver, ao mesmo tempo, métodos para ajudar os pacientes e estabelecer regras e diretrizes para garantir que essa tecnologia seja utilizada de maneira positiva, e não abusiva.

É POSSÍVEL IMAGINAR UMA FORMA DE HACKEAR O CÉREBRO, COMO POR EXEMPLO É FEITO NO FILME BRILHO ETERNO DE UMA MENTE SEM LEMBRANÇAS?

Ainda não é possível, mas imagine usar um capacete de neurotecnologia para escrever à máquina: quem entrar nas informações do seu cérebro poderia descobrir tudo o que você tem dentro, não apenas o que você pensa, mas também o inconsciente, coisas que você nem sabe que pensa. O cérebro tem muita atividade interna, e possivelmente conhecemos apenas 10% dela, porque muitas das coisas que nosso cérebro faz são inconscientes. No entanto, com a neurotecnologia, seria possível decifrar tudo, poderia-se saber mais sobre você do que você mesmo. Por isso, acreditamos que a proteção da atividade cerebral e da informação cerebral deve ser um direito humano fundamental.

VOCÊ PODE DESENVOLVER O CONCEITO DE NEURODIREITOS QUE VOCÊ TRAZ PARA O DEBATE PÚBLICO?

A ideia é que, para garantir que a neurotecnologia seja aplicada de maneira correta, devemos focar não na tecnologia, mas nas pessoas e em seu uso adequado. Devemos proteger as pessoas em vez de regular a neurotecnologia e colocar uma linha que não pode ser ultrapassada. O cérebro não pode ser tocado, é o órgão que gera tudo o que você é: seus pensamentos, emoções, memórias e consciência. Portanto, propusemos a ideia de novos direitos humanos, os quais chamamos de "neurodireitos", para proteger a atividade cerebral. Existem cinco tipos de neurodireitos: o direito à privacidade mental, para que o conteúdo da mente não possa ser decifrado sem o seu consentimento; a proteção da identidade pessoal, para que sua consciência não possa ser manipulada externamente, assim como fazemos com os ratos; o neurodireito à liberdade de vontade, para que as decisões que você toma sejam internas, sem influência externa; o acesso equitativo à neuroexpansão, que surgirá quando seres humanos poderão aumentar sua capacidade cognitiva e mental para se tornarem mais inteligentes e com mais memória. Atualmente, já aumentamos nossa inteligência com celulares, GPS e calendários. Imagine ter tudo isso internamente ou com dispositivos externos que o auxiliem. Teríamos algoritmos de supercomputador para calcular probabilidades, como onde estacionar o carro, com quem casar, onde investir dinheiro. Os seres humanos sempre se esforçaram para melhorar, seja com roupas, automóveis, aviões, e, com essa tecnologia, será o mesmo, mas mentalmente. Queremos garantir que o aumento cognitivo seja regulado sob o princípio universal de justiça para evitar que haja humanos expandidos e humanos não expandidos, o que seria uma ruptura na humanidade com dois tipos de seres humanos.

COMO VEMOS EM FILMES DE FICÇÃO CIENTÍFICA?

Estamos indo nessa direção. Acredito que seja lógico que isso aconteça, é assim com os seres humanos. Acredito que seja bom porque a humanidade poderá fazer coisas melhores, em princípio. O progresso, a ciência e o conhecimento são ferramentas para ajudar a humanidade a evitar sofrimentos e resolver problemas. Mas temos de garantir que os problemas sejam solucionados protegendo as pessoas e suas características humanas básicas.

E O QUINTO NEURODIREITO?

O quinto é a proteção contra vieses, como informações maliciosas que são inseridas no cérebro por meio da neurotecnologia. Utilizamos algoritmos de inteligência artificial para inserir informações, por exemplo, no cérebro dos ratos, mas esses algoritmos muitas vezes têm vieses e discriminações. O problema é que, com a neurotecnologia, essas informações são inseridas diretamente no cérebro, e a pessoa interpreta isso como se fosse a realidade.

UMA PESSOA PODERIA TER A CERTEZA, ENTÃO, DE QUE O CÉU É VERMELHO.

Exatamente. Tudo o que você é e o que você pensa é gerado no cérebro. Se você puder entrar no cérebro, mapear a atividade e decifrá-la, poderá entender tudo o que a pessoa é, e se puder manipulá-la, poderá mudar tudo o que ela pensa. Utilizamos os sentidos para que nosso modelo interno do mundo, que é como um modelo de realidade virtual, se acople ao mundo exterior. Uma das teorias mais importantes sobre como o cérebro funciona é de que a vida é um sonho e, quando estamos acordados, esse sonho se acopla à realidade porque tocamos na mesa e corrigimos o modelo que temos no cérebro. Portanto, tudo isso pode ser alterado, podemos mudar o mundo das pessoas. É por isso que é necessário trabalhar na regulamentação da neurotecnologia em nível local em diferentes países, e é por isso que estou aqui no Brasil. Não adianta os "neurodireitos" estarem protegidos no Brasil, mas não na Argentina ou em outras partes do mundo. Precisamos de uma solução global.

VOCÊ DEFENDE A INCLUSÃO DOS NEURODIREITOS A OUTROS TRATADOS INTERNACIONAIS. PODE DESENVOLVER A SUA IDEIA?

A Declaração Universal dos Direitos Humanos é o único documento no qual a maioria da humanidade concorda, portanto é muito difícil de ser alterado. Não queremos mudar a Declaração Universal, mas tratados internacionais de direitos humanos. Existem oito tratados associados à Declaração Universal, que são sobre pessoas com deficiência, tortura, direitos civis e políticos. Há comitês internacionais que se reúnem três vezes por ano e ajustam esses tratados para adicionar ou remover artigos. Queremos adicionar artigos que protejam os neurodireitos. Os mais urgentes, na nossa visão, são os direitos à privacidade mental, porque as tecnologias de decodificação neural estão se tornando mais e mais acessíveis, já estão à porta.

O SENHOR TEVE UMA REUNIÃO COM O VICE-GOVERNADOR DO RIO GRANDE DO SUL. DO QUE FALARAM?

Falamos do envolvimento possível do Rio Grande do Sul em apoiar essa ideia, seja em lei para o Estado ou em liderar uma iniciativa que englobe todos os governadores para combinador com o que ocorre no Senado. Para que o Rio Grande do Sul seja uma espécie de modelo de como solucionar esse problema com a legislação local.

JÁ HÁ UMA EMENDA CONSTITUCIONAL NO CHILE SOBRE NEURODIREITOS. NO QUE CONSISTE?

Já está vigente, foi aprovada pelo Senado e pela Câmara e foi assinada pelo presidente Piñera em 2021. É o único país com proteção constitucional à atividade cerebral e a informação procedente dela. É breve, mas é um começo. Há também uma lei de neuroproteção que define o que é a neurotecnologia, o que são neurodireitos, como os regular na Constituição chilena e ainda exige que a agência nacional de saúde pública aprove toda a neurotecnologia a ser ou não vendida.

O SENHOR ESTÁ OTIMISTA SOBRE O FUTURO?

Muito! Creio que estejamos às portas de um renascimento. Entender o cérebro nos permitirá culminar no objetivo do humanismo. Será bom saber as razões de comportamento e suavizar problemas antes que ocorram violência e agressões.

O SENHOR NÃO TEM MEDO DAS POSSÍVEIS CONSEQUÊNCIAS?

Não. Vejo 90% de lado positivo e 10% de lado negativo. O lado negativo poderemos conter com direitos humanos e medicina. Temos 2 mil anos desenvolvendo tecnologias médicas que podem ser utilizadas para salvar ou matar o paciente. E estamos há 2 mil anos salvando pacientes, porque há uma ética médica com tradição de ajudar. A ética médica é simples e tem três princípios: ajuda, justiça e dignidade. Esses podem ser incorporados à neurotecnologia para andarmos em direção a um renascimento.

marcel.hartmann@zerohora.com.br
Fonte: https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=0d43cd71bac84f8e9773547f710237fa

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